Providências
cautelares – Características e requisitos
O anterior sistema português de justiça
administrativa era notoriamente deficitário no que respeita à tutela cautelar,
existindo como única providência cautelar expressa na legislação a suspensão da
eficácia do acto administrativo. Desde a revisão constitucional de 1997, a Constituição
portuguesa passou a fazer referência expressa à protecção cautelar, consagrando-se
como uma dimensão do princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos
dos particulares, presente no artigo 268º, nº 4 CRP.
As providências cautelares correspondem a um
instrumento de tutela provisória da relação jurídico-administrativa, de
definição da situação jurídica até ao julgamento definitivo, destinado a evitar
a inutilização de um meio processual principal por efeito do decurso do tempo
necessário para a sua concretização. Segundo a definição utilizada por Mário
Aroso de Almeida, “num processo cautelar, o autor num processo declarativo, já
intentado ou ainda a intentar, pede ao tribunal a adopção de uma ou mais
providências destinadas a impedir que, durante a pendência do processo
declarativo, se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos de tal
modo gravosos que ponham em perigo, no todo ou pelo menos em parte, a utilidade
da decisão que ele pretende obter naquele processo”.[1] Como
resulta do artigo 112º, nº 1 CPTA, as providências cautelares revestem a
natureza de meios processuais acessórios que funcionam num momento preliminar,
e, deste modo, apenas podem ser utilizados quando conectados a um meio
processual principal, não possuindo, portanto, autonomia. Os processos
cautelares distinguem-se, assim, dos processos urgentes autónomos, que são
processos principais e visam a produção de decisões de mérito.
A sua função é garantir o tempo indispensável à
efectiva realização da Justiça, tendo por base um conjunto de instrumentos
adequados à gestão do tempo e os seus evidentes efeitos no processo, sem que se
ponha em causa o efeito útil da sentença definitiva. O processo cautelar tem
como desígnio assegurar a utilidade da acção principal que, por implicar uma
cognição plena quanto aos factos e ao direito aplicável, necessita de um
período de tempo de reflexão, estudo e análise por parte do tribunal. Mesmo
quando não há atrasos, exige-se um tempo necessário para julgar bem. E é
precisamente para esses casos, para aqueles processos em que o tempo tem de
cumprir-se para que se possa julgar bem, que é necessário assegurar a utilidade
da sentença que venha a ser proferida no final. Deste modo, a garantia
constitucional da tutela jurisdicional efectiva impõe tanto a existência de um
meio processual adequado a cada direito ou interesse legalmente protegido e
carecido de tutela, como a possibilidade de os interessados utilizarem uma
medida cautelar capaz de assegurar a eficácia da sentença final.
Cabe aos particulares ou entidades administrativas requerer,
cumulativamente ou em alternativa, as medidas que se revelem aptas e essenciais
a cada caso concreto para a garantia da efectividade do processo principal.
Assim, “a legitimidade para requerer a adopção de providências cautelares não
pertence apenas aos particulares que recorram à justiça administrativa em
defesa dos seus diretos ou interesses legalmente protegidos, mas também ao
Ministério Público e a quem quer que actue no exercício da acção popular ou
impugne um acto administrativo com fundamento num interesse directo e pessoal,
no óbvio pressuposto de que a todos deve ser reconhecida a possibilidade d verem
acautelada a utilidade do processo principal que estão legitimados a intentar.”[2]
O legislador criou uma cláusula aberta, no artigo
112º, nº 1, CPTA, que prevê expressamente a possibilidade de adopção de
providências cautelares não especificadas na lei, sujeitas ao critério de
adequação e necessidade, não podendo, contudo, interferir com o espaço de
discricionariedade da Administração. Assim, a cláusula geral confere ao
requerente um alargado conjunto de providências, antecipatórias e
conservatórias, e permite um sistema de protecção cautelar pleno, abrangendo
não só o acto, mas todas as modalidades de actuação administrativa. “Mais não
se trata do que dar cumprimento ao que (…) determina o artigo 268º, nº 4, da
CRP”[3]. O
artigo 112º, nº 2 CPTA consagra, por sua vez, providências típicas, para além
das que se encontram especificadas no Código de Processo Civil, sendo, no
entanto, um elenco meramente exemplificativo.
