terça-feira, 12 de novembro de 2013

IMPUGNAÇÃO DE REGULAMENTOS


A impugnação de regulamentos administrativos vem regulada nos artigos 72º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA). O referido regime tem como objecto “a declaração da ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo”. Parece-nos notório a necessidade de estabelecer aqui uma noção do que é um regulamento administrativo antes de prosseguimos a problemática deste tema. Como bem frisa o professor Vasco Pereira da Silva, a determinação da noção de regulamento “depende tanto da noção que se tenha de norma jurídica, como das concretas soluções legislativas de cada país relativamente às formas de actuação administrativa”. A Doutrina diverge ligeiramente na determinação do conceito de regulamento, o professor Mário Aroso de Almeida fala neste aspecto de “normas emanadas no exercício da função administrativa, o que compreende toda e qualquer norma emanada no exercício de poderes conferidos pelo direito administrativo”. Já o professor Vasco Pereira da Silva defende que o conceito de regulamento abrange “todas as actuações jurídicas gerais e abstractas ou, que possuam apenas uma dessas características, emanadas de autoridades públicas ou de particulares que com elas colaborem no exercício da função administrativa”. O mesmo autor vem ainda reforçar um aspecto importante, o da exclusão dos actos administrativos, mesmo que contidos em diploma legislativo ou regulamentar e, das normas jurídicas emitidas no âmbito da função legislativa, desta previsão normativa.

Como já referimos anteriormente, o regime da impugnação de regulamentos vem regulado nos arts. 72º e seguintes do CPTA, porém, antes de Janeiro de 2004 este processo era regulado de maneira diversa. O regime legal anterior consagrava duas formas processuais distintas e não alternativas, para a impugnação directa dos regulamentos: um meio processual genérico - declaração de ilegalidade de normas administrativas - e um meio processual especial - impugnação de normas. Neste contexto, o professor Vasco Pereira da Silva define esta dualidade de meios processuais como uma “esquizofrenia”, visto que se tratava de dois processos dotados de requisitos diferentes e um âmbito de aplicação parcialmente sobreposto. O CPTA vem resolver esta problemática, consagrando uma única forma processual, a acção administrativa especial, destinada à impugnação de actos da administração, aí compreendido o sindicato directo de regulamentos. Porém, apesar desta uniformização relativamente à forma processual, o CPTA mantem uma pluralidade de regimes impugnatórios, mais nomeadamente o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e o pedido de declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral ou num caso concreto.

Antes de passarmos para o desenvolvimento destes dois regimes impugnatórios cumpre apenas salientar que quando um particular é objecto de uma decisão concreta que lhe aplica uma norma regulamentar considerada ilegal pelo mesmo, ele pode e deve reagir contra essa decisão concreta, suscitando o designado incidente da ilegalidade da norma regulamentar aplicada. Caso o tribunal julgue procedente o incidente, recusa-se a aplicar a norma regulamentar que considera ilegal e, com esse fundamento, anula ou declara nula a decisão impugnada. Isto vale para qualquer um dos legitimados à impugnação de actos administrativos (art. 55º CPTA).

Passando agora à caracterização de cada um destes regimes impugnatórios, é primordial fazer uma apreciação dos seus pressupostos, sendo que três deles são comuns a ambos os regimes e outros dois são distintos.

