terça-feira, 22 de outubro de 2013

Resolução de litígios jurídico-administrativos por tribunais arbitrais

O mundo paralelo dos tribunais arbitrais

A justiça não é um exclusivo do Estado. Tal como refere o professor Cabral de Moncada, “não há nenhuma incompatibilidade entre justiça e a autodeterminação privada”. É neste contexto que aparecem os tribunais arbitrais a exercer a função jurisdicional, com dignidade constitucional, prevista no art.209º/2CRP, e em sequência do art.202º/4 CRP. A permissão do acesso a tribunais arbitrais é um imperativo do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva.

           Subsiste uma certa estranheza em aceitar-se o recurso a tribunais arbitrais por parte da Administração Pública relativo a algumas matérias, que se entende serem exclusivas e imperativas de Tribunais Administrativos. A explicação para tal temor, de acordo com José Luís Esquível, passa pela Administração estar ligada a uma ideia de “poder público, legalidade administrativa e realização do interesse público”, bastante associada aos tribunais administrativos, e portanto existe alguma relutância na substituição destes tribunais, criados justamente para resolver conflitos administrativos, por árbitros, imparciais, mas independentes. Outra explicação pode estar relacionada com o facto do Direito Privado ser menos recente que o Direito Administrativo, e portanto há menos “tradição” de arbitragem neste último.

Não é por acaso que o recurso à arbitragem é um mecanismo em expansão - são inúmeras as suas vantagens. Estas, passam por uma mais adequada apreciação dos casos, pois muitas das vezes os árbitros são especialistas e peritos nas matérias tratadas, e portanto mais preparados para resolver problemas relativos à questão; a economia e celeridade do processo são justificadas pela menor necessidade de formalismos e maior flexibilidade em comparação com o que acontece nos tribunais judiciais; na arbitragem também se consegue uma decisão mais individualizada, onde as partes podem escolher a lei aplicável; por último, a confidencialidade é outro aspeto a considerar, o que no âmbito de litígios em que uma das partes é a Administração pode ser especialmente controverso.

Temos que diferenciar arbitrariedade subjectiva e arbitrariedade objectiva – a primeira responde à pergunta: quem pode recorrer à arbitragem; a segunda corresponde a quais as matérias que podem ser tratadas pela arbitragem. É importante perceber que a constituição de tribunais arbitrais é um direito fundamental dos cidadãos, mas estes têm de ser constituídos num quaro de legalidade, isto é, a organização e competência dos tribunais pertence à reserva relativa da Assembleia da República, de acordo com o art.165º/1 p) CRP, pelo que os tribunais arbitrais necessitam de uma Lei da Assembleia da República ou Decreto-lei autorizado, que lhe dê eficácia e exequibilidade.

 Também é importante distinguir o compromisso arbitral, em que as partes pretendem resolver um litígio já existente, de uma cláusula compromissória, em que se remete para decisão de um tribunal arbitral um possível litígio futuro.

O art.181º/1 CPTA refere que o tribunal arbitral funciona “nos termos da lei sobre arbitragem voluntária”, contudo, não nos podemos esquecer que as normas especiais sobre a disciplina de arbitragem no direito administrativo irão prevalecer sobre as normas da Lei de Arbitragem Voluntária – a norma especial prevalece sempre sobre a geral.

Devemos reter que a arbitragem é um direito fundamental, consagrado na Constituição, e corolário do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva. A Constituição admite expressamente a arbitragem, demonstrando desta forma que a função jurisdicional não pertence apenas ao Estado. Sem prejuízo do que estiver disposto em lei especial, pode recorrer-se a um tribunal arbitral, salvo a excepção do art. 185ºCPTA.

Bibliografia:
 Fonseca, Isabel; A arbitragem Administrativa e Tributária
Cabral de Moncada, Luis; Palestra na Universidade Católica de 17-01-2009;
Figueiras, Cláudia; Arbitragem em matéria tributária: à semelhança do modelo administrativo?

Inês Tamissa de Barros, aluna 20813

domingo, 20 de outubro de 2013


O Princípio da Discricionariedade na Administração Pública
 

Não obstante a Administração Pública (doravante AP) se encontrar subordinada à lei (princípio da legalidade), raros são os casos em que esta lhe confere um quadro exaustivo de regulação da sua actuação (poderes vinculados). Nos casos muito frequentes em que a lei lhe confere alguma margem de liberdade de decisão, diz-se que é conferida à AP uma discricionariedade para actuar, ou um poder discricionário de actuar.  

Este conceito pode ser encarado sob duas perspectivas diferentes: a primeira coloca o acento tónico nos actos da administração (teoria da actividade), ao passo que a segunda realça a perspectiva dos poderes da administração (teoria da organização). Deste modo, tem-se que, para a primeira os actos da AP serão vinculados quando “praticados no exercício de poderes vinculados” sendo discricionários quando “praticados no exercício de poderes discricionários”. Na segunda perspectiva, o poder é vinculado “quando a lei não remete para o critério do respectivo titular a escolha da solução concreta mais adequada” e será discricionário “quando o seu exercício ficar entregue ao critério do respectivo titular, que pode e deve escolher a solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere”. (Amaral, Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2011, p. 86).

 A discricionariedade encontra o seu principal fundamento na circunstância de, por um lado, ser manifestamente impossível à lei, quer regular todo e qualquer aspecto das diversas situações em que a Administração é chamada a actuar, quer antever a respectiva conformação em face do seu constante desenvolvimento (Amaral, Freitas, Direito Administrativo, volume II, Lisboa, 1984, p. 269). Não obstante, outros fundamentos parecem poder encontrar-se no princípio da separação de poderes e no Estado Social de Direito, enquanto prestador e constitutivo de deveres positivos para administração, assim como os direitos ou interesses legítimos para os particulares (Amaral, Freitas, ob. cit., 2011, p. 97).

Mas, sem embargo de na discricionariedade se estar perante um espaço de livre apreciação por parte da AP, nem todos os aspectos relativos ao exercício dos denominados poderes discricionários são totalmente discricionários já que, de contrário, se estaria perante a concessão de um verdadeiro poder arbitrário.

A doutrina sustenta assim a existência de uma parcial vinculação à lei aquando da prática de actos administrativos que envolvam o exercício destes poderes. Por exemplo, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (Lições de Direito Administrativo, Lisboa, 1994/1995, p. 127 e 128) invoca a existência de uma vinculação estrita quanto aos respectivos pressupostos – órgão, titular devidamente investido, competência do órgão, eventuais pressupostos objectivos do acto – bem como quanto aos elementos vontade e fim, acrescentando ainda existir uma parcial vinculação quanto aos restantes elementos (conteúdo, objecto, formalidades e forma). O Prof. Freitas do Amaral, acrescenta ainda que os aspectos discricionários do poder de actuar se limitam ao momento da prática do acto, à decisão de praticar ou não um certo acto, à determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão e a faculdade de apor, ou não, no acto administrativo a condições, termos, modos, ou outras cláusulas acessórias (cfr. art. 121.º CPA).

Nestes termos, a discricionariedade prende-se, quando e conforme a lei assim o determinar, com a parte do conteúdo, a parte do objecto, a parte das formalidades e a parte da forma dos actos de gestão pública unilaterais da Administração deixados ao critério desta.

