sábado, 30 de novembro de 2013

Providências cautelares – Características e requisitos

O anterior sistema português de justiça administrativa era notoriamente deficitário no que respeita à tutela cautelar, existindo como única providência cautelar expressa na legislação a suspensão da eficácia do acto administrativo. Desde a revisão constitucional de 1997, a Constituição portuguesa passou a fazer referência expressa à protecção cautelar, consagrando-se como uma dimensão do princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares, presente no artigo 268º, nº 4 CRP.
As providências cautelares correspondem a um instrumento de tutela provisória da relação jurídico-administrativa, de definição da situação jurídica até ao julgamento definitivo, destinado a evitar a inutilização de um meio processual principal por efeito do decurso do tempo necessário para a sua concretização. Segundo a definição utilizada por Mário Aroso de Almeida, “num processo cautelar, o autor num processo declarativo, já intentado ou ainda a intentar, pede ao tribunal a adopção de uma ou mais providências destinadas a impedir que, durante a pendência do processo declarativo, se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos de tal modo gravosos que ponham em perigo, no todo ou pelo menos em parte, a utilidade da decisão que ele pretende obter naquele processo”.[1] Como resulta do artigo 112º, nº 1 CPTA, as providências cautelares revestem a natureza de meios processuais acessórios que funcionam num momento preliminar, e, deste modo, apenas podem ser utilizados quando conectados a um meio processual principal, não possuindo, portanto, autonomia. Os processos cautelares distinguem-se, assim, dos processos urgentes autónomos, que são processos principais e visam a produção de decisões de mérito.
A sua função é garantir o tempo indispensável à efectiva realização da Justiça, tendo por base um conjunto de instrumentos adequados à gestão do tempo e os seus evidentes efeitos no processo, sem que se ponha em causa o efeito útil da sentença definitiva. O processo cautelar tem como desígnio assegurar a utilidade da acção principal que, por implicar uma cognição plena quanto aos factos e ao direito aplicável, necessita de um período de tempo de reflexão, estudo e análise por parte do tribunal. Mesmo quando não há atrasos, exige-se um tempo necessário para julgar bem. E é precisamente para esses casos, para aqueles processos em que o tempo tem de cumprir-se para que se possa julgar bem, que é necessário assegurar a utilidade da sentença que venha a ser proferida no final. Deste modo, a garantia constitucional da tutela jurisdicional efectiva impõe tanto a existência de um meio processual adequado a cada direito ou interesse legalmente protegido e carecido de tutela, como a possibilidade de os interessados utilizarem uma medida cautelar capaz de assegurar a eficácia da sentença final.
Cabe aos particulares ou entidades administrativas requerer, cumulativamente ou em alternativa, as medidas que se revelem aptas e essenciais a cada caso concreto para a garantia da efectividade do processo principal. Assim, “a legitimidade para requerer a adopção de providências cautelares não pertence apenas aos particulares que recorram à justiça administrativa em defesa dos seus diretos ou interesses legalmente protegidos, mas também ao Ministério Público e a quem quer que actue no exercício da acção popular ou impugne um acto administrativo com fundamento num interesse directo e pessoal, no óbvio pressuposto de que a todos deve ser reconhecida a possibilidade d verem acautelada a utilidade do processo principal que estão legitimados a intentar.”[2]
O legislador criou uma cláusula aberta, no artigo 112º, nº 1, CPTA, que prevê expressamente a possibilidade de adopção de providências cautelares não especificadas na lei, sujeitas ao critério de adequação e necessidade, não podendo, contudo, interferir com o espaço de discricionariedade da Administração. Assim, a cláusula geral confere ao requerente um alargado conjunto de providências, antecipatórias e conservatórias, e permite um sistema de protecção cautelar pleno, abrangendo não só o acto, mas todas as modalidades de actuação administrativa. “Mais não se trata do que dar cumprimento ao que (…) determina o artigo 268º, nº 4, da CRP”[3]. O artigo 112º, nº 2 CPTA consagra, por sua vez, providências típicas, para além das que se encontram especificadas no Código de Processo Civil, sendo, no entanto, um elenco meramente exemplificativo.
