Apreciação crítica do pressuposto processual da Legitimidade Passiva no
Contencioso Administrativo
Como sabemos, “a regularidade da
constituição da instância depende da observância de um conjunto de requisitos
de admissibilidade do julgamento do mérito da causa”[1].
Esses requisitos são os pressupostos processuais.
Entre o vasto leque de
pressupostos cujo preenchimento é necessário para a procedência da ação,
proponho-me analisar, em particular, o da legitimidade processual, mais
concretamente na sua vertente passiva, descrevendo sucintamente o seu regime e
tecendo-lhe uma abordagem crítica, inspirada, principalmente, na visão que o
Professor Vasco Pereira da Silva tem a propósito do assunto.
Como esclarece o Professor[2],
trata-se de um “pressuposto processua[l] específico do Contencioso Administrativo,
e comum a todos os meios processuais”, encontrando-se regulado nos art.s 9.º e
10.º do CPTA. Não é, portanto, aqui, objeto de análise o regime especial da
legitimidade relativo à ação administrativa especial, previsto nos art.s 55.º e
ss. do CPTA, nem outros regimes especiais.
Nas palavras do Professor Vasco
Pereira da Silva, o pressuposto da legitimidade processual pode definir-se como
“o elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se
a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar
sentido útil às decisões dos tribunais”[3].
Ao contrário do que ocorre no
processo civil, em que o pressuposto da legitimidade é tratado de modo
unitário, no processo administrativo, como já se viu, há uma diferenciação
entre a legitimidade ativa (cujo regime geral consta do art. 9.º do CPTA) e a
legitimidade passiva (art. 10.º do CPTA). Concentremo-nos nesta última.
Numa breve análise do art. 10.º
do CPTA percebemos que o seu n.º 1 contém o critério de geral de determinação da
legitimidade passiva. Esse critério é o de ser “parte na relação material
controvertida” (critério da pré-existência de uma relação jurídica entre as
partes na ação[4]), ou
seja, ser titular de um dever no âmbito dessa relação[5].
No entanto, nos números seguintes
deparamos com concretizações deste critério geral, ao definirem, no quadro de
cada “espécie” de parte passiva, quem deve ser demandado, ou seja, no fundo,
quem é que, em cada caso, o CPTA considera ter legitimidade passiva para estar
presente na ação. Assim, se o ato lesivo for cometido por uma entidade pública, diz-nos o n.º
2 que quem deve estar presente em juízo é a pessoa coletiva de direito
público de que essa entidade faz parte (à exceção do que ocorre com o
Estado, que é precisamente o inverso: deve ser demandado o ministério a cujos
órgãos seja imputável o ato lesivo); o mesmo sucede, ao abrigo do n.º 3, no
caso de tal ato ter sido praticado por uma entidade
administrativa independente destituída de personalidade jurídica, sendo
que também aqui é a pessoa coletiva de direito público a que pertence
que deve ser demandada (já se a entidade tiver personalidade jurídica, deve ser
ela própria a demandada); o n.º 6 esclarece que quando a ação lesiva proveio de
um órgão da mesma pessoa coletiva que
o órgão lesado quem deve ser demandado é esse mesmo órgão; prevenindo o n.º 7,
por fim, que podem ser demandados os próprios particulares ou concessionários, no âmbito de relações
jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros
particulares.
Será que as soluções consagradas
são as melhores? Será que estas opções do legislador são as que garantem uma
maior eficácia na resolução do litígio? Não prejudicará o desenrolar do processo
o facto de, neste modelo de legitimidade passiva, muitas vezes o órgão
demandado não coincidir com aquele que efetivamente provocou a lesão e assim se
criar uma distância artificial entre autor e demandado?
Na resposta a estas questões,
sigo a opinião que o Professor Vasco Pereira da Silva tem vindo a manifestar
nas suas aulas, já que, a meu ver, faz todo o sentido e penso que, devidamente
considerada, poderá contribuir para uma melhoria do Contencioso Administrativo
neste aspeto.
Do ponto de vista do Professor, a
opção de fundo consagrada no art. 10.º n.º 1 do CPTA está correta, ou seja, não
é no critério da pré-existência de uma relação jurídica entre as partes na ação
que o Professor vê problemas, pelo contrário até o considera um critério materialmente
justo e, tal como formulado, potenciador de um processo coerente e eficaz.