 Com tais fundamentos, eram formuladas severas críticas, ainda na vigência da antiga Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo, ao teor do seu artigo 19.º que afirmava que o acto praticado ao abrigo de um poder discricionário só poderia ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder (uso indevido que a autoridade administrativa faz da faculdade discricionária que a lei lhe atribui para concretizar uma dada finalidade e que se exprime no facto de o acto praticado ou demonstrar uma discrepância entre o fim efectivamente seguido pela administração e o fim legal, ou uma divergência entre o fim real e o fim legal).

De acordo com a posição então expressa pelo Prof. Freitas do Amaral, a única forma ampla e eficaz de criar condições para um controlo efectivo do exercício do poder discricionário seria o de aumentar o número de vinculações legais e, por isso, o de diminuir o poder discricionário, no exercício do poder administrativo. Neste sentido, enumerava como exemplos de situações em que a administração se deveria sujeitar ao controlo jurisdicional: (i) a admissão do erro de facto como fundamento da acção de impugnação; (ii) o estabelecimento do controlo jurisdicional sobre a existência ou inexistência de pressupostos de facto de competência; (iii) a imposição legal da obrigação de fundamentar os actos administrativos; (iv) a sujeição a certos princípios gerais de direito, formais e materiais, tudo com vista a aumentar progressivamente o controlo por parte dos tribunais, através do acatamento de princípios e critérios jurídicos que vinculem a administração mas tendo em atenção os princípios da separação de poderes e da legalidade. (Amaral, Freitas, ob.cit., 2011, p. 115-116)

Parece ser hoje pacífico que, na medida em que os actos que envolvem o exercício de um poder discricionário são sempre também em certa medida praticados no uso de poderes vinculados, estes podem ser impugnados  contenciosamente com fundamento (artigo 78.º /1, al. g)) em qualquer dos vícios do acto administrativo (arts. 50.º/1 e 95.º/2 CPTA). Assim pode ser alegada, conforme os casos, (i) a incompetência; (ii) o vício de forma; (iii) a violação de lei (ofensa a quaisquer limites impostos ao poder discricionário, por lei ou por auto-vinculação e até de princípios constitucionais); (iv) ou qualquer fundamento relacionado com uma vontade defeituosa (designadamente, o erro de facto).

            Reconhecida judicialmente a invalidade do acto administrativo que envolve o exercício do poder discricionário importa saber qual o sentido da decisão do Tribunal no que concerne à reposição da legalidade (arts. 66.º e seguintes do CPTA).

A este propósito, o artigo 3.º/ 3 do CPTA distingue claramente duas vias, conforme a prática e o conteúdo do acto sejam estritamente vinculados à lei ou envolvam alguma margem de discricionariedade: no primeiro caso, a própria sentença do órgão jurisdicional impõe a prática do acto devido (e.g. artigo 71.º/1), podendo até mesmo, nalguns casos produzir os seus efeitos (164.º/4, al. c) e 167.º/6 do CPTA), ao passo que, no segundo, se limita a providenciar pela concretização material do que se determina na sua decisão.

            Esta diferente solução justifica-se pelo facto de o Tribunal se não poder substituir à AP na prática de acto administrativo quando este envolva um poder discricionário que só a esta última incumbe exercer. De contrário, colocar-se-ia em crise o princípio da separação e interdependência de poderes reafirmado pelo n.º 1 do mesmo artigo 3.º que veda aos Tribunais apreciar da conveniência ou oportunidade da actuação da AP, ou seja, confundir-se-ia o dever de administrar (pela administração) com o dever de julgar (pelos tribunais).

            Mas em que se consubstancia então a expressão “providenciar pela concretização material do que foi determinado na sentença” constante do artigo 3.º n.º 3?

Embora o tribunal esteja impedido de proferir uma sentença que envolva a obrigação da emissão de um acto que incida sobre matéria que recaia no campo dos poderes discricionários da Administração, incumbe-lhe verificar da conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e princípios de Direito a que esta está obrigada.

A solução encontrada e plasmada no art. 71.º permite assim prever as situações em que  (i) a prática do acto devido corresponde a um acto ilegalmente recusado ou omitido – termos em que a condenação será feita apenas se a lei for clara quanto ao sentido de impor uma actuação, ou quando o tribunal considere que a administração deverá, atendendo às circunstâncias do caso, agir num único e determinado sentido (redução da discricionariedade quanto à oportunidade de actuação), ou em que (ii) a prática do acto devido corresponde à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário, sendo que a sua emissão é exigida (o que quer dizer que nem sempre o conteúdo está legalmente pré-determinado ou vinculado) – aqui o tribunal poderá condenar a AP à prática do acto, delineando o quadro de facto e de direito em que esses poderes deverão ser exercidos (Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo administrativo, Almedina, 2013, p. 94).

O n.º 2 desta norma estatui que, quando se esteja perante a emissão de um acto de conteúdo discricionário, o tribunal deve determinar o conteúdo do acto a praticar sempre que a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível (redução da discricionariedade a zero). Nos restantes casos, deverá apenas explicitar as vinculações a observar pela administração na emissão do acto devido, sem precisar o sentido da decisão (o que não impede que a sentença se refira as ilegalidades em que incorreu o acto, exigindo à administração que actue de novo, evitando a mesma ilegalidade, ao especificar os aspectos vinculados a observar).

Pelo exposto, verifica-se que a condenação à prática do acto administrativo nem sempre terá o mesmo sentido: poderá versar sobre as especificações a ter em conta quanto ao conteúdo do acto a praticar mas poderá também, em casos excepcionais, versar sobre o acto a praticar quando exista para o caso apenas uma única solução legalmente admissível.

Poderá ainda a sentença incidir apenas sobre a própria condenação, sem qualquer especificação quanto ao conteúdo do acto (casos de inércia ou omissão por parte da AP ou em que esta invocou infundadamente a existência de questões prévias para se recusar a apreciar a pretensão). Aqui o tribunal exige apenas que o acto seja reapreciado, podendo, eventualmente, explicitar algumas vinculações a observar.

Em resumo, para os casos em que o acto administrativo envolva o exercício de poderes discricionários, e com vista a salvaguardar o aludido princípio da separação de poderes, a doutrina subjacente à solução encontrada pelo CPTA é a de que um interessado que vê o seu direito frustrado pelo indevido exercício ou não exercício de um poder discricionário por parte da AP, não poderá sem mais recorrer de imediato ao tribunal, para que este se substitua à administração, praticando o acto devido. Considera-se suficiente e adequado que requeira ao tribunal que condene a AP à respectiva prática.

Tal solução parece proporcionar ao interessado a adequada tutela judicial no plano declarativo já que, neste particular, objectivo do controlo jurisdicional não será tanto o de eliminar os espaços de decisão da AP, mas sim o de salvaguardar o dever de cumprir a Lei e o Direito em toda a extensão em que a conduta da AP se deva reger por regras e princípios jurídicos.
 