O processo administrativo abrange providências
conservatórias – visam preservar uma situação de facto existente, assegurando
ao requerente a subsistência da titularidade ou do exercício de um direito ou o
gozo de um bem, que está ameaçado de se perder, e providências antecipatórias –
visam prevenir um dano, adquirindo adiantadamente a disponibilidade de um bem
ou o gozo de um benefício a que o requerente pretende ter direito, mas que lhe
é negado, ou seja, antecipam uma situação que não existia, quando haja um interesse
substancial pretenso. Esta classificação em duas categorias encontra-se
perfilhada no artigo 120º, nº 1 CPTA.
O processo cautelar, em virtude da sua função de
prevenção contra a demora, caracteriza-se pela instrumentalidade,
provisoriedade e sumariedade.
- Quanto à intrumentalidade, esta traduz-se
na dependência da providência em relação a uma acção principal, cuja utilidade
visa assegurar. O processo cautelar só pode ser desencadeado por quem tem
legitimidade para intentar a acção principal e define-se por referência a esta,
de modo a assegurar a utilidade da sentença final (artigos 112º, nº 1 e 113º,
nº 1 CPTA).
- No que respeita à provisoriedade,
relaciona-se com a resolução temporária, e não definitiva, do litígio em causa.
Determina-se pela duração temporal limitada dos efeitos da decisão cautelar e a
sua inaptidão para formar caso julgado, quer no âmbito do processo cautelar,
quer perante a causa principal. O tribunal tem a possibilidade de “revogar,
alterar ou substituir, na pendência do processo principal, a sua decisão de adoptar
ou recusar a adopção de providências cautelares se tiver ocorrido uma alteração
relevante das circunstâncias inicialmente existentes”[4]
(artigo 124º, nº 1 CPTA). A antecipação de tutela é conferida a título
provisório, podendo caducar se, no processo principal, o juiz concluir que já
não é admissível a sua manutenção. Dispõe o artigo 123º, nº 1, alínea a) CPTA
que “as providências cautelares caducam (…) se o requerente não fizer uso, no
respectivo prazo, do meio contencioso adequado à tutela dos interesses a que o
pedido de adopção da providência cautelar se destinou” – a providência cautelar
não perdura sozinha, sem que, dentro dos prazos previstos, seja intentada a
acção principal que virá a decidir em termos definitivos sobre os interesses ou
direitos que se pretendem assegurar de modo perfunctório na providência. Apenas
a decisão a proferir no processo principal pode ser conferida a título
definitivo.
- Por último, a sumariedade manifesta-se no
conhecimento sumário da situação de facto e de direito, decorrente do carácter
provisório e urgente da providência, porque o que está em causa em sede
cautelar é precaver, em tempo útil, ocorrências que possam comprometer a
utilidade do processo principal. Para tal, o tribunal deve proceder a meras
apreciações efémeras, fundamentadas num juízo sumário e de mera probabilidade sobre
os factos a examinar e os requisitos exigidos. Entre a providência cautelar e o
processo principal há correspondência, não havendo, no entanto, necessidade de
identidade completa do objecto do litígio, e tendo em conta que os critérios de
adopção de uma providência cautelar são distintos dos critérios da decisão
final em sede de acção principal. O objecto do litígio em sede cautelar pode
ser mais limitado, atendendo à sumario
cognitio, sendo, todavia, a providência que o requerente pretende acautelar
a pretensão já formulada ou a formular no processo principal (artigo 120º, nº 1
CPTA).