O processo administrativo abrange providências conservatórias – visam preservar uma situação de facto existente, assegurando ao requerente a subsistência da titularidade ou do exercício de um direito ou o gozo de um bem, que está ameaçado de se perder, e providências antecipatórias – visam prevenir um dano, adquirindo adiantadamente a disponibilidade de um bem ou o gozo de um benefício a que o requerente pretende ter direito, mas que lhe é negado, ou seja, antecipam uma situação que não existia, quando haja um interesse substancial pretenso. Esta classificação em duas categorias encontra-se perfilhada no artigo 120º, nº 1 CPTA.
O processo cautelar, em virtude da sua função de prevenção contra a demora, caracteriza-se pela instrumentalidade, provisoriedade e sumariedade.
- Quanto à intrumentalidade, esta traduz-se na dependência da providência em relação a uma acção principal, cuja utilidade visa assegurar. O processo cautelar só pode ser desencadeado por quem tem legitimidade para intentar a acção principal e define-se por referência a esta, de modo a assegurar a utilidade da sentença final (artigos 112º, nº 1 e 113º, nº 1 CPTA).
- No que respeita à provisoriedade, relaciona-se com a resolução temporária, e não definitiva, do litígio em causa. Determina-se pela duração temporal limitada dos efeitos da decisão cautelar e a sua inaptidão para formar caso julgado, quer no âmbito do processo cautelar, quer perante a causa principal. O tribunal tem a possibilidade de “revogar, alterar ou substituir, na pendência do processo principal, a sua decisão de adoptar ou recusar a adopção de providências cautelares se tiver ocorrido uma alteração relevante das circunstâncias inicialmente existentes”[4] (artigo 124º, nº 1 CPTA). A antecipação de tutela é conferida a título provisório, podendo caducar se, no processo principal, o juiz concluir que já não é admissível a sua manutenção. Dispõe o artigo 123º, nº 1, alínea a) CPTA que “as providências cautelares caducam (…) se o requerente não fizer uso, no respectivo prazo, do meio contencioso adequado à tutela dos interesses a que o pedido de adopção da providência cautelar se destinou” – a providência cautelar não perdura sozinha, sem que, dentro dos prazos previstos, seja intentada a acção principal que virá a decidir em termos definitivos sobre os interesses ou direitos que se pretendem assegurar de modo perfunctório na providência. Apenas a decisão a proferir no processo principal pode ser conferida a título definitivo.
- Por último, a sumariedade manifesta-se no conhecimento sumário da situação de facto e de direito, decorrente do carácter provisório e urgente da providência, porque o que está em causa em sede cautelar é precaver, em tempo útil, ocorrências que possam comprometer a utilidade do processo principal. Para tal, o tribunal deve proceder a meras apreciações efémeras, fundamentadas num juízo sumário e de mera probabilidade sobre os factos a examinar e os requisitos exigidos. Entre a providência cautelar e o processo principal há correspondência, não havendo, no entanto, necessidade de identidade completa do objecto do litígio, e tendo em conta que os critérios de adopção de uma providência cautelar são distintos dos critérios da decisão final em sede de acção principal. O objecto do litígio em sede cautelar pode ser mais limitado, atendendo à sumario cognitio, sendo, todavia, a providência que o requerente pretende acautelar a pretensão já formulada ou a formular no processo principal (artigo 120º, nº 1 CPTA).