Por Diana Silva Pereira, n.º 21513

O papel do Tribunal Constitucional na erosão das garantias dos administrados

A relação entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo é comumente ilustrada pela doutrina como uma relação entre irmãos, Bouboutt chama-lhes “irmãos siameses”[1]. A mesma ideia de dependência reciproca resulta da tese clássica de Fritz Werner de que “o Direito Administrativo é Direito Constitucional concretizado”.

A história da evolução do sistema de contencioso administrativo em Portugal demonstra-nos que no nosso ordenamento essa relação fraternal era dominada pelo distanciamento e pela indiferença, parecendo ter subjacente o lema, retirado do título de música de Rino Gaetano, “Mio fratello è figlio único” (o meu irmão é filho único). O auge dessa desconexão entre a normatividade constitucional e a normatividade administrativa ocorreu no período compreendido entre a revisão Constitucional de 1989 e a Reforma de 2004, da qual resultou o  “Grande salto em frente” dado pela Constituição em matéria de garantias dos administrados. Este período pode ser perfeitamente caracterizado recorrendo ao lema de Deng Xiaoping “Um País dois Sistemas” (de contencioso administrativo), por um lado o que se encontrava estabelecido na CRP, e que alguma Doutrina entendia como “uma espécie de super-ego constitucional (necessitado) de alguma terapia hermenêutica [2]”, resultante de um “golpe palaciano, (que procurou) subjugar o Direito Administrativo e a sua Justiça”[3] , e por outro o resultante da legislação ordinária e que em muitos casos se opunha ao constitucionalmente consagrado.

De uma análise meramente positivista, ou seja tendo apenas em conta o panorama dado pela normatividade estática, fica-se com a sensação de que no ordenamento Português se está perante um situação de polícia bom, polícia mau, sendo que o primeiro papel caberia ao legislador constitucional e o segundo ao legislador ordinário, no entanto se atendermos a uma análise dinâmica da normatividade constitucional, ou seja, de um ponto de vista de Law in action, acaba-se por concluir aquilo que qualquer fã de séries policiais sabe, o polícia bom encara apenas uma persona, o que significa que por vezes chega a ser tão mau como o outro, e que alguma da sua bondade é meramente formal. Assim sendo é de extrema importância ter em conta o papel dos juízes “no processo construtivo da juridicidade vigente”[4].

A erosão judicial é um fenómeno que resulta da aplicação e interpretação das regras criadas pelo legislador de forma a esvaziar e a subverter o seu conteúdo. Este tipo de activismo judicial Contra constitutionem leva a que se estabeleçam discrepâncias entre a dimensão material e a dimensão formal da constituição[5].

O exemplo paradigmático de uma erosão judicial é o caso da interpretação ab-rogante levada a cabo pela jurisprudência do princípio constitucional de transição para o socialismo.[6]

Ao nível do Direito Constitucional do Contencioso Administrativo, um dos casos mais notório de erosão esteve relacionado com o problema da suspensão da eficácia dos actos administrativos, uma vez que o Tribunal Constitucional ao invés de garantir uma maior protecção do particular justificando-a directamente em princípios constitucionais, optou por afirmar que se tratava de “uma garantia sem assento constitucional, apenas concedida pela lei, que não decorre do direito de acesso aos tribunais, nem da garantia de recurso contencioso”[7], desprotegendo deste modo as situações nas quais ocorreria inutilidade da lide após a execução do acto. Actualmente esse problema já se encontra ultrapassado com a consagração de meios de tutela cautelar eficazes no processo administrativo, no entanto não deixa de ser um exemplo ilustrativo do comportamento do Tribunal Constitucional.

Hodiernamente o exemplo mais flagrante do fenómeno da erosão judicial relaciona-se com a manutenção do recurso hierárquico necessário.

Com a 2ª revisão Constitucional o pressuposto para a impugnação dos actos administrativos passou a ser o da lesividade do acto, tendo sido abandonado pelo texto constitucional os pressupostos da executoriedade e da definitividade, o que gerou a inconstitucionalidade das normas que estabeleciam o recurso hierárquico necessário como pressuposto processual.

No entanto o legislador ordinário com o beneplácito do Tribunal Constitucional não retirou todas as consequências do direito fundamental de impugnação contenciosa de actos administrativos. São várias as sentenças em que o Tribunal Constitucional se pronuncia pela constitucionalidade da figura do recurso hierárquico necessário, nomeadamente nos acórdãos 9/96; 603/95; 499/96; 115/96; 425/99; 333/00; 99/01; 185/01; 283/01; 438/02;106/08 e 564/08.

 A manutenção do recurso hierárquico necessário continua a ser uma das razões pelas quais mesmo neste novo milénio o direito administrativo ainda é direito constitucional por concretizar[8] e isso resulta não apenas da inércia do legislador ordinário mas também da acção erosiva das garantias do particular levada a cabo pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.

José Miguel Toste nº20876




[1] Pereira da Silva, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise; 2ª Edição, Almedina, Pág. 169
[2] Colaço Antunes, Luís Filipe; O Direito Administrativo e a sua Justiça no início do século XXI, Almedina pág. 99
[3] Colaço Antunes, Luís Filipe; O Direito Administrativo e a sua Justiça no início do século XXI, Almedina pág. 126
[4] Fernando José Bronze Apud  Otero, Paulo; Legalidade e Administração Pública; Almedina pág. 380
[5] Pereira da Silva, Vasco; Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo; Almedina pág. 66
[6] Otero, Paulo; Legalidade e Administração Pública; Almedina pág. 535
[7] Acórdão do Tribunal Constitucional 173/91
[8] Pereira da Silva, Vasco; Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo; Almedina pág.96

"perchè è convinto che anche chi non legge Freud / può vivere cent'anni" (porque ele está convencido de que mesmo aqueles que não lêem Freud / pode viver cem anos) Será que os juízes do Tribunal Constitucional e o legislador ordinário também são dessa opinião e por isso não têm a psicanálise cultural do C. Adm. em dia?

O Desafio da Europeização da Justiça Administrativa



A União Europeia, assente em princípios fundamentais, e a sua ordem jurídica estão em constante evolução, mutação, trata-se dum processo de integração evolutivo e dinâmico, exigência da situação contemporânea vivida na Europa. Ambiciona-se principalmente a integração política e económica que tem sido conquistada através dum processo contínuo e gradual, que teve o seu início com a 1ª Guerra Mundial e continua deveras presente… Houve avanços, retrocessos, mas estamos em constante movimento… O alargamento da União Europeia trouxe consigo a demanda de mais coesão europeia, a integração teve que ser aprofundada de forma equilibrada entre os Estados, buscando uma uniformização saudável, que respeitasse, no entanto, determinados princípios como por exemplo o princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados membros; o princípio do respeito pela diversidade cultural dos povos europeus; o princípio da solidariedade… princípios que podem ser tidos como a essência do espírito europeu. Deparamos nos com uma realidade complexa que também se encontra exposta à globalização… O desafio será assim uma breve análise do Direito do Contencioso Administrativo à luz da europeização. O cidadão da União com a europeização viu os seus direitos e garantias nacionais a ser expandidos (art.2 do Tratado da União Europeia), tendo este facto presente, iremos nos debruçar essencialmente sobre o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o principio da equivalência e os direitos fundamentais, cuja defesa é alcançada principalmente através de meios comuns do contencioso administrativo que são as acções e as providências cautelares… O cidadão europeu tem assim garantias contenciosas ao seu dispor, para que se possa defender face a actos de administração nacional ou europeia que são fonte de dano. O direito do contencioso administrativo realiza assim o princípio e o direito à tutela jurisdicional efectiva, cabe analisar como o faz à luz da europeização.

