quarta-feira, 6 de novembro de 2013


Apreciação crítica do pressuposto processual da Legitimidade Passiva no Contencioso Administrativo

Como sabemos, “a regularidade da constituição da instância depende da observância de um conjunto de requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito da causa”[1]. Esses requisitos são os pressupostos processuais.

Entre o vasto leque de pressupostos cujo preenchimento é necessário para a procedência da ação, proponho-me analisar, em particular, o da legitimidade processual, mais concretamente na sua vertente passiva, descrevendo sucintamente o seu regime e tecendo-lhe uma abordagem crítica, inspirada, principalmente, na visão que o Professor Vasco Pereira da Silva tem a propósito do assunto.

Como esclarece o Professor[2], trata-se de um “pressuposto processua[l] específico do Contencioso Administrativo, e comum a todos os meios processuais”, encontrando-se regulado nos art.s 9.º e 10.º do CPTA. Não é, portanto, aqui, objeto de análise o regime especial da legitimidade relativo à ação administrativa especial, previsto nos art.s 55.º e ss. do CPTA, nem outros regimes especiais.

Nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, o pressuposto da legitimidade processual pode definir-se como “o elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais”[3].

Ao contrário do que ocorre no processo civil, em que o pressuposto da legitimidade é tratado de modo unitário, no processo administrativo, como já se viu, há uma diferenciação entre a legitimidade ativa (cujo regime geral consta do art. 9.º do CPTA) e a legitimidade passiva (art. 10.º do CPTA). Concentremo-nos nesta última.

Numa breve análise do art. 10.º do CPTA percebemos que o seu n.º 1 contém o critério de geral de determinação da legitimidade passiva. Esse critério é o de ser “parte na relação material controvertida” (critério da pré-existência de uma relação jurídica entre as partes na ação[4]), ou seja, ser titular de um dever no âmbito dessa relação[5].

No entanto, nos números seguintes deparamos com concretizações deste critério geral, ao definirem, no quadro de cada “espécie” de parte passiva, quem deve ser demandado, ou seja, no fundo, quem é que, em cada caso, o CPTA considera ter legitimidade passiva para estar presente na ação. Assim, se o ato lesivo for cometido por uma entidade pública, diz-nos o n.º 2 que quem deve estar presente em juízo é a pessoa coletiva de direito público de que essa entidade faz parte (à exceção do que ocorre com o Estado, que é precisamente o inverso: deve ser demandado o ministério a cujos órgãos seja imputável o ato lesivo); o mesmo sucede, ao abrigo do n.º 3, no caso de tal ato ter sido praticado por uma entidade administrativa independente destituída de personalidade jurídica, sendo que também aqui é a pessoa coletiva de direito público a que pertence que deve ser demandada (já se a entidade tiver personalidade jurídica, deve ser ela própria a demandada); o n.º 6 esclarece que quando a ação lesiva proveio de um órgão da mesma pessoa coletiva que o órgão lesado quem deve ser demandado é esse mesmo órgão; prevenindo o n.º 7, por fim, que podem ser demandados os próprios particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares.

Será que as soluções consagradas são as melhores? Será que estas opções do legislador são as que garantem uma maior eficácia na resolução do litígio? Não prejudicará o desenrolar do processo o facto de, neste modelo de legitimidade passiva, muitas vezes o órgão demandado não coincidir com aquele que efetivamente provocou a lesão e assim se criar uma distância artificial entre autor e demandado?

Na resposta a estas questões, sigo a opinião que o Professor Vasco Pereira da Silva tem vindo a manifestar nas suas aulas, já que, a meu ver, faz todo o sentido e penso que, devidamente considerada, poderá contribuir para uma melhoria do Contencioso Administrativo neste aspeto.

Do ponto de vista do Professor, a opção de fundo consagrada no art. 10.º n.º 1 do CPTA está correta, ou seja, não é no critério da pré-existência de uma relação jurídica entre as partes na ação que o Professor vê problemas, pelo contrário até o considera um critério materialmente justo e, tal como formulado, potenciador de um processo coerente e eficaz.