A decisão sobre a atribuição de uma providência cautelar tem que atender a determinados critérios. Quanto ao requisito do periculum in mora, este decorre do próprio conceito de providência cautelar que, ao visar garantir o efeito útil da sentença, pressupõe a existência de um perigo de inutilidade em relação à mesma, total ou parcial e como resultado do decurso do tempo, demonstrando que a posição do requerente é digna de protecção. Apura-se no receio de que, no momento da emissão da sentença, já se tenham entretanto produzido danos na esfera do autor, podendo o sentido da sentença vir a revelar-se total ou parcialmente infrutífero. É necessário obter uma decisão sobre o mérito da questão colocada no processo principal, com carácter de urgência, quando o periculum in mora possa comprometer o efeito útil do processo principal, só podendo ser evitado através da antecipação de um efeito que só pode ser determinado pela sentença a proferir no processo principal. Este requisito de perigosidade encontra-se estabelecido no artigo 120º, nº1, alínea b) e c) CPTA, ao exigir um “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”. Para determinar a perigosidade, o juiz deve proceder a um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar. O fundado receio que resultar deste juízo deve basear-se numa prova, por regra a cargo do requerente, de que tais consequências são suficientemente prováveis para que se possa considerar “compreensível ou justificada” a cautela que é solicitada. O juiz só pode conceder a providência quando se verifique um interesse em agir que se manifeste no fundamento do pedido, bastando, no entanto, a prova de que se assegura utilidade à sentença final.
O requisito do fumus boni iuris, ou aparência do direito, respeita à evidência da procedência da pretensão principal. O tribunal tem de avaliar, ainda que sumariamente, a probabilidade da procedência da acção principal, ou seja, a existência, ainda que aparente, do direito invocado pelo requerente, conferindo maior garantia ao processo cautelar. Temos como exemplo a manifesta ilegalidade do acto, presente no artigo 120º, alínea a) CPTA, permitindo que o juiz possa decretar a providência adequada, mesmo sem prova do receio de facto consumado ou da difícil reparação do dano independentemente dos prejuízos que a concessão possa causar ao interesse público, pois sendo evidente que o particular tem razão, não há motivo para não se conceder essa providência. O juiz só pode conceder uma providência se considerar que é possível que no final a sentença venha a dar razão ao requerente, elaborando um grau de probabilidade de êxito no processo declarativo, dentro dos limites próprios da tutela cautelar, de modo a que não comprometa nem antecipe o juízo de fundo que caberá formular no processo principal. A verificação deste requisito demanda que o requerente apresente indícios suficientes da existência, pelo menos aparente, de um direito seu contra a Administração, cabendo-lhe assim o ónus da prova, sendo que esta aparência tem de ser mais forte nos casos de providências antecipatórias do que nas conservatórias. Este juízo torna-se, assim, indispensável, mesmo que tenha por base um juízo de probabilidade sumário e provisório. Nas providências conservatórias, para se provar a aparência de bom direito, basta que não haja fumus malus, pelo que estando demonstrado o periculum in mora, e sem prejuízo da ponderação do artigo 120º, nº 2 CPTA, a providência é concedida a menos que “seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito” (artigo 120, nº 1, alínea b CPTA). Nas providências antecipatórias tem que se convencer o juiz de que existe a probabilidade de ganhar a acção, necessitando de uma indagação mais exigente, pelo que tem que se demonstrar “que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente” (artigo 120º, nº 1, alínea c CPTA).
Decisivo na concessão ou recusa da providência cautelar é o princípio da proporcionalidade, que implica a ponderação equilibrada pelo juiz de todos os interesses públicos e privados concretamente em presença (artigo 120, nº 2 e 3 CPTA), fazendo depender a decisão sobre a concessão ou recusa, dos interesses preponderantes no caso concreto, sempre que não seja evidente a procedência ou improcedência da pretensão formulada. São avaliados em paridade os interesses do autor, réu e eventuais contra-interessados. Mesmo que se verifiquem o periculum in mora e o fumus boni iuris, o juiz deve recusar a concessão quando o prejuízo resultante para o requerido se mostre superior ao prejuízo que se pretende evitar com a providência, tendo em conta o tempo de duração da medida e as circunstâncias do caso concreto. Por norma, os interesses do requerido correspondem ao interesse