Onde o Professor considera que o
legislador andou mal foi, nos números seguintes, na identificação do sujeito
passivo, particularmente naqueles em que o órgão ou entidade que cometeu a
lesão é substituído em juízo pela pessoa coletiva pública a que pertence.
Aparentemente, esta substituição não faz qualquer sentido; vejamos um exemplo:
se ocorrerem infrações por parte do chefe do departamento de finanças de
Freixo-de-Espada-à-Cinta, quem deve ser chamado a juízo é o Ministério das
Finanças. Fará isto sentido? Evidentemente, o Ministro das Finanças não está
minimamente a par do que se passou em tal departamento, havendo entre ele e o chefe
do departamento uma ligação meramente formal.
Qual o motivo desta solução
escolhida pelo legislador? Além de motivos formais relacionados com o facto de
o órgão não ter personalidade jurídica que, por influência do processo civil
determinam que tem que ser a pessoa coletiva na qual se integra a
representá-lo, há ainda a “circunstância de, historicamente, os processos de
anulação de actos administrativos terem nascido, no contencioso administrativo
de tipo francês, como processos sem partes, processos feitos a um acto, em que
o órgão da Administração que praticou o acto impugnado não figurava como
entidade demandada mas como autoridade recorrida, em posição comparável àquela
que corresponde ao juiz a quo quando
é interposto recurso para o tribunal superior da decisão proferida. Ora, nessa
senda, a legislação imediatamente anterior ao CPTA continuava a estabelecer que
os processos relativos ao exercício de poderes de autoridade da Administração
eram intentados contra o órgão que tivesse praticado o acto impugnado ou contra
o qual fosse formulado o pedido. A solução do artigo 10.º, n.º 2, rompe com
essa tradição, [embora] de forma mitigada no que respeita às acções
respeitantes ao Estado.[6]”
Ainda que se possa perceber que
esta solução foi, como vimos, ditada pelos “traumas da infância difícil do
Contencioso Administrativo”, como costuma dizer o Professor Vasco Pereira da
Silva, essas razões históricas não são suficientes, no entender do Professor,
para assegurar a justeza da opção.
Também no que toca à influência
do Processo Civil, a tendência para que só se permita a presença em juízo de
entidades providas de personalidade jurídica não faz sentido, para Vasco Pereira
da Silva, já que não se pode comparar campos diametralmente diferentes: no
Processo Civil, do que se trata é de relações entre pessoas, sejam físicas ou
jurídicas, fazendo sentido que só se possam debater, de igual para igual,
entidades com as mesmas características. Não é isso, como sabemos, que se passa
no Direito Administrativo. Aliás, mesmo no Processo Civil, já se começa a ter
em conta a personalidade judiciária de alguns órgãos e entidades desprovidas de
personalidade jurídica, designadamente no ramo comercial, o que demonstra que,
por maioria de razão, tal solução faria ainda mais sentido no que toca ao
Processo Administrativo.
Outro argumento que o Professor
esgrime contra esta solução de o órgão ter que ser representado em juízo pela
pessoa coletiva pública a que pertence é o facto de hoje já não existirem
relações especiais de poder no seio da Administração. Tal teoria, abandonada no
séc. XIX, é mesmo incompatível com o Princípio da Legalidade da Justiça
Administrativa. O que pode haver é relações administrativas especiais, que não
coartam a autonomia do órgão no aspeto aqui em análise.
Aliás, acrescenta o Professor,
para reforçar o seu ponto de vista, que alguns órgãos já são tão autónomos que
possuem um orçamento próprio e outros indicadores que demonstram que estes
teriam todas as condições para defenderem, por si próprios, as suas pretensões
em juízo.
Além disso, se, em casos como os
do n.º 6 do art. 10.º do CPTA os próprios órgãos podem litigar entre si,
ou como os da 2.ª parte do n.º 2 do mesmo art. o Estado faz descer a
legitimidade para estar em juízo ao ministério mais próximo da matéria sobre a
qual ocorreu o ato lesivo, porque não podem gozar da mesma legitimidade os
órgãos nas restantes circunstâncias?