Tendo em conta a divisão que o Professor Vaz Pereira da Silva faz para distinguir as três fases principais na evolução do contencioso administrativo, devemos nos localizar, na terceira fase, a fase do crisma ou da confirmação, para nos referimos à europeização. A referida terceira fase, pode ser subdividida em 2 períodos: o da constitucionalização e no período que iremos destacar e que tem realmente relevância para a nossa abordagem do trabalho, a europeização. Com o surgimento dum Direito Europeu do Contencioso Administrativo houve uma estreita aproximação da justiça administrativa dos estados membros da União Europeia e um consequente aperfeiçoamento dos meios processuais. Há assim uma crescente convergência do Direito Contencioso Administrativo dos diferentes estados membros e são assim lançados os dados dum novo processo administrativo europeu. O Professor Vaz Pereira da Silva ilustra que a europeização dá início à uma nova fase, há assim um corte, uma superação dos traumas da infância do acto administrativo que o Professor refere na sua obra. Ou seja, as divergências históricas que marcaram o passado de forma acentuada e traumática são finalmente superadas. A europeização tem vindo a ser reforçada pelo surgimento de novas fontes europeias relevantes respeitantes ao Contencioso Administrativo, chega-se mesmo a falar já num processo administrativo europeu. Como sabemos, a União Europeia constitui uma ordem jurídica própria, que é acolhida por todos os estados membros e nomeadamente por Portugal nos termos do art.8 da nossa Constituição. Podemos assim afirmar que no fundo as administrações dos respectivos Estados membros, são transformadas em administrações de matriz europeia, pois é através desse processo transformativo que os Estados membros garantem a realização das tarefas administrativas. O Professor refere adicionalmente a existente integração das administrações nacionais com a administração comunitária. Para possibilitar esse processo integrativo, é necessário que sejam respeitados três princípios fulcrais: a integração normativa, a proibição de discriminação e o princípio da cooperação. O juiz nacional parece portanto ser de certa forma um juiz comunitário quando aplica o Sireito Comunitário. Cabe referir que a execução administrativa do Direito Comunitário tem duas vias alternativas: a execução pode ser levada a acabo pelo aparelho administrativo comunitário (execução directa) ou pode ser levada a cabo pelas variadas estruturas que integram a Administração Pública dos Estados membros (execução indirecta). São assim traçados novos desafios, pois a progressiva comunitarização dos modelos administrativos nacionais, demanda um repensar do direito administrativo, pois tal como o Professor Jürgen Schwarz chama a atenção, é impensável os administrativistas ignorarem os fenómenos europeus, pois são eles que envolvem e moldam o direito administrativo. O Professor Otto Bachof refere que o Direito da União Europeia é essencialmente Direito Administrativo, aprece-nos oportuno dizer que se trata dum direito administrativo concretizado. Estabelece-se assim uma correlação entre o direito administrativo europeu e o direito administrativo nacional, que por sinal é o motor de realização do direito europeu. São assim principalmente os Estados membros a executar as decisões europeias, estamos assim, como diz o Professor Parejo Alfonso, perante um “federalismo de execução”. O Professor Paulo Otero e o Professor Fausto Quadros, ao referirem-se à comunidade europeia, fazem questão de enfatizar, que se trata duma “ Comunidade de Direito Administrativo”. O Professor Vaz Perreira da Silva, observando o Direito Administrativo, constata que este está cada vez mais europeizado, trata-se dum verdadeiro fenómeno. Esse facto explica-se, tendo em conta o pluralismo normativo existente no quadro das ordens jurídicas nacionais e tendo presente que os direitos administrativos nacionais estão cada vez mais numa relação de aproximação significativa. Há pois uma visível interacção entre o tribunal das comunidades e os direitos administrativos constitucionalmente consagrados a nível nacional. Cabe assim salientar, que os direitos administrativos dos estados membros da União Europeia já não são meramente determinados a nível nacional, pois com a europeização paira sobre eles uma marcante influencia europeia. Os tribunais administrativos estão assim condicionados a também aplicar Direito Europeu, tendo portanto conquistado um papel principal na refundação do direito administrativo, intervindo na sua criação de forma activa e eficiente. Em Portugal e nos outros Estados membros tem-se assim assistido a uma verdadeira reelaboração do direito administrativo e testemunhou-se uma aproximação das ordens jurídicas de matriz românica a common law, há uma aproximação e porventura uma convergência. Tem-se vindo a formar progressivamente a criação dum ius commune e a tem-se principalmente abolido fronteiras históricas entre os Estados Membros.

O direito ao respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos da União Europeia encontra-se previsto no art.6.º,n.º2 TUE. É ainda de acrescentar que como cidadão europeu, temos também direito a uma boa administração, como refere o art.41.º/1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Sobressai assim a importância do conceito de Cidadão Europeu e as suas respectivas implicações na Expansão dos Direitos e garantias dos nacionais dos Estados Membros. Há por exemplo a possibilidade, o direito, de se queixar ao Provador de Justiça Europeu. Qualquer cidadão da União, bem como qualquer pessoa singular ou colectiva com residência ou sede estatutária num Estado Membro, podem dirigir-se ao Provedor de Justiça Europeu para manifestar as suas queixas no que diz respeito a casos de má administração na actuação das instituições ou organismos comunitários. A União Europeia é uma comunidade de direito em que os Estados membros são expostos a um controle, pois os seus actos tem de estar conformes com os Tratados.

 