Onde o Professor considera que o legislador andou mal foi, nos números seguintes, na identificação do sujeito passivo, particularmente naqueles em que o órgão ou entidade que cometeu a lesão é substituído em juízo pela pessoa coletiva pública a que pertence. Aparentemente, esta substituição não faz qualquer sentido; vejamos um exemplo: se ocorrerem infrações por parte do chefe do departamento de finanças de Freixo-de-Espada-à-Cinta, quem deve ser chamado a juízo é o Ministério das Finanças. Fará isto sentido? Evidentemente, o Ministro das Finanças não está minimamente a par do que se passou em tal departamento, havendo entre ele e o chefe do departamento uma ligação meramente formal.

Qual o motivo desta solução escolhida pelo legislador? Além de motivos formais relacionados com o facto de o órgão não ter personalidade jurídica que, por influência do processo civil determinam que tem que ser a pessoa coletiva na qual se integra a representá-lo, há ainda a “circunstância de, historicamente, os processos de anulação de actos administrativos terem nascido, no contencioso administrativo de tipo francês, como processos sem partes, processos feitos a um acto, em que o órgão da Administração que praticou o acto impugnado não figurava como entidade demandada mas como autoridade recorrida, em posição comparável àquela que corresponde ao juiz a quo quando é interposto recurso para o tribunal superior da decisão proferida. Ora, nessa senda, a legislação imediatamente anterior ao CPTA continuava a estabelecer que os processos relativos ao exercício de poderes de autoridade da Administração eram intentados contra o órgão que tivesse praticado o acto impugnado ou contra o qual fosse formulado o pedido. A solução do artigo 10.º, n.º 2, rompe com essa tradição, [embora] de forma mitigada no que respeita às acções respeitantes ao Estado.[6]

Ainda que se possa perceber que esta solução foi, como vimos, ditada pelos “traumas da infância difícil do Contencioso Administrativo”, como costuma dizer o Professor Vasco Pereira da Silva, essas razões históricas não são suficientes, no entender do Professor, para assegurar a justeza da opção.

Também no que toca à influência do Processo Civil, a tendência para que só se permita a presença em juízo de entidades providas de personalidade jurídica não faz sentido, para Vasco Pereira da Silva, já que não se pode comparar campos diametralmente diferentes: no Processo Civil, do que se trata é de relações entre pessoas, sejam físicas ou jurídicas, fazendo sentido que só se possam debater, de igual para igual, entidades com as mesmas características. Não é isso, como sabemos, que se passa no Direito Administrativo. Aliás, mesmo no Processo Civil, já se começa a ter em conta a personalidade judiciária de alguns órgãos e entidades desprovidas de personalidade jurídica, designadamente no ramo comercial, o que demonstra que, por maioria de razão, tal solução faria ainda mais sentido no que toca ao Processo Administrativo.

Outro argumento que o Professor esgrime contra esta solução de o órgão ter que ser representado em juízo pela pessoa coletiva pública a que pertence é o facto de hoje já não existirem relações especiais de poder no seio da Administração. Tal teoria, abandonada no séc. XIX, é mesmo incompatível com o Princípio da Legalidade da Justiça Administrativa. O que pode haver é relações administrativas especiais, que não coartam a autonomia do órgão no aspeto aqui em análise.

Aliás, acrescenta o Professor, para reforçar o seu ponto de vista, que alguns órgãos já são tão autónomos que possuem um orçamento próprio e outros indicadores que demonstram que estes teriam todas as condições para defenderem, por si próprios, as suas pretensões em juízo.

Além disso, se, em casos como os do n.º 6 do art. 10.º do CPTA os próprios órgãos podem litigar entre si, ou como os da 2.ª parte do n.º 2 do mesmo art. o Estado faz descer a legitimidade para estar em juízo ao ministério mais próximo da matéria sobre a qual ocorreu o ato lesivo, porque não podem gozar da mesma legitimidade os órgãos nas restantes circunstâncias?

