A impugnação de regulamentos administrativos vem
regulada nos artigos 72º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (doravante CPTA). O referido regime tem como objecto “a
declaração da ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de
direito administrativo”. Parece-nos notório a necessidade de estabelecer aqui
uma noção do que é um regulamento administrativo antes de prosseguimos a
problemática deste tema. Como bem frisa o professor Vasco Pereira da Silva, a determinação da noção de
regulamento “depende tanto da noção que
se tenha de norma jurídica, como das concretas soluções legislativas de cada
país relativamente às formas de actuação administrativa”. A Doutrina
diverge ligeiramente na determinação do conceito de regulamento, o professor Mário Aroso de Almeida fala neste
aspecto de “normas emanadas no exercício
da função administrativa, o que compreende toda e qualquer norma emanada no
exercício de poderes conferidos pelo direito administrativo”. Já o
professor Vasco Pereira da Silva defende
que o conceito de regulamento abrange “todas
as actuações jurídicas gerais e abstractas ou, que possuam apenas uma dessas
características, emanadas de autoridades públicas ou de particulares que com
elas colaborem no exercício da função administrativa”. O mesmo autor vem
ainda reforçar um aspecto importante, o da exclusão dos actos administrativos,
mesmo que contidos em diploma legislativo ou regulamentar e, das normas
jurídicas emitidas no âmbito da função legislativa, desta previsão normativa.
Como já referimos anteriormente, o regime da
impugnação de regulamentos vem regulado nos arts. 72º e seguintes do CPTA,
porém, antes de Janeiro de 2004 este processo era regulado de maneira diversa.
O regime legal anterior consagrava duas formas processuais distintas e não
alternativas, para a impugnação directa dos regulamentos: um meio processual
genérico - declaração de ilegalidade de normas administrativas - e um meio
processual especial - impugnação de normas. Neste contexto, o professor Vasco Pereira da Silva define esta
dualidade de meios processuais como uma “esquizofrenia”, visto que se tratava
de dois processos dotados de requisitos diferentes e um âmbito de aplicação
parcialmente sobreposto. O CPTA vem resolver esta problemática, consagrando uma
única forma processual, a acção administrativa especial, destinada à impugnação
de actos da administração, aí compreendido o sindicato directo de regulamentos.
Porém, apesar desta uniformização relativamente à forma processual, o CPTA mantem
uma pluralidade de regimes impugnatórios, mais nomeadamente o pedido de
declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e o pedido de declaração
de ilegalidade sem força obrigatória geral ou num caso concreto.
Antes de passarmos para o desenvolvimento destes
dois regimes impugnatórios cumpre apenas salientar que quando um particular é
objecto de uma decisão concreta que lhe aplica uma norma regulamentar considerada
ilegal pelo mesmo, ele pode e deve reagir contra essa decisão concreta,
suscitando o designado incidente da ilegalidade da norma regulamentar aplicada.
Caso o tribunal julgue procedente o incidente, recusa-se a aplicar a norma
regulamentar que considera ilegal e, com esse fundamento, anula ou declara nula
a decisão impugnada. Isto vale para qualquer um dos legitimados à impugnação de
actos administrativos (art. 55º CPTA).
Passando agora à caracterização de cada um destes
regimes impugnatórios, é primordial fazer uma apreciação dos seus pressupostos,
sendo que três deles são comuns a ambos os regimes e outros dois são distintos.
