domingo, 1 de dezembro de 2013

Breves notas sobre a prolação de sentenças substitutivas de atos administrativos: concretização da tutela jurisdicional efetiva ou violação da separação de poderes?

    A condenação à prática de atos devidos, que vigora atualmente como meio processual no Processo Administrativo, à luz do modelo da Verpflichtungsklage Alemã, era, até 1997, proibida no Contencioso Administrativo Português, por se considerar que tal emissão seria violadora do princípio da separação de poderes, cuja interpretação tinha na sua origem o sistema francês, segundo o qual “julgar a administração seria ainda administrar”, de acordo com a qual o juiz administrativo esgotava os seus poderes na anulação de atos, sem nunca chegar à emissão de pronúncias condenatórias. Os tribunais não estão vocacionados a fazer a chamada “dupla administração”, sendo que este meio processual é adequado “à tutela contenciosa das posições subjetivas de conteúdo pretensivo, que se dirijam à emissão de atos administrativos, independentemente da questão de saber se o respetivo conteúdo é ou não vinculado e que atitude tomou a Administração em relação à pretensão que lhe foi apresentada” (vide AMARAL, Diogo Freitas do, ALMEIDA, Mário Aroso de, Grandes Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p.56)
     O aperfeiçoamento dos meios de tutela das posições jurídicas dos particulares, nomeadamente através da reforma do contencioso administrativo português de 2004, leva a que seja possível a emissão de sentenças substitutivas de atos administrativos, considerada como “o meio de satisfação do princípio da tutela efetiva, mas utilizada apenas quando a administração não tenha executado uma sentença através da prática de um ato administrativo de emissão devida, e de conteúdo vinculado” (CORREIA, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, Lisboa: LEX, 2005, p.764-766), sendo este um dos marcos de mudança de paradigma do Contencioso Administrativo. Já em 1967, o Professor Diogo Freitas do Amaral, aquando da sua tese de doutoramento, se referia a estes como sendo uma “importante garantia para os particulares”, como forma de reintegrar a ordem jurídica violada (vide AMARAL, Diogo Freitas do, Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Dissertação de Doutoramento em Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1967, p. 62-68), contudo, apenas em 2004 se tratou de superar definitivamente os “velhos traumas da infância difícil” do Contencioso Adminsitrativo (utilizando a inconfundível expressão do Professor Vasco Pereira da Silva), que remontam aos tempos do administrador-juiz e da confusão entre Administração e Justiça.
      Cumpre, por isso, esclarecer o significado de ato estritamente vinculado, de modo a que a emissão do ato seja possível, perante o incumprimento da Administração à prática de um ato legalmente devido. Este verifica-se quando não exista qualquer reserva de valoração ou prognose, típicas do exercício da administração, em que a lei determine, ela mesma, o ato a ser praticado pela Administração, bem como nos casos de redução de discricionariedade a zero, ou, por outras palavras, nos casos em que não exista descricionariedade (ou porque a escolha já foi realizada, ou porque a avaliação subjetiva já teve lugar no decurso da fase instrutória do procedimento [administrativo], ou porque a concreta circunstância do caso elimina a possibilidade de escolha).
      A sentença substitutiva carateriza-se por ser um ato da função jurisdicional, de natureza constitutiva, e de per si exequível, sem necessidade de qualquer intermediação posterior, administrativa ou judicial, para a produção de efeitos pré-determinados, não implicando a constituição, modificação ou extinção de efeitos. Tratar-se-á de conferir a um órgão jurisdicional a faculdade de suprir a omissão da atividade de um órgão (competente para o efeito, mas inadimplente), sobre certa matéria integralmente determinada quanto à oportunidade e conteúdo. Esta substituição é designada de “substituição integrativa”, pelo Professor Paulo Otero, surgindo como ultimum remedium e “como meio de tutela de interesses, valores, ou bens que a ordem jurídica configura como essenciais” (para mais desenvolvimentos: OTERO, Paulo, O poder de substituição em direito administrativo: Enquadramento Dogmatico-Constitucional, Vol. II, Lisboa: LEX, 1995, p. 497-498).
      Se a pronúncia declarativa não for cumprida pela Administração, o interessado tem o direito de recorrer à fase executiva (164º/4, alínea c) e 179º/1 e 5 do CPTA, e 167º/6 todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de ora em diante, CPTA), visto que no processo executivo, os tribunais têm o poder de assegurar, através da prolação de sentença, que se produzam os efeitos do ato administrativo devido (3º/3 do CPTA), a requerimento de qualquer interessado que pretenda obter a emissão de sentença que produza os efeitos de alvará ilegalmente recusado ou omitido, segundo o 157º/3 e 4 do CPTA.
    Fora do domínio da execução de sentenças (artigos 157º/3 e 4, 164º/4 al. c), 167º/6 e 179º/1 e 5 CPTA), apenas se prevê que haja substituição judicial do ato administrativo na fase declarativa, nos casos do artigo 109º/3 CPTA, isto é, nos casos excecionais em que esteja em causa um processo urgente de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias. Segundo este artigo, quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar, o tribunal emite sentença que produza os efeitos do ato devido a requerimento do interessado. A própria sentença do processo declarativo é substitutiva e auto-executória, ou seja, produz diretamente os efeitos determinados, não carecendo de uma execução, espontânea ou forçada, pela Administração.
      O CPTA supera, assim, neste domínio, o preconceito da natural infungibilidade de todas as prestações a cargo da Administração, que tradicionalmente levava a excluir a possibilidade de quaisquer medidas executivas de caráter substitutivo ou subrogatório.
      Uma questão que tem sido colocada a propósito desta temática relaciona-se com o facto de saber se este poder jurisdicional consubstancia uma violação do princípio da separação de poderes.
