A
condenação à prática de atos devidos, que vigora atualmente como
meio processual no Processo Administrativo, à luz do modelo da
Verpflichtungsklage
Alemã, era, até 1997, proibida no Contencioso Administrativo
Português, por se considerar que tal emissão seria violadora do
princípio da separação de poderes, cuja interpretação tinha na
sua origem o sistema francês, segundo o qual “julgar a
administração seria ainda administrar”, de acordo com a qual o
juiz administrativo esgotava os seus poderes na anulação de atos,
sem nunca chegar à emissão de pronúncias condenatórias. Os
tribunais não estão vocacionados a fazer a chamada “dupla
administração”, sendo que este meio processual é adequado “à
tutela contenciosa das posições subjetivas de conteúdo pretensivo,
que se dirijam à emissão de atos administrativos, independentemente
da questão de saber se o respetivo conteúdo é ou não vinculado e
que atitude tomou a Administração em relação à pretensão que
lhe foi apresentada” (vide AMARAL,
Diogo Freitas do, ALMEIDA, Mário Aroso de, Grandes
Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo,
3ª
ed., Coimbra: Almedina, 2004,
p.56)
O
aperfeiçoamento dos meios de tutela das posições jurídicas dos
particulares, nomeadamente através da reforma do contencioso
administrativo português de 2004, leva a que seja possível a
emissão de sentenças substitutivas de atos administrativos,
considerada como “o meio de satisfação do princípio da tutela
efetiva, mas utilizada apenas quando a administração não tenha
executado uma sentença através da prática de um ato administrativo
de emissão devida, e de conteúdo vinculado” (CORREIA,
Sérvulo, Direito
do Contencioso Administrativo,
Vol. I, Lisboa: LEX, 2005, p.764-766),
sendo este um dos marcos de mudança de paradigma do Contencioso
Administrativo. Já em 1967, o Professor Diogo Freitas do Amaral,
aquando da sua tese de doutoramento, se referia a estes como sendo
uma “importante garantia para os particulares”, como forma de
reintegrar a ordem jurídica violada (vide AMARAL,
Diogo Freitas do, Execução
das Sentenças dos Tribunais Administrativos,
Dissertação de Doutoramento em Direito, Universidade de Lisboa,
Lisboa, 1967, p. 62-68), contudo, apenas em 2004 se tratou de superar
definitivamente os “velhos traumas da infância difícil” do
Contencioso Adminsitrativo (utilizando a inconfundível expressão do
Professor Vasco Pereira da Silva), que remontam aos
tempos do administrador-juiz e da confusão entre Administração e
Justiça.
Cumpre,
por isso, esclarecer o significado de ato estritamente vinculado, de
modo a que a emissão do ato seja possível, perante o incumprimento
da Administração à prática de um ato legalmente devido. Este
verifica-se quando
não exista qualquer reserva de valoração ou prognose, típicas do
exercício da administração, em que a lei determine, ela mesma, o
ato a ser praticado pela Administração, bem como nos casos de
redução de discricionariedade a zero, ou, por outras palavras, nos
casos em que não exista descricionariedade (ou porque a escolha já
foi realizada, ou porque a avaliação subjetiva já teve lugar no
decurso da fase instrutória do procedimento [administrativo], ou
porque a concreta circunstância do caso elimina a possibilidade de
escolha).
A
sentença substitutiva carateriza-se por ser um ato da função
jurisdicional, de natureza constitutiva, e de
per si
exequível, sem necessidade de qualquer intermediação posterior,
administrativa ou judicial, para a produção de efeitos
pré-determinados, não implicando a constituição, modificação ou
extinção de efeitos. Tratar-se-á de conferir a um órgão
jurisdicional a faculdade de suprir a omissão da atividade de um
órgão (competente para o efeito, mas inadimplente), sobre certa
matéria integralmente determinada quanto à oportunidade e conteúdo.
Esta substituição é designada de “substituição integrativa”,
pelo Professor Paulo Otero, surgindo como ultimum
remedium e
“como meio de tutela de interesses, valores, ou bens que a ordem
jurídica configura como essenciais” (para
mais desenvolvimentos: OTERO,
Paulo, O
poder de substituição em direito administrativo: Enquadramento
Dogmatico-Constitucional,
Vol. II, Lisboa: LEX, 1995, p. 497-498).
Se
a pronúncia declarativa não for cumprida pela Administração, o
interessado tem o direito de recorrer à fase executiva (164º/4,
alínea c) e 179º/1 e 5 do CPTA, e 167º/6 todos do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, de ora em diante, CPTA),
visto que no processo executivo, os tribunais têm o poder de
assegurar, através da prolação de sentença, que se produzam os
efeitos do ato administrativo devido (3º/3 do CPTA), a requerimento
de qualquer interessado que pretenda obter a emissão de sentença
que produza os efeitos de alvará ilegalmente recusado ou omitido,
segundo o 157º/3 e 4 do CPTA.