Quanto ao objecto, aquando da entrada em vigor do
CPTA, desapareceram definitivamente as distinções de regime jurídico baseadas
no autor da norma que caracterizavam o sistema português. Hoje em dia quaisquer
normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo podem ser
objecto de impugnação contenciosa. Contudo, existe aqui a problemática de saber
o que quer o CPTA dizer com o conceito de “norma”, qual a sua abrangência. Pois
bem, esta problemática originou-se com base na difícil distinção entre a noção
de regulamento e de acto administrativo geral, actos estes que se aplicam de
imediato a um grupo inorgânico de cidadãos determinados ou determináveis. As
diferenças começam pelo facto da não impugnação de um acto geral não obstar à
impugnação de eventuais actos de aplicação ou execução que identifiquem os seus
destinatários. Também o artigo 52º nº3 qualifica os actos gerais como
verdadeiros actos administrativos, reforçando assim a diferença relativamente
aos regulamentos. Sendo equiparados a verdadeiros actos administrativos não podem
deixar de ser considerados como mais vantajosos para os particulares, no que
respeita à inimpugnabilidade de actos meramente confirmativos, porém, os mesmos
não afastam a existência de um prazo para a acção, requisito dispensado no que
toca aos regulamentos. Apesar de tudo o que foi dito, não podemos deixar de
concordar com professor Pedro Delgado
Alves quando afirma que tudo “dependerá
da interpretação que os tribunais derem ao preceito em causa, e da noção de
norma administrativa e de acto administrativo que adoptarem”. Ainda sobre o
objecto, basta-nos fazer uma chamada de atenção ao facto de o CPTA não fazer
nenhum esclarecimento no que respeita à vigência das normas impugnáveis. A
questão é simples: será que o regulamento administrativo tem de estar em vigor
para poder ser impugnado, ou podem os particulares agir em juízo contra ele
antes e depois de iniciada a vigência? A resposta é também ela simples,
consagrada a regra da eficácia ex tunc
da decisão jurisdicional, pode haver um claro interesse na invalidação de regulamentos
caducos ou revogados, daí que não haja qualquer problema em impugnar
regulamentos nessas condições.
Relativamente ao prazo, tanto a declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral como a declaração de ilegalidade sem
força obrigatória geral, podem ser pedidas a todo o tempo, não se encontrando
circunscritas a qualquer tipo de prazo (art. 74º).
Para finalizar os pressupostos comuns a cada uma das
declarações basta-nos fazer referência à competência, sendo que o conhecimento
das acções de impugnação de normas administrativas cabe aos Tribunais
Administrativos de Círculo, nos termos do art. 44º nº1 do ETAF. Como novo
regime, mesmo os regulamentos da Administração Central estão agora submetidos à
competência da base da pirâmide organizacional dos tribunais administrativos.
1.
Declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral
Vistos os pressupostos do objecto, prazo e
competência, que são iguais para ambas as declarações, falta-nos analisar os
pressupostos da legitimidade e dos efeitos para cada uma delas.
No que respeita à legitimidade, a declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral pode ser pedida por quem tenha sido
prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em
momento próximo. Exige-se, portanto, uma lesão ou uma lesão potencial da esfera
jurídica do autor para que este possa deduzir o pedido, sendo que, nos casos em
que não esteja consumada a lesão, cumprirá ao autor demonstrar a
previsibilidade e iminência do dano na sua esfera jurídica. Neste caso, a declaração
só pode ser pedida se a norma em causa já tiver sido julgada ilegal, por
qualquer tribunal (administrativo, judicial, militar, entre outros), em três
casos concretos (art. 73º nº1). É também dada ao Ministério Público a
possibilidade de pedir, oficiosamente e a qualquer momento, esta declaração,
sem qualquer dependência de quaisquer requisitos. Pode ainda fazê-lo a
requerimento das pessoas e entidades referidas no art. 9º nº2, dispondo estas
da faculdade de se constituírem assistentes nesse caso (nº3 do referido
artigo). É de ressalvar ainda neste âmbito que, o interessado lesado por uma
norma directamente aplicável mas já julgada ilegal em três casos concretos, não
está, porém, obrigado a pedir a declaração de ilegalidade dessa norma com força
obrigatória geral. Pode limitar-se a pedir que a declaração seja proferida com
efeitos circunscritos ao seu caso, evitando, desse modo, o risco de se poder
ver confrontado com uma eventual decisão do tribunal de limitação dos efeitos da
sua pronúncia, no exercício do poder que lhe é conferido pelo artigo 76º nº2. A
possibilidade de pedir a declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral
está consagrada “sem prejuízo do disposto no numero anterior”, trata-se de uma
faculdade que assiste aos lesados, sem prejuízo
daquela que o artigo 73º nº1 também lhes reconhece.