Para encontrar uma possível solução para aquela que considera ter sido uma opção algo problemática do legislador português, o Professor recorre a um exercício de Direito Comparado, tomando os ordenamentos Italiano e Alemão como exemplo. Analisemo-los sucintamente.

No ordenamento Italiano, foi consagrada uma solução mais “radical”, ou seja, mais extremada digamos assim. Abandonou-se completamente a pessoa coletiva pública para efeitos de representação em juízo, num movimento de des-subjetivização da entidade administrativa; o que verdadeiramente passou a interessar foi a atuação e quem a leva a cabo: nem sequer se fala em órgãos, vai-se mesmo à fonte do ato e quem é demandado são os serviços! Para o Professor Vasco Pereira da Silva esta seria uma boa solução, no entanto em ordenamentos como o Português e o Francês o termo “serviços” tem sido utilizado para cobrir outras realidades, pelo que a sua utilização neste domínio pode suscitar confusão.

Melhor solução se afigura, para o Professor, a alemã, por sua vez, mais ponderada e com menos hipótese de estabelecer confusão. O ordenamento alemão considera que, verdadeiramente, quem atua são os órgãos. Não interessa, por conseguinte, se têm personalidade jurídica, a ideia que impera é a de que quem atua é que tem de ser responsabilizado. Assim, na opinião do Professor, neste ordenamento o conceito de pessoa coletiva pública é “artístico”, já que não tem utilidade prática, sendo uma construção meramente teórica que, por isso, não deve causar entraves à resolução material dos litígios.

É uma solução deste tipo que o Professor postula para o ordenamento português. No fundo, o que se pretende é alargar o critério do núcleo ou identidade de atribuições, já existente no que toca à demanda do ministério competente quando a ação é proposta contra o Estado (art.s 10.º n.º 2 in fine do CPTA e 133.º n.º 2 b) do CPA) a todo e qualquer órgão administrativo, ultrapassando a barreira formal da personalidade jurídica que, neste contexto, só serve para distanciar a relação entre aqueles que estão presentes em juízo: autor e demandado.

Por fim, cabe dizer apenas e a título de ressalva que, apesar de o Professor considerar que, genericamente, a opção do legislador não foi a melhor, ainda assim os diversos esquemas de citação previstos no artigo permitem uma espécie de “correção” dessa situação. Além das boas soluções encontradas no que toca aos litígios entre órgãos da mesma pessoa coletiva (n.º 6 do art. 10.º do CPTA) e à representação do Estado pelo ministério mais próximo da situação material controvertida (n.º 2 in fine do mesmo art.), encontramos ainda no seu n.º 4 soluções que permitem flexibilizar o critério da personalidade jurídica, atribuindo assim, ainda que indiretamente, relevância ao órgão que efetivamente praticou o ato ao dizer que “o disposto nos dois números anteriores não obsta a que se considere regularmente proposta a acção quando na petição inicial tenha sido indicada como parte demandada o órgão que praticou o acto impugnado ou perante o qual tenha sido formulada a pretensão do interessado, considerando-se, nesse caso, a acção proposta contra a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, contra o ministério a que o órgão pertence.”

Assim, na minha opinião e na linha da do Professor Vasco Pereira da Silva, pode concluir-se que apesar de ter tomado uma má opção, tendo consagrado todos estes subterfúgios o legislador permitiu que nos aproximemos de uma boa solução.

 

 

Inês Ribeiro

N.º 20648

Bibliografia:

·        Almeida, Mário Aroso de

2013: Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra;

·        Andrade, José Carlos Vieira de

2012: A Justiça Administrativa (lições), 12ª edição, Almedina, Coimbra;

·        Silva, Vasco Pereira da

2009: O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, Coimbra.



[1] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, p. 149
[2] Em VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 368
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 368
[4] Nas palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, p. 253
[5] Neste sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (lições), p. 270
[6] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, p. 254

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