sábado, 30 de novembro de 2013




O critério de impugnabilidade judicial
dos atos administrativos
 
 
 
 
Atos administrativos são “decisões dos órgãos da administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”. É este o conceito que nos é apresentado no artigo 120.º do CPA (Conceito de ato administrativo).
Esta noção leva-nos a concluir que são finalidades do ato administrativo:
 
(i)              definir as atuações da Administração Pública. São integrantes deste conceito somente os atos positivos cuja impugnação se deve dirigir à sua anulação ou declaração de nulidade. Já os atos negativos, não são suscetíveis de impugnação. Para estes, o regime a aplicar é o do pedido de condenação da administração à prática de ato devido, não sendo apreciada a legalidade do ato (artigos 51.º/4, 66.º/2, 67.º/1 – al. b) e c) do CPTA).
 
(ii)            delimitar as decisões da Administração. Estas são suscetíveis de controlo pelos Tribunais Administrativos para fins de proteção dos direitos e interesses dos particulares, tal como resulta nitidamente do artigo 268.º/4 (Direitos e garantias dos administrados) da nossa Constituição.
 
O ato administrativo é assim garante não só da própria Administração como também dos particulares.
Para efeitos de jurisdição administrativa, o conceito plasmado no artigo 120.º do CPA foi alargado, passando igualmente a compreender as decisões de entidades privadas, sejam elas entidades administrativas privadas ou autênticos particulares (artigo 51.º/2 do CPTA). O critério é o exercício de poderes públicos. E, como refere o Professor Mário Esteves de Oliveira, o legislador parece ter aberto, para efeitos contenciosos, a possibilidade de adoção de um outro conceito de ato administrativo, como se verá, aliás, mais à frente no artigo 51.º/1 do CPTA.
Tendo embora o conceito de ato administrativo traçado, surgem alguns problemas.
O primeiro é atinente aos atos confirmativos do artigo 53.º do CPTA (Impugnação de ato meramente confirmativo). Um ato é confirmativo de outro quando exista entre ambos uma subsistência de (i) entidade emissora, (ii) destinatários, (iii) decisão, (iv) circunstancialismo fático (v) circunstancialismo legal e (vi) fundamentação. Por aqui se vê estarem em falta os requisitos acima aludidos para a formação de verdadeiras decisões, ficando, deste modo, os atos confirmativos naturalmente excluídos do âmbito do artigo 120.º do CPA.
Todavia, e no entendimento dos Professores José Carlos Vieira de Andrade e Mário Aroso de Almeida, estes atos podem ser alvo de impugnação desde que (i) o seu Autor não tenha impugnado o ato anterior, (ii) havendo lugar a notificação ao Autor, esta não tenha ocorrido ou (iii) sendo o ato objeto de publicação obrigatória esta não tenha sido realizada.
O segundo diz respeito aos atos de indeferimento. A sua impugnação é absolutamente excecional, só tendo lugar quando o Autor tenha como únicas pretensões provar a ilegalidade do ato de indeferimento e a obtenção da sua remoção da ordem jurídica. Se o Autor pretender ainda aquilo que lhe foi ilegalmente indeferido, esta impugnação ser-lhe-á vedada, quedando o pedido de condenação da Administração à prática de ato devido.
O terceiro refere-se aos atos de execução. Quanto ao conteúdo, estamos na presença de atos mistos pois, ao mesmo tempo que se traduzem num ato confirmativo do ato exequendo, configuram igualmente um ato inovador modificativo da ordem jurídica, uma vez que definem a situação dos seus beneficiários.