Olhando agora para a Terra Lusitana, recorde-se, que em Portugal até 2004 havia um verdadeiro défice de constitucionalização e de europeização. Verificava-se a falta de concretização do modelo constitucional de justiça administrativa, mas tal falha teve termo com a reforma de 2004, que trouxe consigo a concretização do modelo europeu e constitucional duma justiça administrativa que se caracteriza pela jurisdionalização plena, tendo como objectivo a efectiva protecção dos direitos dos particulares. Há na nossa Constituição uma garantia à tutela jurisdicional efectiva em matéria administrativa. Os administrados tem direito de acesso ao direito e aos tribunais, mas a tutela jurisdicional não se resume meramente a esse direito. A decisão judicial, tem de ser, à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva, obtida através dum processo equitativo, num prazo razoável e as sentenças proferidas tem der ser efectivas (art.268.º, n.º4 e ss que concretiza o art.20 CRP). No CPTA (art.2.º,n.º 2) o princípio constitucional referido é reforçado e confirmado, trata-se duma espécie de concretização. O Professor Mário Aroso de Almeida dá uma panorâmica da relação da Constituição com o CPTA e refere que “o propósito primacial do CPTA é o de concretizar, no plano da legislação ordinária, o imperativo constitucional de assegurar que os tribunais administrativos proporcionem uma tutela jurisdicional efectiva a quem a eles se dirigir em busca de protecção”. A tutela jurisdicional efectiva tem assim de ser assegurada quanto à disponibilidade de acções ou meios principais adequados, quanto ao plano executivo e cautelar e quanto às providências indispensáveis para garantir a utilidade da sentença, tal como a sua efectividade. Com a europeização há, porém, também a manifestação duma dimensão europeia e não meramente nacional, do direito à tutela jurisdicional efectiva. O Tribunal da Justiça põe em causa o efeito preclusivo do direito de acção contra as autoridades públicas, constante de legislação nacional, quando se verifica uma incompatibilidade entre o Direito Europeu e o Direito Estadual. Além do mais, tem-se conferido aos tribunais nacionais poderes de conhecimento oficioso dos casos: Emmott, Denkavit Internacional, Van Schindel e Peterbroek. Os Tribunais comunitários por sua vez, encontram-se limitados pelo princípio da competência de atribuições, daí pode se retirar que os tribunais dos Estados membros são, por sua vez, a instância comum de aplicação do Direito Comunitário. Temos como base legal o art.40 parágrafo terceira da CECA “Quaisquer outros litígios entre a Comunidade e terceiros, a que não sejam aplicáveis as disposições do presente Tratado ou os regulamentos de execução, serão submetidos aos tribunais nacionais” e o artigo 240.CE “Sem prejuízo da competência atribuída ao Tribunal de Justiça pelo presente Tratado, os litígios em que a Comunidade seja parte, não ficam por este motivo, subtraídos à competência dos órgãos jurisdicionais nacionais”. Há até doutrina que vai mais longe e defende que do ponto de vista funcional, há uma conversão dos tribunais nacionais em tribunais comunitários, quando os tribunais nacionais são chamados a dirimir litígios que envolvam a aplicação do direito comunitário. O Professor Paulo Otero ilustra de forma exemplar as consequências da europeização para a administração pública nacional. Refere que houve uma ampliação material das tarefas da administração pública que determinou uma alteração do próprio papel da Administração nacional, esta apesar de pertencer, a nível estrutural, ao Estado, a nível funcional assume uma natureza comunitária. O Professor refere que há quem leve esta vertente de raciocínio mais longe e fale numa “Administração interna servente da Administração comunitária”. Mas penso que é ir longe demais, visto que os Estados mantem claramente uma autonomia processual, são eles que definem as regras de competência e as regras processuais (ETAF art.8, 11 Anexo 325/2010). Temos no entanto de ter presente que não se trata duma autonomia processual plena, há limitações. Cabe assim referir os dois limites essenciais: o princípio da equivalência e o princípio da efectividade da tutela jurisdicional. Podemos atender ao acórdão 27 de Junho de 2013 ( processo C-93/12 (tratado na aula prática)) que dá uma panorâmica dos referidos princípios (art.47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e do princípio da equivalência. Encontramos nos no ambito de ajudas da Política Agrícula Comum. Visa-se evitar que as acções destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos dos particulares, que a União Europeia lhes conferiu, não sejam exercidos em condições menos favoráveis do que as previstas para as acções destinadas a proteger os direitos resultantes de possíveis regimes de ajudas a favor dos agricultores previstos, por sua vez, pelo direito interno. Não se admite que sejam causados aos particulares entraves ou inconvenientes processuais. As regras da União Europeia não podem ser assim mais desfavoráveis que as regras nacionais, tal seria ir contra a ratio do sistema. Para ilustarar melhor o princípio da tutela jurisdicional efectiva, cabe reafirmar que são também os tribunais nacionais que de certa forma salvaguardam a ordem jurídica europeia. O acórdão Peterbroeck de 14.12.1995 demonstra a articulação das normas processuais nacionais com as normas europeias. No referido caso o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se, no ambito de reenvio prejudical, a propósito da interpretação do direito da União Europeia, relativamente ao poder do juiz nacional de apreciar de forma oficiosa a compatibilidade duma norma de direito nacional com o Direito da União Europeia. No referido acórdão e a nível jurisprudencial (acórdãos Rewe e Comet), o Tribunal de Justiça delimita a autonomia processual dos Estados Membros e impõe-lhe limites. Assim sendo, as modalidades processuais nacionais que garantem a nível interno a protecção dos direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico europeu, “não podem ser menos favoráveis do que as respeitantes a acções judiciais similares de natureza interna (princípio da equivalência), nem tronar impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade)”. Verificamos assim no acórdão Peterbroeck a necessidade de analisar a norma europeia num contexto nacional e vice versa. Apesar da autonomia da ordem jurídica europeia, a sua efectividade encontra-se dependente da intervenção do juiz da administração. É correcto referir, tal como faz o Professor Marcílio Filho, que o juiz nacional se encontra sobre liberdade vigiada, pois tem de conciliar obrigatoriamente as normas processuais nacionais com as exigências do Direito da União Europeia, tais exigências decorrer igualmente dos princípios acima referidos. Podemos assim dizer que cabe ao juiz nacional zelar pela eficácia do Direito da União Europeia, estando, para cumprir esse papel, autorizado a moldar, transformar ou até possivelmente afastar normas nacionais que podem dificultar a plena eficácia da ordem jurídica europeia.

Olhando pra a Carta, que tem no nosso ordenamento jurídico uma importância que se destaca. Há no entanto que relembrar que a Carta não integra formalmente o nosso ordenamento, visto que não tem a forma de convenção internacional, nem reveste natureza de direito comunitário derivado. Acrescente-se que o rol de direitos fundamentais que a Constituição faculta é mais denso e completo que a Carta. Observando nessa linha de pensamento, a nossa Constituição, percebemos, que há fortes limitações no que diz respeito à restrição dos direitos, liberdades e garantias, pois há uma imensa preocupação em salvaguardar o núcleo dos direitos. Devemos igualmente ter em conta o art.53.º da Carta que estabelece a prevalência de disposições constitucionais ou internacionais, desde que sejam mais proteccionistas dos cidadãos. Sendo assim e nos termos do artigo referido, na possibilidade de haver uma incompatibilidade entre o âmbito de protecção constitucional, que é mais favorável, e o âmbito de protecção menos favorável previsto na Carta, os tribunais nacionais têm a obrigação de garantir a aplicação da norma mais favorável, ou seja da norma constitucional. Concluímos assim, que no domínio dos direitos fundamentais, direitos de defesa e não só, há uma clara imposição de interpretar as disposições comunitárias à luz da nossa Constituição, pois ambiciona-se garantir o nível de protecção mais elevado. Torna-se visível que há uma repartição de competências entre os tribunais nacionais e os tribunais comunitários. Se olharmos para os Tratados, nota-se que estes definiram a relação entre o Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais, recorrendo a uma relação de estreita cooperação (art.234CE ilustra tal realidade de forma mais expressa), lealdade e fidelidade. A intervenção do Tribunal de Justiça não implica de todo a exclusão dos mecanismos internos próprios da justiça administrativa e da justiça constitucional. Tal como refere o Professor Paulo Otero, verifica-se pelo contrário, “um reforço duplicativo e concorrencial de mecanismos internos e comunitários de controlo da actividade de execução do Direito Comunitário pelas Administrações Públicas dos Estados-membros”.

