O critério de impugnabilidade judicial
dos atos administrativos
Atos
administrativos são “decisões dos órgãos
da administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir
efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”. É este o conceito que
nos é apresentado no artigo 120.º do CPA (Conceito de ato administrativo).
Esta
noção leva-nos a concluir que são finalidades do ato administrativo:
(i) definir as atuações da Administração
Pública. São integrantes deste conceito somente os atos positivos cuja
impugnação se deve dirigir à sua anulação ou declaração de nulidade. Já os atos
negativos, não são suscetíveis de impugnação. Para estes, o regime a aplicar é
o do pedido de condenação da administração à prática de ato devido, não sendo
apreciada a legalidade do ato (artigos 51.º/4, 66.º/2, 67.º/1 – al. b) e c) do CPTA).
(ii)
delimitar as decisões da Administração. Estas
são suscetíveis de controlo pelos Tribunais Administrativos para fins de
proteção dos direitos e interesses dos particulares, tal como resulta
nitidamente do artigo 268.º/4 (Direitos e garantias dos administrados) da nossa
Constituição.
O ato
administrativo é assim garante não só da própria Administração como também dos
particulares.
Para
efeitos de jurisdição administrativa, o conceito plasmado no artigo 120.º do CPA
foi alargado, passando igualmente a compreender as decisões de entidades
privadas, sejam elas entidades administrativas privadas ou autênticos
particulares (artigo 51.º/2 do CPTA). O critério é o exercício de poderes
públicos. E, como refere o Professor Mário Esteves de Oliveira, o legislador parece
ter aberto, para efeitos contenciosos, a possibilidade de adoção de um outro conceito
de ato administrativo, como se verá, aliás, mais à frente no artigo 51.º/1 do CPTA.
Tendo
embora o conceito de ato administrativo traçado, surgem alguns problemas.
O
primeiro é atinente aos atos confirmativos do artigo 53.º do CPTA (Impugnação
de ato meramente confirmativo). Um ato é confirmativo de outro quando exista entre
ambos uma subsistência de (i) entidade emissora, (ii) destinatários, (iii) decisão,
(iv) circunstancialismo fático (v) circunstancialismo legal e (vi) fundamentação.
Por aqui se vê estarem em falta os requisitos acima aludidos para a formação de
verdadeiras decisões, ficando, deste modo, os atos confirmativos naturalmente
excluídos do âmbito do artigo 120.º do CPA.
Todavia,
e no entendimento dos Professores José Carlos Vieira de Andrade e Mário Aroso
de Almeida, estes atos podem ser alvo de impugnação desde que (i) o seu Autor
não tenha impugnado o ato anterior, (ii) havendo lugar a notificação ao Autor,
esta não tenha ocorrido ou (iii) sendo o ato objeto de publicação obrigatória
esta não tenha sido realizada.
O
segundo diz respeito aos atos de indeferimento. A sua impugnação é
absolutamente excecional, só tendo lugar quando o Autor tenha como únicas
pretensões provar a ilegalidade do ato de indeferimento e a obtenção da sua remoção
da ordem jurídica. Se o Autor pretender ainda aquilo que lhe foi ilegalmente
indeferido, esta impugnação ser-lhe-á vedada, quedando o pedido de condenação
da Administração à prática de ato devido.
O terceiro
refere-se aos atos de execução. Quanto ao conteúdo, estamos na presença de atos
mistos pois, ao mesmo tempo que se traduzem num ato confirmativo do ato
exequendo, configuram igualmente um ato inovador modificativo da ordem jurídica,
uma vez que definem a situação dos seus beneficiários.
Quanto
a este segundo aspeto dos atos de execução (o âmbito inovador), a Doutrina
diverge. Na esteira do Professor Mário Aroso de Almeida há quem defenda que a
pretensão modificativa da ordem jurídica contida no ato de execução é o fundamento
para a sua impugnação. Está aqui em causa o critério objetivista da eficácia
externa do ato que se traduz na suscetibilidade
de produção de efeitos jurídicos que
se projetem para fora do
procedimento onde o ato se
insere, afetando a ordem jurídica exterior e, em especial, as relações
entre Administração e administrados (artigo 51.º/1 do CPTA).