Quanto ao objecto, aquando da entrada em vigor do CPTA, desapareceram definitivamente as distinções de regime jurídico baseadas no autor da norma que caracterizavam o sistema português. Hoje em dia quaisquer normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo podem ser objecto de impugnação contenciosa. Contudo, existe aqui a problemática de saber o que quer o CPTA dizer com o conceito de “norma”, qual a sua abrangência. Pois bem, esta problemática originou-se com base na difícil distinção entre a noção de regulamento e de acto administrativo geral, actos estes que se aplicam de imediato a um grupo inorgânico de cidadãos determinados ou determináveis. As diferenças começam pelo facto da não impugnação de um acto geral não obstar à impugnação de eventuais actos de aplicação ou execução que identifiquem os seus destinatários. Também o artigo 52º nº3 qualifica os actos gerais como verdadeiros actos administrativos, reforçando assim a diferença relativamente aos regulamentos. Sendo equiparados a verdadeiros actos administrativos não podem deixar de ser considerados como mais vantajosos para os particulares, no que respeita à inimpugnabilidade de actos meramente confirmativos, porém, os mesmos não afastam a existência de um prazo para a acção, requisito dispensado no que toca aos regulamentos. Apesar de tudo o que foi dito, não podemos deixar de concordar com professor Pedro Delgado Alves quando afirma que tudo “dependerá da interpretação que os tribunais derem ao preceito em causa, e da noção de norma administrativa e de acto administrativo que adoptarem”. Ainda sobre o objecto, basta-nos fazer uma chamada de atenção ao facto de o CPTA não fazer nenhum esclarecimento no que respeita à vigência das normas impugnáveis. A questão é simples: será que o regulamento administrativo tem de estar em vigor para poder ser impugnado, ou podem os particulares agir em juízo contra ele antes e depois de iniciada a vigência? A resposta é também ela simples, consagrada a regra da eficácia ex tunc da decisão jurisdicional, pode haver um claro interesse na invalidação de regulamentos caducos ou revogados, daí que não haja qualquer problema em impugnar regulamentos nessas condições.

Relativamente ao prazo, tanto a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral como a declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral, podem ser pedidas a todo o tempo, não se encontrando circunscritas a qualquer tipo de prazo (art. 74º).

Para finalizar os pressupostos comuns a cada uma das declarações basta-nos fazer referência à competência, sendo que o conhecimento das acções de impugnação de normas administrativas cabe aos Tribunais Administrativos de Círculo, nos termos do art. 44º nº1 do ETAF. Como novo regime, mesmo os regulamentos da Administração Central estão agora submetidos à competência da base da pirâmide organizacional dos tribunais administrativos.

1.      Declaração de ilegalidade com força obrigatória geral

Vistos os pressupostos do objecto, prazo e competência, que são iguais para ambas as declarações, falta-nos analisar os pressupostos da legitimidade e dos efeitos para cada uma delas.

No que respeita à legitimidade, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pode ser pedida por quem tenha sido prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo. Exige-se, portanto, uma lesão ou uma lesão potencial da esfera jurídica do autor para que este possa deduzir o pedido, sendo que, nos casos em que não esteja consumada a lesão, cumprirá ao autor demonstrar a previsibilidade e iminência do dano na sua esfera jurídica. Neste caso, a declaração só pode ser pedida se a norma em causa já tiver sido julgada ilegal, por qualquer tribunal (administrativo, judicial, militar, entre outros), em três casos concretos (art. 73º nº1). É também dada ao Ministério Público a possibilidade de pedir, oficiosamente e a qualquer momento, esta declaração, sem qualquer dependência de quaisquer requisitos. Pode ainda fazê-lo a requerimento das pessoas e entidades referidas no art. 9º nº2, dispondo estas da faculdade de se constituírem assistentes nesse caso (nº3 do referido artigo). É de ressalvar ainda neste âmbito que, o interessado lesado por uma norma directamente aplicável mas já julgada ilegal em três casos concretos, não está, porém, obrigado a pedir a declaração de ilegalidade dessa norma com força obrigatória geral. Pode limitar-se a pedir que a declaração seja proferida com efeitos circunscritos ao seu caso, evitando, desse modo, o risco de se poder ver confrontado com uma eventual decisão do tribunal de limitação dos efeitos da sua pronúncia, no exercício do poder que lhe é conferido pelo artigo 76º nº2. A possibilidade de pedir a declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral está consagrada “sem prejuízo do disposto no numero anterior”, trata-se de uma faculdade que assiste aos lesados, sem prejuízo daquela que o artigo 73º nº1 também lhes reconhece.