Em suma, podemos dizer que a União Europeia nos lançou diversos desafios. A europeização da justiça administrativa tem trazido várias exigências. São os Estados Membros que ao assumirem o compromisso duma cooperação leal se vem obrigados a concretizar de forma efectiva o direito da União Europeia… Vivemos ainda num processo europeu integrativo, cujo papel principal é desempenhado pelo juiz nacional e pela administração, são eles que participam na construção do novo Direito Administrativo que não visa mais do que garantir a plena eficácia da ordem jurídica europeia, harmonizando-a com a ordem jurídica nacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia

Silva, Vasco Pereira da, “ Em busca do Acto Administrativo Perdido” Coimbra

Acordãos Peterbroeck, Rewe e Comet & Acordão 27 de Junho 2013 (C-93/12)

Amaral, Diogo Freitas/Almeida, Mário Aroso, “Grandes Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo”, 3ª edição, Coimbra, 2004

Almeida, Mário Aroso “ O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos” 4ª edição, Coimbra 2005

Campos, João Mota de “ Manuel de direito Comunitário” 3ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian 2002

Quadros, Fausto de “ Direito da União Europeia: Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia” Coimbra,Livraria Almeidina, 2004

Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço Vol I Almedina 2005

 

 

Verena Schneeberger nº19895
Os Poderes do Ministério Público

Segundo o art 291º da CRP compete ao Ministério Público representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar. Não obstante a multiplicidade e amplitude de atribuições do ministério publico, todas elas se reconduzem à realização da justiça e legalidade.
O Ministério Publico surge assim como um verdadeiro órgão independente com estatuto próprio e autonomia institucional. Trata-se de um órgão autónomo da administração da justiça e não de um órgão de natureza administrativa. Este órgão é dotado de governo próprio através da Procuradoria-Geral da Republica.
No ETAF encontramos dois artigos dedicados ao Ministério Público. Um primeiro no qual se enuncia genericamente as funções do MP, no âmbito do contencioso administrativo (art 51º) e outro no qual se estabelece a respectiva organização junto dos tribunais administrativos e fiscais (art 52º). Do primeiro destes preceitos podemos extrair e sistematizar um conjunto de poderes que a lei confere ao MP. Encontramos neste sentido três grandes grupos relevantes: Poderes de representação de outros sujeitos processuais; poderes de iniciativa processual em nome próprio e poderes de intervenção em processos intentados por outros sujeitos processuais.

Relativamente aos poderes de representação, o MP representa Estado em todos os tribunais. É em princípio o MP que é citado em sua representação nas acções em que o Estado seja parte. Quanto às demais pessoas colectivas (as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais) a intervenção do MP ocorre a título de patrocínio. Os seus representantes estão definidos nos respectivos Estatutos Político-Adminstrativos e na lei nº 169/99(quadro de competências e regime juridico e de funcionamento dos órgãos dos municípios e freguesias).A intervenção do MP exerce-se a pedido e cessa logo que constituído mandatário pela pessoa colectiva publica que é parte no processo (art 5º nº 2 do EMP).
Contudo, existem limitações a nível da representação de sujeitos processuais Não cabe ao MP assumir a representação ou patrocínio de ministérios ou pessoas colectivas que devam intervir como demandados nas acções em que esteja em causa a impugnação de um acto administrativo ou a sua omissão, a condenação à adopção ou abstenção de um comportamento ou o reconhecimento de direitos e interesses legítimos. O patrocínio cabe neste caso a licenciados em direito com funções de apoio jurídico (art 11 nº3 CPTA). Também não são representadas pelo MP as entidades independentes.
Assim, a intervenção principal do MP em representação do Estado confina-se às acções que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade tal como consagrado no art 11º nº2 1º parte. As demais pessoas colectivas (de população e território) serão sujeitas a um regime de patrocínio.  

Quanto aos poderes de iniciativa processual em nome próprio, o CPTA atribuiu ao MP amplas faculdade de por iniciativa própria deduzir pedidos perante os tribunais administrativos. Esta legitimidade não se limita ao poder de impugnar actos administrativos e pedir a declaração de ilegalidade de normas mas abrange outras pretensões nomeadamente no domínio das acções sobre contratos.
O MP pode desde logo impugnar qualquer acto administrativo que tenha por ilegal nos termos do art 55º nº1 do CPTA. Trata-se de defender o interesse geral da legalidade administrativa, sem dependência de especiais requisitos qualificativos, designadamente daqueles de que depende a sua intervenção processual em processos de iniciativa de outro sujeito processual (art 85º nº2 CPTA).  
Mais limitada é a legitimidade do MP para propor acções de condenação à prática de acto devido art 68 nº1 c) CPTA. Neste caso o MP só pode propor acções quando o dever de praticar o acto resulte directamente da lei e esteja em causa a ofensa de um interesse público especialmente relevante ou qualquer outro dos valores e bens referidos no nº2 do art 9º.
No contencioso regulamentar é de referir o poder o poder do MP requerer ao tribunal administrativo a verificação da omissão de normas cuja adopção seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação (art 77º CPTA)
 No domínio contratual além da legitimidade para as acções impugnatória de actos relativos ao procedimento de formação de contratos (contencioso pré-contratual) o MP passou a deter legitimidade para a acção de declaração de invalidade dos contratos celebrados pela administração (art40º nº1 b) CPTA).
Neste âmbito cabe ainda mencionar a acção popular administrativa (art9º nº2 CPTA) que veio atribuir legitimidade ao MP para a protecção de interesses difusos. Ao abrigo desta acção e para defesa dos valores e bens constitucionalmente protegidos o MP poderá interpor qualquer tipo de acção administrativa (impugnatória, de condenação à pratica de acto devido, sobre contratos e responsabilidade) e usar os meios cautelares adequados.

Por fim relativamente aos poderes de intervenção em processos intentados por outros sujeitos processuais o código continua a atribuir ao MP amplos poderes de contribuir como terceiro imparcial para a justa composição do litígio em diversas fases de processos intentados por particulares. Alguns desses poderes são a promoção de diligências de instrução; a emissão de parecer sobre o mérito da causa; suscitação de vícios novos, não arguidos pelo autor nas acções impugnatórias ou a legitimidade para recorrer de quaisquer decisões judiciais proferidas com violação de princípios constitucionais e legais.

Através da análise dos poderes de intervenção do MP no âmbito do contencioso compreendemos que este órgão é essencial na defesa da legalidade e do interesse público. Este órgão detém um amplo poder de iniciativa e intervenção processual reforçando a sua autonomia e demonstrando que a sua consagração constitucional tem de facto expressão ao nível institucional.       

Referências:

ANDRADE, J.C Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 9º edição, Almedina, 2007
CORREIA, José Manuel Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Lisboa. 2005
CADILHA, Carlos, «Dicionário de Contencioso Administrativo», Almedina, 2006
COSTA, Maria Isabel, O Ministério Publico no Contencioso Administrativo- Memoria e “Razão de Ser”

Maria Inês Matos Cavaco

Nº 21450

O Princípio da Separação de Poderes, discricionariedade administrativa e os poderes do juiz administrativo


O ‘porquê’ de um Processo Administrativo

 

À imagem do Processo Civil, o Processo Administrativo visa garantir a tutela jurisdicional efetiva das partes. Contudo, em relação a este último, o que o destrinça do primeiro é que uma dessas partes é a Administração Pública (ou um ente com funções públicas) e a base do litígio, que o conduz ‘à barra dos Tribunais Administrativos’, está legalmente prevista no artigo 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, plasmado na Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, consubstanciado pelo artigo 1º, n.º 1, do mesmo diploma – condição essencial para estarmos, então, perante um Processo Administrativo.

