domingo, 1 de dezembro de 2013

Os contra-interessados no contencioso administrativo


 - Terceiros, ou verdadeiras partes no processo

Proponho-me a determinar que posições jurídicas de terceiros merecem tutela jurisdicional, ou seja, em que medida é que terceiros, titulares de direitos subjectivos, podem aceder aos tribunais administrativos. Pretendo, primeiramente, abordar o conceito de “terceiro”, considerada das noções mais complexas em Direito Administrativo, debruçando-me, depois, sobre o papel dos contra-interessados, que possuem interesses opostos ao autor da acção e que representam um traço original do contencioso administrativo.

            Em primeiro lugar, cabe determinar a natureza jurídica de terceiros, nomeadamente se estes são detentores de um direito subjectivo próprio ou de um interesse legítimo. Freitas do Amaral considera que, no caso de existir um direito subjectivo, existe uma protecção directa e imediata, e o particular pode exigir da Administração um comportamento que satisfaça esse seu interesse; por outro lado, no interesse legítimo, essa protecção é de “segunda linha”, uma vez que o interesse que está a ser protegido é um interesse público. Vasco Pereira da Silva contesta que esta distinção não é correcta, argumentando que todas as posições de vantagem dos privados em relação à Administração devem ser consideradas como direitos subjectivos.[1] Neste seguimento, Paes Marques sustenta que em todos os casos estamos perante direitos subjectivos, e o que pode variar é a intensidade e a forma com que o ordenamento jurídico protege os interesses dos particulares. [2] No fundo, o que se pretende saber é se uma norma protege um particular, atribuindo-lhe uma situação de vantagem, ou se o objectivo é proteger o interesse público e, ocasionalmente, beneficiar um “terceiro juridicamente indiferente”, utilizando uma expressão de Aroso de Almeida.

            Possuindo interesses opostos ao autor da acção, e de acordo com os art.s 57º e 68º/2 Código de Processo dos Tribunais Administrativos, adiante CPTA, há uma exigência de o recorrente chamar ao processo estes terceiros contra-interessados. A ausência da identificação e citação dos contra interessados é causa de ilegitimidade passiva, que obsta ao conhecimento da causa (art.89º/1 alínea f CPTA)). Apesar de terem obrigatoriamente que intervir no processo, os contra-interessados não têm de adoptar uma posição, sendo esta uma faculdade que lhes é conferida no caso de desejarem intervir.

                        Para encontrarmos a justificação da obrigatoriedade da intervenção processual dos contra-interessados, temos de atender a razões de natureza mista, tendo em conta a função subjectivista e a função objectivista.

            A função subjectivista mostra-nos que o primeiro fundamento da intervenção processual dos contra-interessados passa pelos princípios constitucionais de acesso à justiça (art.268º/4 Constituição da República Portuguesa, doravante CRP) e de respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados (art.266º/1 CRP), no sentido de que a prossecução do interesse público não pode descurar os interesses legítimos dos administrados. Ainda a acrescentar, os princípios processuais do contraditório e da igualdade das partes.

A função objectivista da intervenção dos contra-interessados, em parte, não é mais do que uma decorrência da função subjectivista: o contra-interessado que não foi chamado ao processo, quando o deveria ter sido, não pode ser prejudicado pela respectiva decisão, uma vez que não teve a possibilidade de participar no mesmo. Paulo Otero afirma que, se não existisse um litisconsórcio necessário passivo relativo à intervenção dos contra-interessados, existiria sempre um litisconsórcio por natureza. [3]

            A nossa lei prevê uma excessiva oneração do autor, pois obriga-o a demandar todos os titulares de direitos subjectivos contrapostos ao seu, sendo que, por vezes, não é fácil determinar todos os titulares de posições subjectivas legítimas. Paes Marques defende que, à partida, esta oneração não é “inoportuna e irracional [4], desde que posteriormente se possam corrigir os elementos que, num primeiro momento, possam ter estado em falta (art.88º e 89º CPTA). É este, também, o entendimento de Paulo Otero, que adianta que a “violação do direito processual do contra-interessado por incumprimento do ónus imposto ao recorrente nunca possa aproveitar a este último”. [5]

            Paes Marques considera ainda que a demanda de todos os contra-interessados pode levantar graves problemas em relação aos efeitos das sentenças, pois em alguns casos o número de contra-interessados pode ser tão elevado, que se torna inviável a sua identificação, o que se pode revelar na ineficácia das sentenças jurisdicionais. [6]

            Segundo Paulo Otero, o contra-interessado mostra-se sempre como um terceiro relativamente ao recorrente e à autoridade recorrida. [7]  Paes Marques, contudo, acredita que é preciso ir mais longe do que a simples intervenção processual de terceiros, pois a correspectividade entre os interesses subjectivos do autor e do contra-interessado justifica uma posição de paridade entre eles. [8] Neste sentido, Vieira de Andrade defende que no novo CPTA os contra-interessados são concebidos como partes, e portanto devem formar um litisconsórcio necessário passivo com a entidade demandad a(art.10º/1 CPTA). Paes Marques acrescenta que a lei portuguesa atribui um protagonismo à figura de contra-interessado que vai muito além do que acontece em outros ordenamentos juríridicos, com excepção, talvez, do contencioso administrativo italiano. [9]

            Arrisco-me a concluir desta breve exposição sobre o papel dos contra-interessados no contencioso administrativo, que não estamos perante terceiros, titulares de direitos subjectivos ou interesses legítimos que careçam de tutela, mas sim perante verdadeiras partes do processo, que formam um litisconsórcio necessário passivo, nos termos do art.10º/1 CPTA, e que compõem um “esquema ternário imperfeito” [10] – para além da Administração, há dois particulares que se defrontam, e “imperfeito” porque o interessado persegue a mesma pretensão da autoridade recorrida. [11] Do próprio art.10º/8 CPTA se depreende esta diferenciação, visto que a lei trata de forma distinta os contra-interessados e os restantes terceiros. [12]

 

Inês Tamissa de Barros, aluna 20813

 

 

[1] Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, pag.286.

[2] Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros no Contencioso Administrativo, pag.73.

[3] Paulo Otero, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares – Os contra interessados em contencioso administrativo, pag.1087.

[4] Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros… cit, pag.101.

[5] Paulo Otero, Estudos em Homenagem… cit, pag 1084.

[6] Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros…cit, pag.102.

[7] Paulo Otero, Estudos em Homenagem…cit,pag 1074.

[8] Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros…cit, pag.91.

[9] Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros…cit, nota de rodapé 231, pag.113.

[10] Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros…cit, pag.108.

[11] Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros…cit, nota de rodapé 221, pag.108.

[12] Neste sentido, Rui Chancerelle de Machete, A legitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais, pag.623.

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