     O entendimento subjacente ao CPTA é o de que “há, desde logo, amplos domínios em que, por não estar em causa o exercício de poderes de autoridade, mas apenas a execução de operações materiais, (…) nada impede o recurso à execução forçada nos casos em que a Administração não realize as operações a que estava obrigada. (…) Mas mesmo quando (…) [seja reservado à Administração] o exercício de poderes de autoridade, deve entender-se que a Administração só beneficia de uma reserva de princípio” (vide ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra: Edições Almedina, 2013, p. 508), limitando-se o tribunal a proceder à execução específica do direito do exequente, proporcionando-lhe a execução do conteúdo a que a Administração estava obrigada.
      Marco Real Martins refere ainda que “não só é admissível (à luz do princípio da separação de poderes), como é necessária (desta feita, sobretudo à luz do princípio da tutela jurisdicional efetiva) (…), quando a ordem jurídica o imponha, (…) caso esse em que necessariamente se tratará de uma atividade fungível, a ser exercida in caso pelo juiz administrativo, em substituição do ente administrativo, por este se ter revelado incumpridor no exercício da sua competência.”(…) acrescentando que “Não se trata de qualquer rutura revolucionária com a conceção da função administrativa constitucionalmente consagrada, nem de uma fuga para o excesso de judicialismo, ou para um “governo de juízes” mas apenas de conferir um sentido atualista – e também pragmático/funcional/finalístico – ao princípio da separação de poderes, mais próprio de um Estado de Direito democrático pós modernista, de cariz marcadamente social.” (MARTINS, Marco Real, Sentenças substitutivas de atos administrativos sob o signo do princípio da tutela jurisdicional efetiva: em especial, nos procedimentos de formação de contratos públicos,in O Direito, n.º 143, 2011, p. 393 e 406). Ainda a este propósito, Rita Calçada Pires tende a considerar que “A visão clássica, onde cada poder é estático e permanece fechado no seu espaço individual de ação, não representa sequer um reflexo da realidade que hoje caracteriza o relacionamento entre poderes” PIRES, Rita Calçada, O Pedido de Condenação à prática de ato administrativo legalmente devido – Desafiar a modernização administrativa?, Coimbra: Almedina, 2004, p. 117-118).
     Esta interpretação atualista não significa que não haja necessidade de um controlo recíproco de poderes, significando tão só que este princípio não obsta a que haja sentenças substitutivas de atos administrativos, nos casos em que estes sejam estritamente vinculados, ou que a descricionariedade da atividade administrativa seja nula.
    A minha opinião vai ao encontro das posições supra citadas, considerando que não pode haver uma hipervalorização do princípio da separação de poderes, tendo este de ser interpretado precisamente como um princípio, ou seja, não tendo valor absoluto, mas sendo um imperativo de otimização, e como tal, tem de ser compatibilizado com outros princípios, como é o caso do princípio da tutela jurisdicional efetiva, podendo este, no limite, prevalecer sobre o primeiro.
   Existem autores que defendem que as sentenças substitutivas também poderiam ser proferidas em processo declarativo, exceto se a sua prática ocorresse no exercício de margem de livre decisão administrativa. No entendimento do Professor Pacheco de Amorim, “deverá o legislador assegurar a máxima satisfação possível dos direitos e interesses legítimos dos particulares lesados por atos administrativos, não se podendo recusar a conferir ao juiz administrativo o poder de este se substituir à Administração logo em sede declarativa, se nenhuma razão sólida subsistir em contrário, (…) sempre que essa substituição seja exequível e não contrarie os princípios da estabilidade das decisões administrativas e da salvaguarda da zona de reserva de administração que constitui o domínio de descricionariedade da Administração” (AMORIM, João Pacheco de, A substituição judicial da Administração na prática de atos administrativos devidos, in Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, Volume I – O debate universitário, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 486). Também neste sentido, “A fase por excelência das sentenças substitutivas é a fase declarativa, pois é nela que se «diz o direito» aplicável à relação jurídica e não na execução, vocacionada apenas para o completamento material ou quase material da efetividade da tutela” (vide BRANCO, Nuno Ricardo, Efetividade da Tutela Jurisdicional Efetiva e Sentenças Substitutivas de Atos Administrativos, Dissertação de Mestrado de Ciências Juridíco-Políticas, Faculdade de Direito de Lisboa, 2003-2004, p. 194 e 195).
       Não me parece, neste caso que o alargamento das sentenças substitutivas ao processo declarativo não fosse violador do princípio da separação de poderes, uma vez que estender o seu âmbito de aplicação ao processo declarativo seria conferir poderes ao juiz para intervir em casos em que essa intervenção ainda não é necessária. Deve ser dada a oportunidade à Administração de emendar o ato praticado ou de praticar o ato que deveria ter sido praticado, só podendo o juiz intervir, no caso de omissão pela Administração.
      Em conclusão, o exercício do poder de substituição da Administração pelo tribunal é, desde logo, uma medida de execução coativa de última ratio, dado que pressupõe que se frustrou a expetativa de cumprimento espontâneo da Administração. Esta substituição judicial da Administração depara-se com limites, que são, por um lado, o respeito pelos espaços de valoração própria da Administração – que constitui o domínio da discricionariedade, só podendo a substituição verificar-se no domínio de atividades administrativas estritamente vinculadas ou com conteúdo legalmente determinado ou preenchido, sendo importante reter que “a realidade demonstra que a atividade administrativa e as suas prestações se apresentam como fungíveis, e portanto, substituíveis, quando tal seja necessário”. (PIRES, Rita Calçada, op.cit, p. 108).