Passando aos efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, estabelecidos no art. 76º, há que fazer referência à notória semelhança deste regime com o regime do art. 282º da CRP, que consagra os efeitos das declarações de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral proferidas pelo Tribunal Constitucional. Ao invés do que acontecia antes e, como já foi dito anteriormente, os efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral produzem-se, em regra, ex tunc, determinando a repristinação das normas revogadas (que não sejam ilegais), “sem prejuízo de o tribunal poder determinar que os efeitos se produzam apenas para o futuro, quando tal se justifique por razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público de excepcional relevo” como frisa o professor José Vieira de Andrade, ficando, contundo, ressalvados os casos julgados e também os actos administrativos que já não possam ser impugnados. Visa-se neste aspecto salvaguardar o valor da segurança jurídica, visto que os particulares lesados conseguem obter a eliminação dos efeitos não consolidados das normas, salvo nos casos excepcionais em que haja razões de interesse geral que a tal se oponham. Em caso de invalidade superveniente da norma, os efeitos invalidatórios só se produzem a partir da entrada em vigor da norma legal.

2.      Declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral

A grande novidade da reforma de 2002 foi a criação de uma variante do meio processual de impugnação de normas com efeitos circunscritos, ou seja, sem a força obrigatória geral característica da impugnação directa de normas.

Já foi feita referência ao objecto, competência e prazo relativamente a este meio processual. Cabe-nos então fazer menção, ainda relativamente aos pressupostos, à legitimidade e aos efeitos da declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral.

Quanto à legitimidade, esta declaração pode ser pedida pelo lesado ou pelas pessoas e entidades do art. 9º nº2 quando a norma produza os seus efeitos imediatamente, sem depender de um acto administrativo ou judicial de aplicação (art. 73º nº 2). A este propósito é de salientar que o conceito de lesado para efeitos do nº2 do art. 73º deve ser qualquer sujeito prejudicado pela aplicação da norma ou que possa vir a sê-lo previsivelmente em momento próximo.

Já relativamente aos efeitos produzidos, consagrados no nº2 do art. 73º, consubstanciam-se na desaplicação da norma através de um pedido de declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto. Neste âmbito, o CPTA não especifica qual o regime que deve seguir a impugnação de normas sem força obrigatória geral, apenas determinando que eles se circunscrevem ao caso concreto, obrigando o intérprete a recorrer ao regime da eficácia com força obrigatória geral, previsto no art. 76º, fazendo as devidas adaptações. Um dos aspectos que cria alguma dificuldade prende-se com a possibilidade de restrição de efeitos pelo tribunal. O professor Mário Aroso de Almeida vem, neste propósito, defender a ausência de razões de ordem pública que possam justificar a imposição de restrições de efeitos, acrescentando que, a dita faculdade só faz sentido para as declarações com força obrigatória geral.

3.      Declaração de ilegalidade por omissão

Em modo de finalizar este post, basta-nos fazer referência à introdução, pelo CPTA, de um inovador dispositivo que permite ao Ministério Público, às demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no art. 9º nº2, e a quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação, reagir judicialmente contra a omissão ilegal de normas administrativas cuja adopção “seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação”. A este novo regime damos o nome de declaração de ilegalidade por omissão, consagrado no art. 77º do CPTA. Tal como no que respeita à fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, o tribunal dá conhecimento à entidade competente, mas fixando um prazo para a emanação da norma.




BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Mário Aroso de – “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2012

ALMEIDA, Mário Aroso de – “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2004

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AMARAL, Diogo Freitas – “Curso de Direito Administrativo”, Almedina, 2011

ANDRADE, Carlos Vieira de – “A Justiça Administrativa”, Almedina, 2009

MORAIS, Carlos Blanco de – “A Impugnação dos Regulamentos no Contencioso Administrativo Português”, em Temas e Problemas de Processo Administrativo, Edição do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2011

SILVA, Vasco Pereira da – “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2009




 Vanessa Fernandes nº 20882

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