Com a Reforma
de 2002, que culminou na aprovação do Código do Processo nos Tribunais
Administrativos (doravante CPTA), pela Lei 15/2002, de 22 de Fevereiro, e do
novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF), pela
Lei 15/2002, de 19 de Fevereiro, o contencioso administrativo pré-contratual
foi alvo de uma série de alterações inovadoras, designadamente a substituição
do regime previsto no DL n.º 134/98, de 15 de Maio, que até então vigorava,
pelo dos arts. 100.º a 103.º do CPTA.
O DL n.º 134/98, de 15 de Maio,
transpunha a Directiva Recursos (Directiva n.º 89/665/CEE, com as devidas
alterações pela Directiva n.º 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992),
que se traduzia na obrigação dos Estados Membros criarem condições e meios que
concretizassem a “rápida resolução dos diferendos relativos aos procedimentos
de formação de um conjunto de contratos” (cfr. NUNES, Adolfo Mesquita, O Processo…, p. 4). Por outro lado, o
referido diploma “integrava-se no contexto de uma reforma do contencioso
administrativo e da revisão constitucional de 1997” (cfr. NUNES, Adolfo
Mesquita, Ob. cit., p. 4), que, entre outras, procedia à alteração do preceito
do art. 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP),
garantindo aos administrados a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos
e interesses legalmente protegidos.
Os contratos administrativos
estão sujeitos a um procedimento administrativo (cfr. CORREIA, Sérvulo, Legalidade…, p. 575 ss.) – o
procedimento pré-contratual –, isto é, a uma “sucessão de actos e formalidades,
que se estruturam em fases mais ou menos articuladas, e são legalmente fixados
e ordenados, desde o momento em que a Administração Pública aceita contratar,
até ao momento da escola de um co-contratante (e da proposta) e em que se
tornam perfeitos os termos e condições em que aceita contratar” (cfr.
ALEXANDRINO, José de Melo, O
procedimento…, p. 52).
O contencioso pré-contratual, em
traços gerais, é entendido como “a tutela jurisdicional dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos particulares em procedimentos para a formação
dos contratos públicos, (e) abarca todos os procedimentos seguidos pela
administração com vista à escolha do seu co-contratante, desde que caibam no
âmbito de aplicação objectiva da lei adjectiva vigente” (cfr. DIAS, Paulo
Linhares, O Contencioso…, p. 758). A
impugnação de actos administrativos no contencioso pré-contratual segue a
tramitação de processo urgente, por remissão do art. 36.º, n.º 1, al. b), do
CPTA. O seu regime especial está vertido nos arts. 100.º a 103.º do CPTA, dispondo
o n.º 1 do art. 100.º do CPTA que será de aplicar, a título subsidiário, o
disposto na secção I do capítulo II do título III, que corresponde aos arts.
50.º a 65.º do CPTA. Outra remissão é feita, no que concerne à tramitação deste
processo, para o disposto no capítulo III do título III, que corresponde aos
arts. 78.º a 96.º do CPTA (art. 102.º, n.º 1 do CPTA). Mas, afinal, quais são
os actos sujeitos a impugnação contenciosa, referidos no art. 100.º, n.º 1 do
CPTA? A este propósito, é possível apontar duas teorias:
1)
Teoria da incorporação, que defendia que todos
os actos de formação do contrato se incorporavam nesse contrato, assim que
assinado, formando com ele um todo indivisível, que resultava no surgimento de
direitos adquiridos para as partes, e em que quaisquer vícios e ilegalidades de
que padecessem contaminavam o contrato. A impugnação desses actos de formação
era excluída , pois determinava a impugnação do próprio contrato.
2)
Teoria dos actos destacáveis (surge na França,
no séc. XX, tendo especial relevância o Acórdão Martin) permite a impugnação
contenciosa dos actos de formação do contrato, mesmo após a sua conclusão, como
se fossem actos independentes, autónomos do próprio contrato. Releva a posição
de terceiros que, impedidos de impugnar contratos dos quais não eram parte, se
viram impossibilitados de impugnar os actos de formação do contrato.