Fora
do domínio da execução de sentenças (artigos
157º/3 e 4, 164º/4 al. c), 167º/6 e 179º/1 e 5 CPTA), apenas se
prevê que haja substituição judicial do ato administrativo na fase
declarativa, nos casos do artigo 109º/3 CPTA, isto é, nos casos
excecionais em que esteja em causa um processo urgente de intimação
para a proteção de direitos, liberdades e garantias. Segundo este
artigo, quando a célere emissão de uma decisão de mérito que
imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou
negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em
tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser
possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência
cautelar, o tribunal emite sentença que produza os efeitos do ato
devido a requerimento do interessado. A própria sentença do
processo declarativo é substitutiva e auto-executória, ou seja,
produz diretamente os efeitos determinados, não carecendo de uma
execução, espontânea ou forçada, pela Administração.
O
CPTA supera, assim, neste domínio, o preconceito da natural
infungibilidade de todas as prestações a cargo da Administração,
que tradicionalmente levava a excluir a possibilidade de quaisquer
medidas executivas de caráter substitutivo ou subrogatório.
Uma
questão que tem sido colocada a propósito desta temática
relaciona-se com o facto de saber se este poder jurisdicional
consubstancia uma violação do princípio da separação de poderes.
O
entendimento subjacente ao CPTA é o de que “há, desde logo,
amplos domínios em que, por não estar em causa o exercício de
poderes de autoridade, mas apenas a execução de operações
materiais, (…) nada impede o recurso à execução forçada nos
casos em que a Administração não realize as operações a que
estava obrigada. (…) Mas mesmo quando (…) [seja reservado à
Administração] o exercício de poderes de autoridade, deve
entender-se que a Administração só beneficia de uma reserva de
princípio” (vide ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual
de Processo Administrativo,
Coimbra: Edições Almedina, 2013, p. 508),
limitando-se o tribunal a proceder à execução específica do
direito do exequente, proporcionando-lhe a execução do conteúdo a
que a Administração estava obrigada.
Marco
Real Martins refere ainda que “não só é admissível (à luz do
princípio da separação de poderes), como é necessária (desta
feita, sobretudo à luz do princípio da tutela jurisdicional
efetiva) (…), quando a ordem jurídica o imponha, (…) caso esse
em que necessariamente se tratará de uma atividade fungível, a ser
exercida in
caso
pelo juiz administrativo, em substituição do ente administrativo,
por este se ter revelado incumpridor no exercício da sua
competência.”(…) acrescentando que “Não
se trata de qualquer rutura revolucionária com a conceção da
função administrativa constitucionalmente consagrada, nem de uma
fuga para o excesso de judicialismo, ou para um “governo de juízes”
mas apenas de conferir um sentido atualista – e também
pragmático/funcional/finalístico – ao princípio da separação
de poderes, mais próprio de um Estado de Direito democrático pós
modernista, de cariz marcadamente social.” (MARTINS,
Marco Real, Sentenças
substitutivas de atos administrativos sob o signo do princípio da
tutela jurisdicional efetiva: em especial, nos procedimentos de
formação de contratos públicos,in
O
Direito,
n.º 143, 2011, p.
393 e
406). Ainda a este propósito, Rita Calçada Pires tende a considerar
que “A
visão clássica, onde cada poder é estático e permanece fechado no
seu espaço individual de ação, não representa sequer um reflexo
da realidade que hoje caracteriza o relacionamento entre poderes”
PIRES,
Rita Calçada, O
Pedido de Condenação à prática de ato administrativo legalmente
devido – Desafiar a modernização administrativa?,
Coimbra: Almedina, 2004, p. 117-118).
Esta
interpretação atualista não significa que não haja necessidade de
um controlo recíproco de poderes, significando tão só que este
princípio não obsta a que haja sentenças substitutivas de atos
administrativos, nos casos em que estes sejam estritamente
vinculados, ou que a descricionariedade da atividade administrativa
seja nula.
A
minha opinião vai ao encontro das posições
supra citadas,
considerando que não pode haver uma hipervalorização do princípio
da separação de poderes, tendo este de ser interpretado
precisamente como um princípio, ou seja, não tendo valor absoluto,
mas sendo um imperativo de otimização, e como tal, tem de ser
compatibilizado com outros princípios, como é o caso do princípio
da tutela jurisdicional efetiva, podendo este, no limite, prevalecer
sobre o primeiro.