Passando aos efeitos da declaração de ilegalidade
com força obrigatória geral, estabelecidos no art. 76º, há que fazer referência
à notória semelhança deste regime com o regime do art. 282º da CRP, que
consagra os efeitos das declarações de inconstitucionalidade ou de ilegalidade
com força obrigatória geral proferidas pelo Tribunal Constitucional. Ao invés
do que acontecia antes e, como já foi dito anteriormente, os efeitos da
declaração de ilegalidade com força obrigatória geral produzem-se, em regra, ex tunc, determinando a repristinação
das normas revogadas (que não sejam ilegais), “sem prejuízo de o tribunal poder determinar que os efeitos se produzam
apenas para o futuro, quando tal se justifique por razões de segurança
jurídica, de equidade ou de interesse público de excepcional relevo” como
frisa o professor José Vieira de Andrade,
ficando, contundo, ressalvados os casos julgados e também os actos
administrativos que já não possam ser impugnados. Visa-se neste aspecto
salvaguardar o valor da segurança jurídica, visto que os particulares lesados
conseguem obter a eliminação dos efeitos não consolidados das normas, salvo nos
casos excepcionais em que haja razões de interesse geral que a tal se oponham.
Em caso de invalidade superveniente da norma, os efeitos invalidatórios só se
produzem a partir da entrada em vigor da norma legal.
2.
Declaração de
ilegalidade sem força obrigatória geral
A grande novidade da reforma de 2002 foi a criação
de uma variante do meio processual de impugnação de normas com efeitos
circunscritos, ou seja, sem a força obrigatória geral característica da
impugnação directa de normas.
Já foi feita referência ao objecto, competência e
prazo relativamente a este meio processual. Cabe-nos então fazer menção, ainda
relativamente aos pressupostos, à legitimidade e aos efeitos da declaração de
ilegalidade sem força obrigatória geral.
Quanto à legitimidade, esta declaração pode ser
pedida pelo lesado ou pelas pessoas e entidades do art. 9º nº2 quando a norma
produza os seus efeitos imediatamente, sem depender de um acto administrativo
ou judicial de aplicação (art. 73º nº 2). A este propósito é de salientar que o
conceito de lesado para efeitos do nº2 do art. 73º deve ser qualquer sujeito
prejudicado pela aplicação da norma ou que possa vir a sê-lo previsivelmente em
momento próximo.
Já relativamente aos efeitos produzidos, consagrados
no nº2 do art. 73º, consubstanciam-se na desaplicação da norma através de um
pedido de declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto.
Neste âmbito, o CPTA não especifica qual o regime que deve seguir a impugnação
de normas sem força obrigatória geral, apenas determinando que eles se
circunscrevem ao caso concreto, obrigando o intérprete a recorrer ao regime da
eficácia com força obrigatória geral, previsto no art. 76º, fazendo as devidas
adaptações. Um dos aspectos que cria alguma dificuldade prende-se com a
possibilidade de restrição de efeitos pelo tribunal. O professor Mário Aroso de Almeida vem, neste
propósito, defender a ausência de razões de ordem pública que possam justificar
a imposição de restrições de efeitos, acrescentando que, a dita faculdade só
faz sentido para as declarações com força obrigatória geral.
3.
Declaração de
ilegalidade por omissão
Em modo de finalizar este post, basta-nos fazer
referência à introdução, pelo CPTA, de um inovador dispositivo que permite ao
Ministério Público, às demais pessoas e entidades defensoras dos interesses
referidos no art. 9º nº2, e a quem alegue um prejuízo directamente resultante
da situação, reagir judicialmente contra a omissão ilegal de normas
administrativas cuja adopção “seja
necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de
regulamentação”. A este novo regime damos o nome de declaração de
ilegalidade por omissão, consagrado no art. 77º do CPTA. Tal como no que
respeita à fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, o tribunal dá
conhecimento à entidade competente, mas fixando um prazo para a emanação da
norma.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Mário Aroso de
– “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2012
ALMEIDA, Mário Aroso de
– “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2004
ALVES, Pedro Delgado – “O
Novo Regime de Impugnação de Normas, em Novas e Velhas Andanças do contencioso
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“Curso de Direito Administrativo”, Almedina, 2011
ANDRADE, Carlos Vieira
de – “A Justiça Administrativa”, Almedina, 2009
MORAIS, Carlos Blanco
de – “A Impugnação dos Regulamentos no Contencioso Administrativo Português”,
em Temas e Problemas de Processo Administrativo, Edição do Instituto de
Ciências Jurídico-Políticas, 2011
SILVA, Vasco Pereira da
– “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2009
Vanessa Fernandes nº 20882
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