Poder Discricionário da Administração e
Controlo Jurisdicional
I.
Não obstante a Administração Pública (doravante AP) se
encontrar subordinada à lei (princípio da legalidade), raros são os casos em
que esta lhe confere um quadro exaustivo de regulação da sua actuação (poderes
vinculados). Nos casos muito frequentes em que lhe é atribuída por lei alguma margem
de liberdade na decisão, diz-se que é conferida à AP uma discricionariedade para actuar, ou um poder discricionário[1] de actuar.
A discricionariedade encontra o seu
principal fundamento na circunstância de, por um lado, ser manifestamente
impossível à lei quer regular todo e qualquer aspecto das diversas situações em
que a Administração é chamada a actuar quer antever a respectiva conformação em
face do seu constante desenvolvimento[2].
Mas, sem embargo de na discricionariedade se estar perante um espaço de livre apreciação
por parte da AP, nem todos os aspectos relativos ao exercício dos denominados poderes discricionários são totalmente discricionários já que, de contrário,
se estaria perante a concessão de um verdadeiro poder arbitrário[3].
Nestes termos, a discricionariedade prende-se, quando e
conforme a lei assim o determinar, com a parte do conteúdo, a parte do objecto,
a parte das formalidades e a parte da forma dos actos de gestão pública unilaterais da Administração deixados ao critério
desta.
Com tais fundamentos, eram formuladas críticas, ainda
na vigência da antiga Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo, ao teor
do seu artigo 19.º que afirmava que o acto praticado ao abrigo de um poder
discricionário só poderia ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder[4].
II.
Contudo, e na medida em que os actos que envolvem o
exercício de um poder discricionário são sempre também, em certa medida,
praticados no uso de poderes vinculados parece ser hoje pacífico que estes
podem ser impugnados contenciosamente com fundamento (artigo 78.º, n.º 1, al.
g)) em qualquer dos vícios do acto administrativo (artigos 50.º, n.º 1 e 95.º,
n.º 2 CPTA), podendo ser alegados, conforme os casos: (i) incompetência; (ii) vício
de forma; (iii) violação de lei
(ofensa a quaisquer limites impostos ao poder discricionário, por lei ou por
auto-vinculação e até de princípios constitucionais); (iv) ou qualquer outro fundamento relacionado com uma vontade
defeituosa (designadamente, o erro de facto).
Este contencioso de impugnação
que tem por objecto a anulação ou de declaração
de nulidade ou inexistência de um acto administrativo ilegal (artigo 50º CPTA) constitui um dos tipos de pedidos
que que pode ser formulado na acção
administrativa especial referida nos artigos 46.º n.º 1 e 2 al. a) do CPTA.
Possuem legitimidade
activa para formular este pedido tanto quem alegue ser
titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo
acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, como as demais pessoas e entidades referidas no artigo
55.º sempre que verificados os
condicionalismos ali previstos[5].
Possuem por sua vez legitimidade
passiva para esta acção, nos termos do artigo 57.º, e para além da entidade
autora do acto impugnado, os contra-interessados, ou seja todos aqueles a quem
o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que
tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado.
Os prazos de exercício
dessa impugnação são os constantes do artigo 58.º, com as especificações constantes do artigo 59.º constituindo o objecto desta acção de condenação, nos termos do
artigo 50.º, o pedido de eliminação pura e simples de um acto jurídico e dos
seus efeitos com fundamento na sua ilegalidade, dado que esta se projecta, negativamente, na esfera jurídica do autor[6].
III.
Sucede que, e em paralelo com este regime, o CPTA no
seu artigo 46.º, n.º 2 al. b) veio instituir, igualmente como meio processual
principal a exercer sob a forma desta mesma
acção administrativa especial, a possibilidade de ser formulado um pedido de condenação da Administração à
prática do acto legalmente devido, com o qual se visa oferecer aos
particulares titulares de um direito ou um interesse legalmente protegido[7], uma mais
efectiva protecção jurídica à emissão
de um acto administrativo quando a AP actua através da recusa ou do silêncio[8] e,
com o qual se veio acentuar o princípio constitucional da tutela jurisdicional
efectiva (artigo 268.º, n.º 4, CRP) e do Estado Social de Direito Democrático.
Não obstante existir uma clara
diferença no propósito e no conteúdo entre este pedido e o de mera impugnação,
o legislador permitiu a cumulação[9] de
ambos na mesma acção (artigo 47.º n.º 2, al. a) e artigo 4.º CPTA) o que, como
referem Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida[10],
deve ser entendido como traduzindo uma mera faculdade atribuída ao particular já
que este pode optar por pedir apenas a anulação do acto, tal como se fazia em
sede de recurso contencioso[11].
Com a introdução do mecanismo do pedido de condenação da Administração à prática do
acto legalmente devido, o CPTA visou proporcionar um controlo judicial mais
vivo e activo da actuação da AP com vista a que o particular veja as suas
pretensões e os seus direitos realizados. Nas palavras de Rita Pires, estamos
perante uma “reconstrução de um
contencioso administrativo centrado nos direitos dos particulares e não no acto
administrativo”[12],
sendo atribuído ao tribunal o direito e o dever de, para salvaguardar a ordem
jurídica, dar ordens à Administração tendo como parâmetros “o respeito da Lei Fundamental e o espaço que
a Constituição e a lei ordinária reservem à AP”[13].