Já no pólo
oposto, posição ocupada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, o entendimento é
o de que somente são contenciosamente impugnáveis os atos que possam ocasionar
lesão de direitos ou interesses, através da produção ou constituição dos seus
efeitos na esfera dos destinatários – é o critério da suscetibilidade de lesão
de direitos (artigos 51.º/1 do CPTA e 268.º/4 da CRP). Aqui, o busílis da
questão é a lesão das posições substantivas dos particulares assente no princípio
da tutela jurisdicional efetiva (artigo 2.º do CPTA) numa clara reiteração da
vertente subjetivista e de plena jurisdicionalização do nosso Contencioso.
Este dualismo
leva-nos precisamente a perscrutar o critério de impugnabilidade judicial dos
atos administrativos presente no artigo 51.º/1 do CPTA (Princípio geral). Neste,
encontramos que, por um lado, “são
impugnáveis os atos administrativos com eficácia externa” e que, por outro,
“são impugnáveis os atos administrativos
(…) cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou interesses”.
Qual o
significado de cada uma destas referências?
A primeira
(“são impugnáveis os atos administrativos
com eficácia externa”), prende-se com o facto de os particulares poderem
impugnar os atos administrativos independentemente de a forma que estes
revistam ser a de regulamento ou diploma legislativo (artigos 268º/4 da CRP e 52º/1 do CPTA),
bastando que os respetivos efeitos se repercutam numa situação individual e
concreta.
Ficam assim
de fora do conceito de ato administrativo, os atos materiais ou preparatórios
do procedimento
administrativo como as propostas, os pareceres não vinculativos, as
comunicações, as informações e os avisos, entre outros, aos quais falta a referida
externalidade.
Já a segunda
(“são impugnáveis os atos administrativos
(…) cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou interesses”)
refere-se ao pressuposto processual de lesão de direitos ou interesses. Este
pressuposto é atinente ao próprio ato e à sua impugnabilidade: equivale a afirmar
que um ato administrativo está em condições de afetar negativa e
substantivamente as posições dos particulares. E reiteramos: apenas é condição que
o ato esteja em condições de lesar de forma efetiva a esfera dos particulares –
tal não tem de ser uma certeza para que ocorra a impugnação judicial, bastando apenas
a mera probabilidade ou possibilidade de isso vir a acontecer.
Há,
portanto, que efetuar uma cisão entre o pressuposto de impugnabilidade do ato
administrativo, enquanto comportamento da Administração suscetível de lesar
direitos ou interesses e o pressuposto de legitimidade das partes para a
impugnação, este sim, relativo à titularidade de um direito enquanto posição de
vantagem lesada por um ato administrativo ilegal. Obviamente que ambos os
pressupostos estão intimamente ligados. Um depende do outro, embora os seus objetos
não se confundam. É, aliás, da junção de ambos que resulta o saber-se se numa
determinada situação concreta estamos na presença de uma ação particular,
publica ou popular.
Assim, temos
em presença dois grupos de situações:
(i) casos em que está em causa a tutela da
legalidade e do interesse públicos. Nestes, o meio processual a utilizar será
objetivista (pense-se nas ações publica e popular), visto que o critério
predominante para a impugnabilidade será a eficácia externa do ato
administrativo emanado pela Administração.
(ii) casos em que está em causa a lesão de
uma posição substantiva do particular, sendo, por isso, subjetivista o meio
processual a utilizar, uma vez que o critério de impugnabilidade terá de ser
necessariamente o da lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos. E
isto porque, em primeiro plano, se procurará realizar a plena e efetiva tutela
do particular, ficando a tutela da legalidade e do interesse públicos em segundo
plano, embora sempre a par com o primeiro.
Tentando
agora sistematizar o que até aqui foi dito, fica-nos a seguinte ideia central:
o critério de impugnabilidade do artigo 51.º/1 do CPTA compreende duas
dimensões. São elas:
(i)
a externalidade do ato
(ii)
o carácter lesivo para direitos ou
interesses
Serão dimensões
autónomas?
Em
primeiro lugar, há que criticar o preceito pela sua redação, pois parece fazer
da suscetibilidade de lesão de direitos ou interesses uma mera decorrência da
eficácia externa do ato. Será isto inteiramente verdade? Não nos parece. Que
dizer então do disposto no artigo 54.º do CPTA (Impugnação de ato
administrativo ineficaz), que possibilita precisamente a impugnação de atos sem
eficácia externa, atendendo simplesmente ao facto de ser seguro ou muito
provável que o ato venha a produzir efeitos lesivos? A conclusão não poderá ser outra senão a seguinte: a eficácia externa a
que alude o artigo 51.º/1 do CPTA é apenas um indício, de relevância inquestionável,
é certo, mas, ainda assim, apenas um sinal das potencialidades lesivas do ato.