Para encontrar uma possível
solução para aquela que considera ter sido uma opção algo problemática do
legislador português, o Professor recorre a um exercício de Direito Comparado,
tomando os ordenamentos Italiano e Alemão como exemplo. Analisemo-los
sucintamente.
No ordenamento Italiano, foi
consagrada uma solução mais “radical”, ou seja, mais extremada digamos assim.
Abandonou-se completamente a pessoa coletiva pública para efeitos de representação
em juízo, num movimento de des-subjetivização da entidade administrativa; o que
verdadeiramente passou a interessar foi a atuação e quem a leva a cabo: nem
sequer se fala em órgãos, vai-se mesmo à fonte do ato e quem é demandado são os
serviços! Para o Professor Vasco Pereira da Silva esta seria uma boa solução,
no entanto em ordenamentos como o Português e o Francês o termo “serviços” tem
sido utilizado para cobrir outras realidades, pelo que a sua utilização neste
domínio pode suscitar confusão.
Melhor solução se afigura, para o
Professor, a alemã, por sua vez, mais ponderada e com menos hipótese de
estabelecer confusão. O ordenamento alemão considera que, verdadeiramente, quem
atua são os órgãos. Não interessa, por conseguinte, se têm personalidade
jurídica, a ideia que impera é a de que quem atua é que tem de ser responsabilizado.
Assim, na opinião do Professor, neste ordenamento o conceito de pessoa coletiva
pública é “artístico”, já que não tem utilidade prática, sendo uma construção
meramente teórica que, por isso, não deve causar entraves à resolução material
dos litígios.
É uma solução deste tipo que o
Professor postula para o ordenamento português. No fundo, o que se pretende é
alargar o critério do núcleo ou identidade de atribuições, já existente no que
toca à demanda do ministério competente quando a ação é proposta contra o
Estado (art.s 10.º n.º 2 in fine do
CPTA e 133.º n.º 2 b) do CPA) a todo e qualquer órgão administrativo,
ultrapassando a barreira formal da personalidade jurídica que, neste contexto,
só serve para distanciar a relação entre aqueles que estão presentes em juízo:
autor e demandado.
Por fim, cabe dizer apenas e a
título de ressalva que, apesar de o Professor considerar que, genericamente, a
opção do legislador não foi a melhor, ainda assim os diversos esquemas de
citação previstos no artigo permitem uma espécie de “correção” dessa situação.
Além das boas soluções encontradas no que toca aos litígios entre órgãos da
mesma pessoa coletiva (n.º 6 do art. 10.º do CPTA) e à representação do Estado
pelo ministério mais próximo da situação material controvertida (n.º 2 in fine do mesmo art.), encontramos
ainda no seu n.º 4 soluções que permitem flexibilizar o critério da
personalidade jurídica, atribuindo assim, ainda que indiretamente, relevância
ao órgão que efetivamente praticou o ato ao dizer que “o disposto nos dois
números anteriores não obsta a que se considere regularmente proposta a acção
quando na petição inicial tenha sido indicada como parte demandada o órgão que
praticou o acto impugnado ou perante o qual tenha sido formulada a pretensão do
interessado, considerando-se, nesse caso, a acção proposta contra a pessoa
colectiva de direito público ou, no caso do Estado, contra o ministério a que o
órgão pertence.”
Assim, na minha opinião e na
linha da do Professor Vasco Pereira da Silva, pode concluir-se que apesar de
ter tomado uma má opção, tendo consagrado todos estes subterfúgios o legislador
permitiu que nos aproximemos de uma boa solução.
Inês Ribeiro
N.º 20648
Bibliografia:
·
Almeida, Mário Aroso de
2013: Manual de
Processo Administrativo, Almedina, Coimbra;
·
Andrade, José Carlos Vieira de
2012: A Justiça
Administrativa (lições), 12ª edição, Almedina, Coimbra;
·
Silva, Vasco Pereira da
2009: O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no
Novo Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, Coimbra.
[1]
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de
Processo Administrativo, p. 149
[2]
Em VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 368
[3]
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 368
[4]
Nas palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual
de Processo Administrativo, p. 253
[5]
Neste sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (lições), p. 270
[6]
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de
Processo Administrativo, p. 254
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