Na análise psicanalítica realizada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, a respeito do Contencioso Administrativo, percebemos os ‘traumas de infância’ deste ramo do Direito e percebemos os contornos que deram azo ao seu estado atual. O que fica por explicar não é a razão do seu aparecimento, nem a razão da sua existência, mas sim a da sua manutenção. Ou, por outras palavras, invocando os princípios que regem o nosso sistema jurídico-constitucional, nomeadamente o Princípio da Separação de Poderes, podemos perguntar por que razão é que, no atual estado de desenvolvimento da ciência jurídica, se justifica este ‘processo’? Procurarei dar uma resposta, centrado no ambiente metafórico proposto pelo citado professor, ainda que possa extravasar o caráter jurídico que se pretende neste tipo de comentário.

A evolução do Direito não é mais do que o reflexo legal da evolução da sociedade que o institui como elemento regulador. Assim, o aparecimento do Direito Administrativo, nos finais do século XVIII é, tão-só, o reflexo das grandes transições sociais da sua época, cujos ideais ficariam vertidos na regulação normativa proposta pelos estadistas, então emergentes. A Revolução Francesa, de 1789, é o marco mais significativo dessa evolução, que se traduziu, no plano político, numa transição de um sistema de Poder Absoluto, para um de cariz Liberal e, no plano legislativo, no surgimento de normas que limitavam (ou deveriam procurar limitar) o poder do Estado perante o indivíduo – este que era, agora, detentor de direitos inalienáveis, como o de propriedade, entre outros. Porém, toda a sua estrutura física do Estado tinha-se mantido inalterada. Como explica o Professor Vasco Pereira da Silva, esta manutenção decorria de diversos fatores, dos quais destaca: “a conceção do Estado e a separação de poderes, a reação contra a atuação dos tribunais do Antigo Regime, a influência do modelo do Conselho do Rei, a continuidade no funcionamento das instituições antes e depois da revolução”. De todas estas justificações históricas, que aquele douto professor expõe no ‘Divã da Psicanálise’, o sumo que se pode retirar para enquadrar este comentário é que, mais do que instituir um Estado assente nos ideais do Liberalismo, em prole da liberdade do indivíduo, os revolucionários depressa sentiram a tentação do ‘poder’ e trataram logo de abonar o controlo da sua hegemonia, garantindo que o poder judicial não perturbava a ‘haute mission’, que cabia, agora, à Administração Pública.

Apesar de toda a evolução do Direito em torno do Contencioso Administrativo, o ‘Pecado Original’, que tanto traumatizou o desenvolvimento ‘saudável’ deste ramo do ordenamento, ainda persiste. Se não, vejamos…

Neste ensaio, desprezo toda a evolução histórica portuguesa do Contencioso Administrativo, até à promulgação da Constituição vigente, contando que, no que respeita a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos administrados (seguindo a orientação clássica, caraterizada pelo Professor Vasco Pereira da Silva), “o particular não era titular de nenhuma situação jurídica subjetiva relativamente à Administração e que o Processo Administrativo era uma forma de autocontrolo administrativo, no qual o particular estava ao serviço do processo, desempenhando uma função similar à de um Ministério Público.”

A partir de 1976, o panorama legal altera-se substancialmente. Assim, antes da revisão constitucional de 1997, o legislador constitucional já tinha consagrado os instrumentos constitucionais necessários que relevavam para aquela tutela, ainda que o legislador ordinário pudesse fazer uma interpretação menos idónea, atendendo ao espírito do sistema constitucional vigente. Neste sentido, o artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), já consagrava o acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva e, quando conjugado com o artigo 268º, n.º 3, da CRP, impunha essa tutela perante a Administração Pública.

A dita revisão constitucional, que veio adicionar ao artigo 268º, da CRP, os n.os 4 e 5, trouxe consigo duas conclusões. Por um lado, seguindo as considerações da Professora Suzana Tavares da Silva, autonomizou “as garantias dos administrados relativamente à garantia da tutela jurisdicional efetiva em geral, [uma vez que] não basta apenas a garantia do acesso ao direito e aos tribunais (…), é ainda necessário que a lei assegure os seus direitos e interesses legalmente protegidos, podendo, em última instância, em caso de «falha do legislador», essa garantia ser dada pelo tribunal, em decorrência da aplicação direta dos preceitos constitucionais” – o que, do ponto de vista da proficiência da tutela jurisdicional, se mostrou necessário e eficaz. Por outro lado, leva-nos a concluir que, a ser necessário efetuar estas precisões constitucionais, o ‘trauma’ poderá ainda não estar completamente sanado e a Administração Pública ainda continua a ‘pecar’… Quanto mais não seja, sobrevalorizando a sua ‘haute mission’, em detrimento do Princípio insindicável da Separação de Poderes. Um exemplo significativo desse tipo de ‘pecado’, que releva para consubstanciar o que se acabou de afirmar, é o Acórdão n.º 18/2011, do Tribunal Constitucional (Tribunal este, cujos juízes [10, dos 13 que o compõem] são indicados pela Assembleia da República), cuja deliberação não julgou inconstitucional a Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, que duplicava as taxas de tributação de despesas de representação e as despesas com viaturas ligeiras de passageiros e mistas, aplicando-as retroativamente à data de 1 de janeiro de 2008. Perante manifesta inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Administrativo teve um entendimento contrário, o que levou a que o Tribunal Constitucional viesse, num segundo momento, a deliberar em sentido contrário (ou seja, no mesmo sentido do Supremo Tribunal Administrativo), através do Acórdão n.º 310/2012.

Posto isto, a nossa análise psicanalítica leva-nos a concluir que, sanado o ‘trauma’, o nosso ‘paciente’ tem encontrado mecanismos que o mantêm na ‘Graça de Deus’, procurando evitar a ‘tentação’ dos ‘pecados’ perpetrados por este ‘demónio’ a quem chamamos Administração Pública e o Processo Administrativo é essencial.

 

Paulo Neves

22216



Bibliografia:

            - Silva, Suzana Tavares da, «Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos administrados», in Revista de Direito Público e Regulação, Edições CEDIPRE, Coimbra, 2010.

- Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Edições Almedina, Coimbra, 2009.

O âmbito da jurisdição administrativa – A competência material dos tribunais administrativos



O âmbito da jurisdição administrativa – A competência material dos tribunais administrativos

O conceito de “competência” é definido pelo Prof. Marcelo Caetano como o “complexo de poderes funcionais conferidos por lei a cada órgão ou cargo para o desempenho das atribuições da pessoa colectiva em que esteja integrado”. A competência na área jurisdicional pertence aos tribunais, órgãos de soberania aos quais cabe administrar a justiça em nome do povo (art. 202º/1 CRP), sendo do nosso interesse, para este efeito, a competência para assegurar a defesa dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos, bem como para dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (202º/2 CRP). Não deve confundir-se “jurisdição” com “competência”, conceitos conexos mas distintos, na medida em que, nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09/09/2013, “jurisdição” corresponde ao “poder de julgar genericamente atribuído, na organização do Estado, ao conjunto de tribunais” e “competência” tem a ver com “a medida de jurisdição legalmente atribuída a cada um deles”.