Somos,
desta maneira, levados a concluir pela natureza desigual dos dois critérios,
visto que o primeiro serve propósitos eminentemente objetivistas e o segundo
subjetivistas, dando cada um deles lugar a meios processuais cuja função é
também ela muito distinta.
Face ao
exposto, fica facilitada a compreensão da impugnabilidade dos atos
procedimentais de conteúdo decisório como, por exemplo, os pareceres
vinculativos, quando realizada de forma autónoma. Tal explica-se pela
descentralização do Contencioso Administrativo face ao ato administrativo.
Mais: ao abandono da conceção do ato administrativo como ato definitivo de um
procedimento administrativo (“definitividade
horizontal”). Também a capacidade
lesiva do ato, enquanto qualidade própria deste, nada tem que ver com o lugar
que o seu Autor ocupa na hierarquia administrativa (“definitividade vertical”).
O afastamento destes rígidos critérios para a aferição do que é
inimpugnável ou impugnável, permitiu o autonomizar das relações administrativas
ocasionadas no decurso do procedimento e dos vícios produzidos em cada um
desses momentos.
Não
interessa que tal lesão se tenha dado no início, no decurso ou no final do
procedimento – basta que tenha ocorrido lesão. E mesmo que o ato procedimental não
seja impugnado pelo particular no momento seguinte à sua emanação pela
Administração, não se preclude, por isso, a possibilidade de impugnação da
decisão final com fundamento em ilegalidades cometidas durante o procedimento
(artigo 51.º/3 do CPTA). O particular pode, assim, optar entre impugnar desde
logo o ato procedimental ou esperar pela decisão final do procedimento.
Uma última
palavra para referir o papel da Reforma de 2004 nesta questão. Antes desta, era
exigido como pressuposto da impugnação contenciosa do ato administrativo a
existência de uma impugnação administrativa sendo o recurso hierárquico obrigatório.
No
pós-2004, tal itinerário foi dispensado. Todavia, defende o Professor Vasco
Pereira da Silva que o recurso hierárquico foi completamente afastado visto que
tanto o ato do subalterno como o ato do superior hierárquico produzem os mesmos
efeitos jurídicos, ao que se soma a consagração, na Constituição, do acesso à
Justiça Administrativa como direito fundamental (artigos 20.º e 268.º/4 e 5 da
CRP). Face a isto, e tendo por finalidade a harmonização dos regimes jurídicos
do procedimento e do processo a solução radicaria (i) na revogação expressa do
recurso hierárquico necessário uma vez que, na opinião do Professor, esses
preceitos caducaram com a entrada em vigor da Reforma e (ii) na atribuição de
efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, atribuição essa que
poderia ainda ser acompanhada da fixação de um prazo para que os particulares, querendo,
impugnassem administrativamente. O prazo teria, contudo, apenas relevância para
a aplicação do regime de suspensão automática da eficácia do ato até à decisão
da Administração e não tanto para efeitos de impugnabilidade do ato
administrativo.
A este entendimento,
opõe-se a orientação tomada pelo Professor Mário Aroso de Almeida com a qual, aliás,
concordamos. E pela seguinte ordem de razões: o CPTA não afastou a legislação
avulsa que ainda exige o recurso hierárquico necessário como primeira condição para
a impugnação de um ato administrativo – não houve intenção inequívoca do legislador
nesse sentido. Assim sendo, aquela legislação, quando preveja a impugnação
administrativa necessária de forma expressa e inequívoca é, em face do CPTA,
lei especial. Ora, lei geral cede perante lei especial. Deste modo, quando o ato
(i) tenha eficácia externa e (ii) não exista determinação legal no sentido de o
particular primeiro se ter de socorrer de uma impugnação administrativa
necessária, o ato será sempre passível de impugnação contenciosa direta.
CÁTIA BREHM, N.º 20604
Monografia:
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA, “A
Justiça Administrativa", 12ª Edição, Almedina, 2012
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, “Manual
de Processo Administrativo”, Almedina, 2013
ALMEIDA, Mário Aroso DE, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais
Administrativos”, 3ª Edição, Almedina, 2004
SILVA, Vasco Pereira DA, “O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise”, 2ª Edição, Almedina, 2009
Jurisprudência:
Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte de 15-03-2007 (Proc.
N.º 00399/06.5BEPNF)
Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo de 16-12-2009 (Processo N.º 0140/09)
Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte de 25-02-2010 (Processo n.º 01204/09.6BEBRG)
Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte de 19-04-2013 (Processo N.º 00716/11.6BEBRG)
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