A teoria dos actos destacáveis foi acolhida, em
Portugal, entendendo-se que certos actos administrativos preparatórios poderiam
ser “destacáveis em relação ao contrato, e impugnáveis autonomamente, através
de recurso contencioso de anulação” (cfr. ESTORNINHO, Maria João, Algumas…, p. 21). Na mesma linha, o
Professor Freitas do Amaral defende que o objecto de impugnação dos contratos
administrativos é a decisão negativa que impede a celebração do contrato, e não
a decisão positiva de contratar (cfr. AMARAL, Diogo Freitas do, Apreciação…, p. 174 ss.). Já o Professor
Sérvulo Correia defende que são actos destacáveis aqueles que, desde logo,
produzem efeitos jurídicos (cfr. CORREIA, Sérvulo, Noções…, p. 275-276) e cujos “efeitos específicos ainda possam vir
a ser extintos ou modificados por actos subsequentes do mesmo procedimento”
(cfr. CORREIA, Sérvulo, Legalidade…,
p. 588). A Professora Alexandra Leitão destaca, no âmbito de um procedimento
pré-contratual, um conjunto de actos destacáveis lesivos, designadamente “a
escolha do procedimento de selecção; a falta de convite nos procedimentos
restritos; a imposição de cláusulas discriminatórias nos cadernos de encargos
(…); a falta de publicação do anúncio (…); a errada composição do júri, da
comissão de abertura do concurso ou da comissão de análise das propostas; a
submissão dos concorrentes a obrigações, desvantagens ou regalias diferentes; a
não admissão, admissão condicionada e a admissão dos concorrentes e das
propostas; a falta de audiência prévia; a decisão de não adjudicar o contrato ou
de anular o procedimento; a adjudicação; a minuta do contrato; a própria
celebração do contrato ou a recusa em fazê-lo” (cfr. LEITÃO, Alexandra, A protecção…, p. 199). O Professor Vasco
Pereira da Silva, mais controverso, considera susceptíveis de impugnação
contenciosa todos os actos administrativos (cfr. SILVA, Vasco Pereira da, Em busca…, p. 660 ss.).
Esta tese foi consagrada no
art. 9.º, n.º 3 do anterior ETAF, no art. 185.º do Código de Procedimento
Administrativo (doravante CPA) e ainda no já mencionado DL n.º 134/98, de 15 de
Maio. Na falta de elenco legal dos actos destacáveis, a Professora Maria João
Estorninho vem defender que este dependerá “em cada momento, das opções
doutrinais e legais” que vigorem (cfr. ESTORNINHO, Maria João, A propósito…, p. 5).
Como já tivemos oportunidade
de referir, o âmbito de aplicação do recurso urgente no contencioso
pré-contratual vertido no DL n.º 134/98, de 15 de Maio, viu o seu regime
ampliado com a introdução dos arts. 100.º a 103.º do CPTA, que inclui agora o contrato
de concessão de obras públicas, figurando ao lados dos já previstos contratos
de empreitada, de prestação de serviços e de fornecimento de bens. Assim,
contrariamente ao fixado no regime geral de impugnação de actos administrativos
(veja-se o art. 51.º do CPTA), em que são susceptíveis de impugnação todos os
actos praticados pela Administração com eficácia externa (n.º 1), e ainda as
decisões administrativas “proferidas por autoridades não integradas na
Administração Pública e por entidades privadas que actuem ao abrigo de normas
de direito administrativo” (n.º 2), no processo urgente o legislador optou por
não abranger todo e qualquer tipo de procedimento pré-contratual, apesar de
caminharmos nesse sentido. Nas palavras do Professor Vieira de Andrade, assim
é, pois não podemos ceder a uma “psicose da urgência, que leva a confundir
celeridade com urgência” (cfr. ANDRADE, Vieira de, Tutela…, p. 46. Noutro sentido, cfr. ESTORNINHO, Maria João, Contencioso…, p. 14-15).
Além dos já mencionados
actos administrativos, são ainda susceptíveis de impugnação directa: “o
programa, o caderno de encargos ou qualquer outro documento conformador do
procedimento de formação dos contratos” supra-referidos, impugnação essa que
transpõe fielmente o pretendido pela Directiva Recursos e confere ao particular
uma tutela mais completa e adequada face à “ilegalidade das especificações
técnicas, económicas ou financeiras” (art. 100.º, n.º 2 do CPTA) de que
eventualmente padeçam os mencionados documentos. Salgado de Matos defende que, ao
não se “exigir o preenchimento dos apertados requisitos do art. 73.º, n.º 1 e 2”
do CPTA, o legislador pretendeu conferir legitimidade aos interessados,
alargando e aperfeiçoando “as possibilidades de reacção dos particulares” (cfr.