Quanto a este segundo aspeto dos atos de execução (o âmbito inovador), a Doutrina diverge. Na esteira do Professor Mário Aroso de Almeida há quem defenda que a pretensão modificativa da ordem jurídica contida no ato de execução é o fundamento para a sua impugnação. Está aqui em causa o critério objetivista da eficácia externa do ato que se traduz na suscetibilidade de produção de efeitos jurídicos que se projetem para fora do procedimento onde o ato se insere, afetando a ordem jurídica exterior e, em especial, as relações entre Administração e administrados (artigo 51.º/1 do CPTA).
Já no pólo oposto, posição ocupada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, o entendimento é o de que somente são contenciosamente impugnáveis os atos que possam ocasionar lesão de direitos ou interesses, através da produção ou constituição dos seus efeitos na esfera dos destinatários – é o critério da suscetibilidade de lesão de direitos (artigos 51.º/1 do CPTA e 268.º/4 da CRP). Aqui, o busílis da questão é a lesão das posições substantivas dos particulares assente no princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 2.º do CPTA) numa clara reiteração da vertente subjetivista e de plena jurisdicionalização do nosso Contencioso.
Este dualismo leva-nos precisamente a perscrutar o critério de impugnabilidade judicial dos atos administrativos presente no artigo 51.º/1 do CPTA (Princípio geral). Neste, encontramos que, por um lado, “são impugnáveis os atos administrativos com eficácia externa” e que, por outro, “são impugnáveis os atos administrativos (…) cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou interesses”.
Qual o significado de cada uma destas referências?
A primeira (“são impugnáveis os atos administrativos com eficácia externa”), prende-se com o facto de os particulares poderem impugnar os atos administrativos independentemente de a forma que estes revistam ser a de regulamento ou diploma legislativo (artigos 268º/4 da CRP e 52º/1 do CPTA), bastando que os respetivos efeitos se repercutam numa situação individual e concreta.
Ficam assim de fora do conceito de ato administrativo, os atos materiais ou preparatórios do procedimento administrativo como as propostas, os pareceres não vinculativos, as comunicações, as informações e os avisos, entre outros, aos quais falta a referida externalidade.
Já a segunda (“são impugnáveis os atos administrativos (…) cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou interesses”) refere-se ao pressuposto processual de lesão de direitos ou interesses. Este pressuposto é atinente ao próprio ato e à sua impugnabilidade: equivale a afirmar que um ato administrativo está em condições de afetar negativa e substantivamente as posições dos particulares. E reiteramos: apenas é condição que o ato esteja em condições de lesar de forma efetiva a esfera dos particulares – tal não tem de ser uma certeza para que ocorra a impugnação judicial, bastando apenas a mera probabilidade ou possibilidade de isso vir a acontecer.
Há, portanto, que efetuar uma cisão entre o pressuposto de impugnabilidade do ato administrativo, enquanto comportamento da Administração suscetível de lesar direitos ou interesses e o pressuposto de legitimidade das partes para a impugnação, este sim, relativo à titularidade de um direito enquanto posição de vantagem lesada por um ato administrativo ilegal. Obviamente que ambos os pressupostos estão intimamente ligados. Um depende do outro, embora os seus objetos não se confundam. É, aliás, da junção de ambos que resulta o saber-se se numa determinada situação concreta estamos na presença de uma ação particular, publica ou popular.
Assim, temos em presença dois grupos de situações:
 