Tradicionalmente, vigora a ideia de que a jurisdição administrativa não está a par da dos tribunais comuns, de jurisdição especializada. O mesmo é dizer que se trata de uma jurisdição autónoma, pautada pela existência de um órgão superior administrativo próprio, e cujos juízos se encontram submetidos a um estatuto próprio. Só através de revisão constitucional é que pode ser posta em causa a dualidade de jurisdições, isto é, entre tribunais judiciais (art. 211º CRP) e tribunais administrativos e fiscais (art. 212º CRP).

Quanto aos tribunais administrativos e fiscais, é da sua competência julgar as acções e os recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212º/3 CRP). Este preceito contempla uma reserva constitucional de jurisdição administrativa, ao regular que os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais devem ser dirimidos pelos tribunais administrativos e fiscais. Várias questões têm sido colocadas, a propósito da interpretação deste preceito constitucional. Afinal, resulta ou não uma reserva constitucional absoluta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais? Deverá admitir-se que litígios que não envolvam relações jurídicas administrativas e fiscais sejam apresentados perante tribunais administrativos? O art. 212º/3 CRP confere uma margem de liberdade ao legislador ordinário, ou este está vinculado ao critério enunciado na Lei Fundamental?
A este respeito, a Doutrina tem considerado que não há uma reserva absoluta de competência. Vieira de Andrade, apontando razões históricas e de capacidade e meios dos tribunais administrativos, admite que, pontualmente, haja litígios que envolvam relações jurídicas administrativas e fiscais que não sejam resolvidos por tribunais administrativos. Por sua vez, a Jurisprudência, nomeadamente o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Constitucional, pronunciaram-se pela não inconstitucionalidade de normas que subtraem à jurisdição administrativa litígios resultantes de relações jurídicas administrativas e fiscais. A este propósito, vejam-se os seguintes acórdãos: Ac TC 607/95, de 08/11; Ac TC 284/03, de 29/05; Ac STA de 14/06/2000, Processo nº 633; Ac STA de 27/01/2004, Processo nº 1116/03. Voltaremos a este assunto mais adiante.

Como decorre da última parte do nº 1 do art. 211º da CRP, os tribunais judiciais “exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, o que significa que estes tribunais constituem a regra dentro da organização judiciária. Por conseguinte, os restantes tribunais, de entre os quais os tribunais administrativos, verão a sua competência limitada às matérias que lhes são especificamente atribuídas.
A este propósito, várias normas se pronunciam. O enunciado do art. 1/1º do ETAF, sob a epígrafe “Jurisdição administrativa e fiscal”, constitui uma simbiose entre os art. 202º/1 e 212º/3 da CRP, ao determinar que “os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Rios de tinta têm corrido sobre estes preceitos, levando a várias considerações doutrinárias.
Gomes Canotilho e Vital Moreira comentam o art. 212º/3, referindo que “a competência dos tribunais administrativos deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns. A letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções, no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões, ou que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais”, podendo dizer-se que “os tribunais administrativos passaram a ser verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa”.
Noutra perspectiva, Freitas do Amaral posiciona-se com aqueles que consideram que “a relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade (“jus imperium”) ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”.
Numa outra linha, Vieira de Andrade defende que a percepção do conceito de “relação jurídica administrativa” pretendida pelo legislador constituinte, passa obrigatoriamente “pela distinção material entre o domínio público e o direito privado”. À luz de um critério estatutário, compreenderá “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. Segundo um critério material, é o resultado de um “regime de administração executiva, em que se define um domínio de actividade, a função administrativa, e, nesse contexto, um conjunto de relações onde a Administração é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.
Já Mário Aroso de Almeida assenta a interpretação do art. 1º/1 ETAF na convicção de que “os traços distintivos que permitem identificar as normas de Direito Administrativo, constitutivas de relações jurídico-administrativas” são a “atribuição de prerrogativas de autoridade ou (n)a imposição de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público”. Assim, o Direito Administrativo regula a actuação de todos os sujeitos jurídicos “que exerçam a função administrativa”, ou “quando e na medida em que (a sua actuação) se interseccione com o exercício da função administrativa”.
Como se verifica, deste modo, o art. 1º/1 ETAF deixou de assentar na tradicional distinção entre actos de gestão pública (regidos pelo direito público) e actos de gestão privada (regidos pelo direito privado), passando a contemplar uma posição que implica a prossecução do interesse público, por entidades públicas ou privadas, no âmbito do exercício de um poder público.

Aqui chegados, cabe remissão para o art. 4º ETAF. Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto supra-referido, este preceito “visa ampliar e reduzir o âmbito da jurisdição (administrativa), funcionando como norma especial em relação ao art. 1º, mas também como critério de interpretação”.
Se considerarmos que o art. 4º é taxativo, obtemos a solução bizarra de litígios que envolvam relações administrativas e fiscais, mas que não caibam no âmbito do preceito, serem julgados e decididos por tribunais judiciais. Por outro lado, se entendermos que o elenco do art. 4º não é taxativo, posição que nos parece a mais correta, designadamente pela utilização da expressão “nomeadamente”, estaremos no âmbito de jurisdição administrativa e fiscal. Com a reforma de 2004, procedeu-se a uma clarificação dos critérios de delimitação do âmbito de jurisdição administrativa previstos no preceito em análise, o que contribuiu para um melhor acesso à tutela jurisdicional dos interessados, e ainda para se evitarem conflitos de competência e consequente morosidade acrescida do funcionamento da Justiça.

Dada a extensão do art. 4.º e a quantidade de pontos que podem ser trazidos à colação neste âmbito, remetemos este aprofundamento para um post posterior.

Concluímos com a ideia, também já sublinhada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, de que temos nas relações jurídicas administrativas e fiscais o objecto do Contencioso Administrativo.


Referências bibliográficas:
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2013.
AMARAL, FREITAS DO, Direito Administrativo, vol. III.
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, A Justiça Administrativa – Lições, 12ª edição, Almedina, Coimbra, 2012.
CAETANO,  MARCELO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1991.
CANOTILHO, GOMES, e MOREIRA, VITAL, Constituição da República Portuguesa Anotada.
SILVA, PEDRO CRUZ E, Breve estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em matéria de responsabilidade civil e de contratos, Verbo Jurídico, 2006.
SILVA, VASCO PEREIRA DA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2009.

Referências jurisprudenciais:
Ac. Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 2452/12.7TJVNF-A.P1, de 09/09/2013

Legislação nacional:
Código de Processo dos Tribunais Administrativos
Constituição da República Portuguesa 1976
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais

Outros
Aula teórica de 10/10/2013, pelo Prof. João Miranda, FDUL.
Aula teórica de 17/10/2013, pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, FDUL.

Joana Guerreiro, n.º 19 647