Existem
autores que defendem que as
sentenças substitutivas também poderiam ser proferidas em processo
declarativo, exceto se a sua prática ocorresse no exercício de
margem de livre decisão administrativa. No
entendimento do Professor Pacheco de Amorim, “deverá o legislador
assegurar a máxima satisfação possível dos direitos e interesses
legítimos
dos particulares lesados por atos administrativos, não se podendo
recusar a conferir ao juiz administrativo o poder de este se
substituir à Administração logo em sede declarativa, se nenhuma
razão sólida subsistir em contrário, (…) sempre que essa
substituição seja exequível e não contrarie os princípios da
estabilidade das decisões administrativas e da salvaguarda da zona
de reserva de administração que constitui o domínio de
descricionariedade da Administração” (AMORIM,
João Pacheco de, A
substituição judicial
da Administração na prática de atos administrativos devidos,
in Reforma
do Contencioso Administrativo,
Ministério da Justiça,
Volume I – O debate universitário, Coimbra: Coimbra Editora, 2003,
p. 486). Também neste sentido, “A fase por excelência das
sentenças substitutivas é a fase declarativa, pois é nela que se
«diz o direito» aplicável à relação jurídica e não na
execução, vocacionada apenas para o completamento material ou quase
material da efetividade da tutela”
(vide BRANCO, Nuno Ricardo, Efetividade
da Tutela Jurisdicional Efetiva e Sentenças Substitutivas de Atos
Administrativos,
Dissertação de Mestrado de Ciências Juridíco-Políticas,
Faculdade de Direito de Lisboa, 2003-2004, p. 194 e 195).
Não
me parece, neste caso que o alargamento das sentenças substitutivas
ao processo declarativo não fosse violador do princípio da
separação de poderes, uma vez que estender o seu âmbito de
aplicação ao processo declarativo seria conferir poderes ao juiz
para intervir em casos em que essa intervenção ainda não é
necessária. Deve ser dada a oportunidade à Administração de
emendar o ato praticado ou de praticar o ato que deveria ter sido
praticado, só podendo o juiz intervir, no caso de omissão pela
Administração.
Em
conclusão, o exercício do poder de substituição da Administração
pelo tribunal é, desde logo, uma medida de execução coativa de
última
ratio,
dado que pressupõe que se frustrou a expetativa de cumprimento
espontâneo da Administração. Esta substituição judicial da
Administração depara-se com limites, que são, por um lado, o
respeito pelos espaços de valoração própria da Administração –
que constitui o domínio da discricionariedade, só podendo a
substituição verificar-se no domínio de atividades administrativas
estritamente vinculadas ou com conteúdo legalmente determinado ou
preenchido, sendo importante reter que “a realidade demonstra que a
atividade administrativa e as suas prestações se apresentam como
fungíveis, e portanto, substituíveis, quando tal seja necessário”.
(PIRES, Rita Calçada, op.cit, p. 108).
Referências
Bibliográficas (de acordo com a norma NP-405)
- ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra: Edições Almedina, 2013, p. 505-515
- AMARAL, Diogo Freitas do, Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Dissertação de Doutoramento em Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1967, p. 62-68, 385 e ss.
- AMARAL, Diogo Freitas do, ALMEIDA, Mário Aroso de, Grandes Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 51-63
- AMORIM, João Pacheco de, A substituição judicial da Administração na prática de actos administrativos devidos, in Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, Volume I – O debate universitário, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 474-487.
- ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, Coimbra: Livraria Almedina, 2004, p. 401-425
- BRANCO, Nuno Ricardo, Efetividade da Tutela Jurisdicional Efetiva e Sentenças Substitutivas de Atos Administrativos, Dissertação de Mestrado de Ciências Juridíco-Políticas, Faculdade de Direito de Lisboa, 2003-2004, p. 90-98; 155-160; 189-203
- CORREIA, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, Lisboa: LEX, 2005, p. 768-781
- MARTINS, Marco Real, Sentenças substitutivas de actos administrativos sob o signo do princípio da tutela jurisdicional efectiva: em especial, nos procedimentos de formação de contratos públicos,in O Direito, n.º 143, 2011, p. 391-424.
- OTERO, Paulo, O poder de substituição em direito administrativo: Enquadramento Dogmatico-Constitucional, Vol. II, Lisboa: LEX, 1995, p. 497-498
- PEREIRA, Duarte Amorim, A Execução Substitutiva no Novo Regime de Processo Administrativo, Dissertação de Pós-Graduação em “Justiça Administrativa e Fiscal”, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2007, p. 2-29
- PIRES, Rita Calçada, O Pedido de Condenação à prática de acto administrativo legalmente devido – Desafiar a modernização administrativa?, Coimbra: Almedina, 2004, p. 93-120
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