público, e os do requerente a interesses privados. Tal ponderação funciona em casos de dúvida ou incerteza, não sendo relevante quando seja evidente a procedência da pretensão inicial. Quando o juiz conclui na sentença final pelo direito aplicável, com grau de certeza, contra ou a favor do autor, não haverá lugar à ponderação de interesses. A lei confere ao tribunal, após ouvidas as partes, um poder discricionário para decretar uma providência que não lhe tenha sido requerida, em cumulação ou em substituição daquela que o foi, quando isso seja adequado para evitar a lesão do requerente e seja menos gravoso para os demais interesses públicos ou privados, assegurando uma tutela efectiva, adequada e equilibrada, dos interesses presentes em cada caso concreto (artigo 120º, nº 3 CPTA).
Ainda no que respeita aos critérios de decisão, cumpre esclarecer que na acção principal cabe aprofundar o fumus boni iuris, para que de uma aparência de direito se conclua pela certeza da sua existência ou não, sendo que, em sede de acção principal, o juiz pode decidir a favor do autor com base em apreciações de direito distintas, ou em cumulação com as apreciações sumárias e provisórias feitas em sede cautelar acerca do direito aplicável.
A tutela provisória da providência cautelar será substituída pela tutela definitiva que vier a resultar da acção principal da qual a primeira depende, caso a sentença seja favorável ao autor e seja executada, ao abrigo do artigo 123º, nº 1, alínea f) CPTA. Caso tenha sido concedida a tutela cautelar à pretensão do autor, e a sentença lhe venha a ser desfavorável, cessa a tutela da providência cautelar nos termos do artigo 123º, nº 1, alínea c) CPTA.
A providência cautelar exige uma tramitação célere, não devendo, contudo, ser confundida com os processos urgentes (artigos 97º e 11º CPTA), na medida em que estes processos não são instrumentais de qualquer outro processo, e ainda que a sua tramitação tenha de ser célere, não se satisfazem com apreciação sumária dos factos e do direito, até porque não são provisórios, sendo a sua decisão definitiva.
O sistema de decretamento de providência cautelar proporciona aos juízes administrativos uma ampla discricionariedade na determinação do conteúdo das medidas cautelares e na verificação dos respetivos pressupostos. Assim, ao juiz é permitido decretar providências distintas das requeridas (artigo 120º, nº 3 CPTA), bem como impor a prestação de garantia por parte do requerente (artigo 120º, nº 4 CPTA), ou ainda sujeitar as providências a termo ou condição (artigo 122º, nº 2 CPTA), bem como revogar, alterar ou substituir a providência anteriormente decretada, com fundamento na alteração das circunstâncias (artigo 124º, nº 1 CPTA). A isto acresce o poder que o juiz cautelar usufrui para avaliar os interesses públicos e privados em presença que devem prevalecer (artigo 120º, nº 2, 3 e 4 CPTA) e o poder de assegurar a execução forçada da providência uma vez decretada (artigo 127º, nº 1 e artigo 170º, nº 2 CPTA), bem como fixar uma sanção pecuniária compulsória que julgue adequada a assegurar a efectividade da providência decretada (artigo 127º, nº 2 e artigo 169º CPTA).




Bibliografia
- Almeida, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012;
- José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 12ª edição, Almedina, 2012;
- Manuel Fernando Dos Santos Serra “Breve apontamento sobre as providências cautelares no novo contencioso administrativo”, Coimbra Editora, 2006;
- Fonseca, José Manuel Vieira da “O contencioso administrativo português e as providências atípicas: algumas dimensões fundamentais e problemáticas”, Lisboa, 1996;
- Pina, Catarina Moreno “Providências cautelares a 120.º… mas com critérios: no âmbito do contencioso administrativo”, Lisboa, 2007


Ana Filipa Rodrigues, nº 21476
Turma A, subturma 1




[1] Almeida, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012, ob. Cit., pág 437

[2] Almeida, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012, ob. Cit., pág 449
[3] Almeida, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012, ob. Cit., pág 444
[4] Almeida, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012, ob. Cit., pág 438

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