A decisão sobre a atribuição de uma providência
cautelar tem que atender a determinados critérios. Quanto ao requisito do periculum in mora, este decorre
do próprio conceito de providência cautelar que, ao visar garantir o efeito
útil da sentença, pressupõe a existência de um perigo de inutilidade em relação
à mesma, total ou parcial e como resultado do decurso do tempo, demonstrando
que a posição do requerente é digna de protecção. Apura-se no receio de que, no
momento da emissão da sentença, já se tenham entretanto produzido danos na
esfera do autor, podendo o sentido da sentença vir a revelar-se total ou
parcialmente infrutífero. É necessário obter uma decisão sobre o mérito da
questão colocada no processo principal, com carácter de urgência, quando o periculum in mora possa comprometer o
efeito útil do processo principal, só podendo ser evitado através da
antecipação de um efeito que só pode ser determinado pela sentença a proferir
no processo principal. Este requisito de perigosidade encontra-se estabelecido
no artigo 120º, nº1, alínea b) e c) CPTA, ao exigir um “fundado receio da
constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de
difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no
processo principal”. Para determinar a perigosidade, o juiz deve proceder a um
juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença
de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença
venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto
incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação
para quem dela deveria beneficiar. O fundado receio que resultar deste juízo
deve basear-se numa prova, por regra a cargo do requerente, de que tais
consequências são suficientemente prováveis para que se possa considerar
“compreensível ou justificada” a cautela que é solicitada. O juiz só pode
conceder a providência quando se verifique um interesse em agir que se
manifeste no fundamento do pedido, bastando, no entanto, a prova de que se
assegura utilidade à sentença final.
O requisito do fumus
boni iuris, ou aparência do direito, respeita à evidência da
procedência da pretensão principal. O tribunal tem de avaliar, ainda que
sumariamente, a probabilidade da procedência da acção principal, ou seja, a
existência, ainda que aparente, do direito invocado pelo requerente, conferindo
maior garantia ao processo cautelar. Temos como exemplo a manifesta ilegalidade
do acto, presente no artigo 120º, alínea a) CPTA, permitindo que o juiz possa
decretar a providência adequada, mesmo sem prova do receio de facto consumado
ou da difícil reparação do dano independentemente dos prejuízos que a concessão
possa causar ao interesse público, pois sendo evidente que o particular tem
razão, não há motivo para não se conceder essa providência. O juiz só pode
conceder uma providência se considerar que é possível que no final a sentença
venha a dar razão ao requerente, elaborando um grau de probabilidade de êxito no
processo declarativo, dentro dos limites próprios da tutela cautelar, de modo a
que não comprometa nem antecipe o juízo de fundo que caberá formular no
processo principal. A verificação deste requisito demanda que o requerente apresente
indícios suficientes da existência, pelo menos aparente, de um direito seu
contra a Administração, cabendo-lhe assim o ónus da prova, sendo que esta
aparência tem de ser mais forte nos casos de providências antecipatórias do que
nas conservatórias. Este juízo torna-se, assim, indispensável, mesmo que tenha
por base um juízo de probabilidade sumário e provisório. Nas providências conservatórias,
para se provar a aparência de bom direito, basta que não haja fumus malus, pelo que estando
demonstrado o periculum in mora, e
sem prejuízo da ponderação do artigo 120º, nº 2 CPTA, a providência é concedida
a menos que “seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a
formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu
conhecimento de mérito” (artigo 120, nº 1, alínea b CPTA). Nas providências antecipatórias tem que se convencer o juiz de
que existe a probabilidade de ganhar a acção, necessitando de uma indagação
mais exigente, pelo que tem que se demonstrar “que a pretensão formulada ou a
formular nesse processo venha a ser julgada procedente” (artigo 120º, nº 1,
alínea c CPTA).
Decisivo na concessão ou recusa da providência
cautelar é o princípio da proporcionalidade, que implica a ponderação equilibrada
pelo juiz de todos os interesses públicos e privados concretamente em
presença (artigo 120, nº 2 e 3 CPTA), fazendo depender a decisão sobre a concessão
ou recusa, dos interesses preponderantes no caso concreto, sempre que não seja
evidente a procedência ou improcedência da pretensão formulada. São avaliados
em paridade os interesses do autor, réu e eventuais contra-interessados. Mesmo
que se verifiquem o periculum in mora e
o fumus boni iuris, o juiz deve
recusar a concessão quando o prejuízo resultante para o requerido se mostre
superior ao prejuízo que se pretende evitar com a providência, tendo em conta o
tempo de duração da medida e as circunstâncias do caso concreto. Por norma, os
interesses do requerido correspondem ao interesse público, e os do requerente a
interesses privados. Tal ponderação funciona em casos de dúvida ou incerteza,
não sendo relevante quando seja evidente a procedência da pretensão inicial. Quando
o juiz conclui na sentença final pelo direito aplicável, com grau de certeza,
contra ou a favor do autor, não haverá lugar à ponderação de interesses. A lei
confere ao tribunal, após ouvidas as partes, um poder discricionário para
decretar uma providência que não lhe tenha sido requerida, em cumulação ou em
substituição daquela que o foi, quando isso seja adequado para evitar a lesão
do requerente e seja menos gravoso para os demais interesses públicos ou
privados, assegurando uma tutela efectiva, adequada e equilibrada, dos
interesses presentes em cada caso concreto (artigo 120º, nº 3 CPTA).