Referências Bibliográficas (de acordo com a norma NP-405)


  1. ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra: Edições Almedina, 2013, p. 505-515
  2. AMARAL, Diogo Freitas do, Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Dissertação de Doutoramento em Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1967, p. 62-68, 385 e ss.
  3. AMARAL, Diogo Freitas do, ALMEIDA, Mário Aroso de, Grandes Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 51-63
  4. AMORIM, João Pacheco de, A substituição judicial da Administração na prática de actos administrativos devidos, in Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, Volume I – O debate universitário, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 474-487.
  5. ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, Coimbra: Livraria Almedina, 2004, p. 401-425
  6. BRANCO, Nuno Ricardo, Efetividade da Tutela Jurisdicional Efetiva e Sentenças Substitutivas de Atos Administrativos, Dissertação de Mestrado de Ciências Juridíco-Políticas, Faculdade de Direito de Lisboa, 2003-2004, p. 90-98; 155-160; 189-203
  7. CORREIA, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, Lisboa: LEX, 2005, p. 768-781
  8. MARTINS, Marco Real, Sentenças substitutivas de actos administrativos sob o signo do princípio da tutela jurisdicional efectiva: em especial, nos procedimentos de formação de contratos públicos,in O Direito, n.º 143, 2011, p. 391-424.
  9. OTERO, Paulo, O poder de substituição em direito administrativo: Enquadramento Dogmatico-Constitucional, Vol. II, Lisboa: LEX, 1995, p. 497-498
  10. PEREIRA, Duarte Amorim, A Execução Substitutiva no Novo Regime de Processo Administrativo, Dissertação de Pós-Graduação em “Justiça Administrativa e Fiscal”, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2007, p. 2-29
  11. PIRES, Rita Calçada, O Pedido de Condenação à prática de acto administrativo legalmente devido – Desafiar a modernização administrativa?, Coimbra: Almedina, 2004, p. 93-120

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