MATOS, André Salgado de, Avaliação…,
p. 9). Tem sido levantada a questão, neste âmbito, de como proceder à
conciliação dos arts. 100.º, n.º 2, e 101.º do CPTA. A este propósito,
pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, num Acórdão de 20 de Novembro
de 2011, a que corresponde o Processo n.º 0800/11, por uma interpretação dos
preceitos que deveria ter “em conta os elementos histórico e teleológico e a
unidade do sistema jurídico”, o que o conduziu a “considerar que o n.º 2 do
art. 100.º do CPTA deve ser entendido como estatuindo uma mera possibilidade de
impugnar as normas do programa do concurso (…) e não como uma obrigatoriedade de
o fazer, sob pena de preclusão do direito de invocar essas ilegalidades nos
actos do procedimento subsequentes nas quais se repercutam”.
É possível tecer a conclusão,
conforme à opinião dominante na Doutrina portuguesa, que o procedimento
pré-contratual se inicia com a decisão de contratar (cfr. ALEXANDRINO, José de
Melo, O procedimento…, p. 53;
QUADROS, Fausto de, O concurso…, p.
706) e termina com a adjudicação do contrato. Quanto a esta última parte,
conseguimos distinguir duas teses:
1)
Uma primeira, que distingue a adjudicação
enquanto acto administrativo anterior, da celebração enquanto acto
administrativo posterior, sendo que a celebração corresponde à materialização
da vontade de contratar (cfr. AMARAL, Freitas do, Direito…, p. 435).
2)
Uma segunda, segundo a qual num acto
administrativo a vontade de contratar é materializada unilateralmente (cfr.
CORREIA, Sérvulo, Legalidade…, p. 579 ss.), isto é, consubstancia a vontade da
Administração, sendo susceptível de impugnação contenciosa, e não o vê apenas
como um procedimento direccionado para a celebração do contrato.
O art. 100.º do CPTA, no seu n.º 3, equipara ainda a actos
administrativos os “actos dirigidos à celebração de contratos do tipo previsto
no n.º 1 que sejam praticados por sujeitos privados, no âmbito de um
procedimento pré-contratual de direito público”, submetendo-os à jurisdição dos
tribunais administrativos pelo art. 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF.
Quanto ao critério de
impugnabilidade, por remissão do art. 100.º, n.º 1 do CPTA, aplica-se a regra
geral prevista no art. 51.º do CPTA, ou seja, os actos administrativos com
eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar
direitos ou interesses legalmente protegidos (n.º 1). Assim, à partida, para
efeitos de impugnação, releva não apenas o facto de o acto ser lesivo ou ser
susceptível de provocar lesão, mas sim de ser dotado de eficácia externa,
transpondo-se o disposto no art. 268.º, n.º 4 da CRP, “que estabelece um
direito fundamental de impugnação dos actos administrativos lesivos dos
particulares, no âmbito de um Contencioso Administrativo plenamente
jurisdicionalizado e de natureza predominantemente subjectiva, porque destinado
a garantir a tutela integral e efectiva dos particulares” (cfr. SILVA, Vasco
Pereira da, O Contencioso…, p. 342). Sublinha
ainda o Professor Vasco Pereira da Silva que a susceptibilidade de lesão de
direitos trata-se de um pressuposto processual do acto administrativo e não da
legitimidade das partes. Ainda nas palavras do autor, cabe distinguir se “se
trata de uma acção para a tutela de um direito (…) do particular em face da
Administraçao”, relevando a função subjectiva do meio processual de impugnação,
na medida em que “o critério da impugnabilidade é determinado pela lesão dos
direitos dos particulares”, ou se “se trata de uma acção para defesa da
legalidade e do interesse público (…), em que a função do meio processual é
predominantemente objectiva e, então, a recorribilidade depende da eficácia
externa do acto administrativo” (SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso…, p. 344).
No que concerne a legitimidade
para impugnar um acto administrativo no âmbito do processo urgente de
contencioso pré-contratual, aplica-se igualmente o art. 55.º do CPTA, por
remissão do art. 100.º, n.º 1 do CPTA. Tem especial relevância quem alegue ser
titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado
pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 55.º, n.º
1, al. a) do CPTA). Ou seja, basta existir um interesse directo (cuja remoção
seja efectivamente necessária para a protecção do interesse afectado) e pessoal
(em que o particular seja titular desse interesse afectado pelo acto
administrativo que pretende remover), e não necessariamente uma lesão efectiva
desse interesse. Quanto a actos potencialmente lesivos, isto é, em que ainda
não se tenha verificado lesão, mas exista alguma probabilidade de vir a haver,
se considerarmos o art. 54.º do CPTA, podemos facilmente concluir que estes
poderão ser igualmente susceptíveis de impugnação, desde que já tenham
desencadeado a sua execução (al. a) do n.º 1), ou se é seguro ou muito provável
que essa produção venha a ocorrer (al. b) do n.º 2). Note-se que tem que haver
um forte grau de certeza, não podendo assentar em mera probabilidade (cfr.