Ainda no que respeita aos critérios de decisão,
cumpre esclarecer que na acção principal cabe aprofundar o fumus boni iuris, para que de uma aparência de direito se conclua
pela certeza da sua existência ou não, sendo que, em sede de acção principal, o
juiz pode decidir a favor do autor com base em apreciações de direito
distintas, ou em cumulação com as apreciações sumárias e provisórias feitas em
sede cautelar acerca do direito aplicável.
A tutela provisória da providência cautelar será
substituída pela tutela definitiva que vier a resultar da acção principal da
qual a primeira depende, caso a sentença seja favorável ao autor e seja
executada, ao abrigo do artigo 123º, nº 1, alínea f) CPTA. Caso tenha sido
concedida a tutela cautelar à pretensão do autor, e a sentença lhe venha a ser
desfavorável, cessa a tutela da providência cautelar nos termos do artigo 123º,
nº 1, alínea c) CPTA.
A providência cautelar exige uma tramitação célere,
não devendo, contudo, ser confundida com os processos urgentes (artigos 97º e
11º CPTA), na medida em que estes processos não são instrumentais de qualquer
outro processo, e ainda que a sua tramitação tenha de ser célere, não se
satisfazem com apreciação sumária dos factos e do direito, até porque não são
provisórios, sendo a sua decisão definitiva.
O sistema de decretamento de providência cautelar
proporciona aos juízes administrativos uma ampla discricionariedade na
determinação do conteúdo das medidas cautelares e na verificação dos respetivos
pressupostos. Assim, ao juiz é permitido decretar providências distintas das
requeridas (artigo 120º, nº 3 CPTA), bem como impor a prestação de garantia por
parte do requerente (artigo 120º, nº 4 CPTA), ou ainda sujeitar as providências
a termo ou condição (artigo 122º, nº 2 CPTA), bem como revogar, alterar ou
substituir a providência anteriormente decretada, com fundamento na alteração
das circunstâncias (artigo 124º, nº 1 CPTA). A isto acresce o poder que o juiz
cautelar usufrui para avaliar os interesses públicos e privados em presença que
devem prevalecer (artigo 120º, nº 2, 3 e 4 CPTA) e o poder de assegurar a
execução forçada da providência uma vez decretada (artigo 127º, nº 1 e artigo 170º,
nº 2 CPTA), bem como fixar uma sanção pecuniária compulsória que julgue
adequada a assegurar a efectividade da providência decretada (artigo 127º, nº 2
e artigo 169º CPTA).
Bibliografia
-
Almeida,
Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012;
- José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça
Administrativa”, 12ª edição, Almedina, 2012;
- Manuel Fernando Dos Santos Serra “Breve
apontamento sobre as providências cautelares no novo contencioso
administrativo”, Coimbra Editora, 2006;
- Fonseca, José Manuel Vieira da “O contencioso
administrativo português e as providências atípicas: algumas dimensões
fundamentais e problemáticas”, Lisboa, 1996;
- Pina, Catarina Moreno “Providências cautelares a
120.º… mas com critérios: no âmbito do contencioso administrativo”, Lisboa,
2007
Ana Filipa Rodrigues,
nº 21476
Turma A, subturma 1
[1]
Almeida,
Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012,
ob. Cit., pág 437
[2] Almeida, Mário
Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012, ob.
Cit., pág 449
[3] Almeida, Mário
Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012, ob.
Cit., pág 444
[4] Almeida, Mário
Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012, ob.
Cit., pág 438
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