(i)              casos em que está em causa a tutela da legalidade e do interesse públicos. Nestes, o meio processual a utilizar será objetivista (pense-se nas ações publica e popular), visto que o critério predominante para a impugnabilidade será a eficácia externa do ato administrativo emanado pela Administração.
 
(ii)            casos em que está em causa a lesão de uma posição substantiva do particular, sendo, por isso, subjetivista o meio processual a utilizar, uma vez que o critério de impugnabilidade terá de ser necessariamente o da lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos. E isto porque, em primeiro plano, se procurará realizar a plena e efetiva tutela do particular, ficando a tutela da legalidade e do interesse públicos em segundo plano, embora sempre a par com o primeiro.
 
Tentando agora sistematizar o que até aqui foi dito, fica-nos a seguinte ideia central: o critério de impugnabilidade do artigo 51.º/1 do CPTA compreende duas dimensões. São elas:
 
(i)                 a externalidade do ato  
(ii)               o carácter lesivo para direitos ou interesses
 
Serão dimensões autónomas?
Em primeiro lugar, há que criticar o preceito pela sua redação, pois parece fazer da suscetibilidade de lesão de direitos ou interesses uma mera decorrência da eficácia externa do ato. Será isto inteiramente verdade? Não nos parece. Que dizer então do disposto no artigo 54.º do CPTA (Impugnação de ato administrativo ineficaz), que possibilita precisamente a impugnação de atos sem eficácia externa, atendendo simplesmente ao facto de ser seguro ou muito provável que o ato venha a produzir efeitos lesivos? A conclusão não poderá ser outra senão a seguinte: a eficácia externa a que alude o artigo 51.º/1 do CPTA é apenas um indício, de relevância inquestionável, é certo, mas, ainda assim, apenas um sinal das potencialidades lesivas do ato.
Somos, desta maneira, levados a concluir pela natureza desigual dos dois critérios, visto que o primeiro serve propósitos eminentemente objetivistas e o segundo subjetivistas, dando cada um deles lugar a meios processuais cuja função é também ela muito distinta.
Face ao exposto, fica facilitada a compreensão da impugnabilidade dos atos procedimentais de conteúdo decisório como, por exemplo, os pareceres vinculativos, quando realizada de forma autónoma. Tal explica-se pela descentralização do Contencioso Administrativo face ao ato administrativo. Mais: ao abandono da conceção do ato administrativo como ato definitivo de um procedimento administrativo (“definitividade horizontal”). Também a capacidade lesiva do ato, enquanto qualidade própria deste, nada tem que ver com o lugar que o seu Autor ocupa na hierarquia administrativa (“definitividade vertical”). O afastamento destes rígidos critérios para a aferição do que é inimpugnável ou impugnável, permitiu o autonomizar das relações administrativas ocasionadas no decurso do procedimento e dos vícios produzidos em cada um desses momentos.
Não interessa que tal lesão se tenha dado no início, no decurso ou no final do procedimento – basta que tenha ocorrido lesão. E mesmo que o ato procedimental não seja impugnado pelo particular no momento seguinte à sua emanação pela Administração, não se preclude, por isso, a possibilidade de impugnação da decisão final com fundamento em ilegalidades cometidas durante o procedimento (artigo 51.º/3 do CPTA). O particular pode, assim, optar entre impugnar desde logo o ato procedimental ou esperar pela decisão final do procedimento.
Uma última palavra para referir o papel da Reforma de 2004 nesta questão. Antes desta, era exigido como pressuposto da impugnação contenciosa do ato administrativo a existência de uma impugnação administrativa sendo o recurso hierárquico obrigatório.
No pós-2004, tal itinerário foi dispensado. Todavia, defende o Professor Vasco Pereira da Silva que o recurso hierárquico foi completamente afastado visto que tanto o ato do subalterno como o ato do superior hierárquico produzem os mesmos efeitos jurídicos, ao que se soma a consagração, na Constituição, do acesso à Justiça Administrativa como direito fundamental (artigos 20.º e 268.º/4 e 5 da CRP). Face a isto, e tendo por finalidade a harmonização dos regimes jurídicos do procedimento e do processo a solução radicaria (i) na revogação expressa do recurso hierárquico necessário uma vez que, na opinião do Professor, esses preceitos caducaram com a entrada em vigor da Reforma e (ii) na atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, atribuição essa que poderia ainda ser acompanhada da fixação de um prazo para que os particulares, querendo, impugnassem administrativamente. O prazo teria, contudo, apenas relevância para a aplicação do regime de suspensão automática da eficácia do ato até à decisão da Administração e não tanto para efeitos de impugnabilidade do ato administrativo.
A este entendimento, opõe-se a orientação tomada pelo Professor Mário Aroso de Almeida com a qual, aliás, concordamos. E pela seguinte ordem de razões: o CPTA não afastou a legislação avulsa que ainda exige o recurso hierárquico necessário como primeira condição para a impugnação de um ato administrativo – não houve intenção inequívoca do legislador nesse sentido. Assim sendo, aquela legislação, quando preveja a impugnação administrativa necessária de forma expressa e inequívoca é, em face do CPTA, lei especial. Ora, lei geral cede perante lei especial. Deste modo, quando o ato (i) tenha eficácia externa e (ii) não exista determinação legal no sentido de o particular primeiro se ter de socorrer de uma impugnação administrativa necessária, o ato será sempre passível de impugnação contenciosa direta.
 
 
CÁTIA BREHM, N.º 20604
 
 
  
Monografia:
 
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA, “A Justiça Administrativa", 12ª Edição, Almedina, 2012
 
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2013
 
ALMEIDA, Mário Aroso DE, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 3ª Edição, Almedina, 2004
 
SILVA, Vasco Pereira DA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª Edição, Almedina, 2009
 
  
Jurisprudência:
 
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15-03-2007 (Proc. N.º 00399/06.5BEPNF)
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16-12-2009 (Processo N.º 0140/09)
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 25-02-2010 (Processo n.º 01204/09.6BEBRG)
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 19-04-2013 (Processo N.º 00716/11.6BEBRG)
 

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