TORRES, Mário, Relatório…, p. 65),
facto que deve ser aferido pelo juíz.
Para finalizar, cabe concluir
com a inevitável referência à necessidade de urgência no contencioso
pré-contratual. Por inúmeras razões, o legislador entendeu que havia uma
imperatividade em consagrar a tramitação urgente para alguns processos
específicos. No caso do contencioso pré-contratual, vejam-se os arts. 36.º, n.º
1, al. b), e 101.º, 1ª parte, do CPTA. Esta é uma exigência, sublinha Margarida
Cabral, “que nos é imposta de fora. (…) o legislador nacional tem pouca margem
de liberdade: por imposição da União Europeia tem de prever uma tramitação mais
célere, pelo menos, para o contencioso pré-contratual de quatro tipos de
contratos” – os do art. 100.º CPTA. (cfr. CABRAL, Margarida Olazabal, Processos urgentes…, p. 39). Para a
autora, todavia, a consagração legal desta urgência não tem sido aplicada, como
deveria, pelos tribunais, que ainda permitem que este tipo de processos se
desenrole de forma não propriamente célere. Por outro lado, a autora aponta
como razão para o mencionado, o facto de no contencioso pré-contratual haver,
na generalidade dos casos, “dois processos urgentes a correr sobre o mesmo assunto
(e com as mesmas partes) – a providência cautelar e o processo principal. Remetemos
este estudo para posterior publicação, dado o longo discurso presente.
Bibliografia:
ALEXANDRINO, José Alberto de Melo, O procedimento pré-contratual nos contratos de empreitada de obras
públicas, Lisboa, 1997;
AMARAL, Diogo Freitas do, Apreciação da Dissertação de
Doutoramento do Lic. José Manuel Sérvulo Correia, in RFDUL, vol. XXXIX, Lisboa,
1988;
AMARAL, Diogo Freitas do, Direito
Administrativo, vol. III, Lisboa, 1985;
ANDRADE, José Carlos Vieira de, Tutela cautelar in CJA, n.º 34;
CABRAL, Margarida Olazabal, Processos urgentes principais – Em especial, o contencioso
pré-contratual, in CJA, n.º 94, Julho/Agosto de 2012, p. 38 a 48;
CORREIA, Sérvulo, Legalidade
e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra, 1987);
CORREIA, Sérvulo, Noções
de Direito Administrativo, vol. II, Lisboa, 1982;
DIAS, Paulo Linhares, O
contenciodo pré-contratual no Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
in Revista da Ordem dos Advogados, ano 67, n.º 2, Lisboa, Setembro de 2007, p.
755 a 801;
ESTORNINHO, Maria João, Algumas
questões, Lisboa, 1996;
ESTORNINHO, Maria João, A
propósito do DL n.º 134/98, de 15 de Maio, e das alterações introduzidas ao
regime do contencioso nos contratos da Administração Pública…, in CJA,
n.º11;
ESTORNINHO, Maria João, Contencioso
dos contratos da Administração Pública, in CJA, n.º 24;
LEITÃO, Alexandra, A
protecção judicial dos terceiros nos contratos da Administração Pública,
Almedina, Coimbra, 2002;
MATOS, André Salgado de, Avaliação
do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente, in CJA, n.º 62,
Março/Abril de 2007, p. 3 a 27;
NUNES, Adolfo Mesquita, O
processo urgente de contencioso pré-contratual no novo CPTA, 2003/04;
QUADROS, Fausto de, O
concurso público na formação do contrato administrativo, in Revista da
Ordem dos Advogados, 1997;
SILVA, Vasco Pereira da, Em
busca do acto administrativo perdido, Coimbra, 1998;
SILVA, Vasco Pereira da, O
Contencioso Administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009;
TORRES, Mário, Relatório
de síntese, in CJA, n.º 28.
Joana Guerreiro, n.º 19 647
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