Constituem pressupostos da formulação de um pedido de condenação
da prática do acto devido o facto de i) existir o dever geral da Administração
de se pronunciar sobre assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados
pelo particular nos termos do artigo 9.º do Código de Procedimento
Administrativo; ii) o particular, sujeito do direito ou interesse legalmente
protegido, apresentar um requerimento à AP[14] em
que exige a prática desse acto que lhe é devido por lei, para que o seu direito
seja concretizado e iii) face à apresentação do requerimento, a Administração
actue ilegalmente por uma das formas previstas no artigo 67.º, n.º 1, ou seja,
ou através de um mero silêncio equivalente a omissão pura, através da recusa
expressa da prática do acto requerido que se apresenta como legalmente devido
ou, finalmente, através da recusa de apreciação do requerimento.
Nestes termos, e de acordo com o artigo 66.º, o
objecto do processo será, neste caso, a pretensão do interessado em obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado pelo
que, mesmo que a prática desse acto tenha sido expressamente recusada, o objecto do processo será sempre essa pretensão do
interessado e não o acto de indeferimento, cuja
eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória.
Tal facto permite afirmar a existência de uma clara
distinção entre as funções do pedido de condenação à prática do acto devido e
do pedido de impugnação de actos administrativos, não havendo sobreposição
entre ambos. Mais, assumir-se-á a conveniência do pedido de condenação à
prática de acto devido quando se esteja perante uma recusa expressa de praticar
tal acto já que a pronúncia condenatória será
ela própria o elemento que elimina da ordem jurídica o acto de indeferimento
expresso[15].
Mas será possível ainda assim formular um pedido deste
tipo nos casos em que a actuação da AP esteja essencialmente dominada pelo princípio
da discricionariedade?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa, embora
se deva ter em atenção que a base do pedido de condenação à prática do acto
legalmente devido é exactamente a exclusão da possibilidade de qualquer
discricionariedade que seja oferecida à administração na decisão de agir ou não agir ou, por outras palavras, tem que existir uma vinculação quanto à oportunidade de actuação[16] já
que se a lei não afirmasse a obrigatoriedade da prática do acto não estaríamos
perante um direito ou interesse legitimo do particular à prática do mesmo como
forma de concretização do direito ou interesse em questão, o que como se
referiu, constitui um pressuposto da viabilidade do pedido.
Contudo, o sentido da decisão do tribunal mostra-se
intimamente ligado com os termos da concessão da discricionariedade como iremos
ver de seguida.
IV.
a)
Em face de um mero
pedido de impugnação formulado ao abrigo do artigo 46.º, n.º 1 e 2 al. a) do
CPTA, a lei estabelece um dever de pronúncia do tribunal que abranja todas as causas de
invalidade que tenham sido invocadas contra o acto impugnado - excepto quando
não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito - assim como a identificação
da existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, produzindo
uma decisão relativamente ao pedido em conformidade com a apreciação que sobre
elas faça (n.º 2 do artigo 95º).
b)
Por seu turno, em face de
um pedido de condenação da Administração à prática do acto legalmente devido, o sentido da decisão do tribunal pode assumir uma das
duas vias referidas no artigo 3.º, n.º 3 do CPTA, cuja prossecução está
dependente do facto de a prática e o conteúdo do acto estarem estritamente
vinculados à lei ou envolverem alguma margem de discricionariedade: no primeiro
caso, a própria sentença do órgão jurisdicional pode impor a prática do acto
devido (e.g. artigo 71.º/1), podendo até mesmo, nalguns casos, produzir os seus
efeitos (164.º/4, al. c) e 167.º/6 do CPTA)[17],
enquanto no segundo, o tribunal se limita a providenciar pela concretização material do que se determina
na sua decisão.
Esta diferente solução justifica-se pelo facto de o
Tribunal se não poder substituir à AP na prática de acto administrativo quando
este envolva um poder discricionário que só a esta última incumbe exercer. De
contrário, colocar-se-ia em crise o princípio da separação e interdependência
de poderes reafirmado pelo n.º 1 do mesmo artigo 3.º que veda aos tribunais
apreciar da conveniência ou oportunidade da actuação da AP, ou seja, confundir-se-ia
o dever de administrar (pela Administração)
com o dever de julgar (pelos
tribunais).
Em consequência, mostra-se possível identificar áreas
em que a própria actividade cognitiva do tribunal sofre algumas limitações resultantes
da aplicação deste princípio, quando o acto envolve o exercício de poderes discricionários.
Assim dir-se-á que parece estar-lhe vedado, durante a acção, o repetir uma
actividade instrutória já realizada pela administração, o sobrepor-se aos juízos
de natureza técnico-científica efectuados por esta, o substituir o juízo que a
mesma tenha formulado em questões de ponderação do bem jurídico fundamental
prevalecente (em caso de colisão com outro de idêntica natureza), e ainda os
casos que envolvam o proferir de quaisquer juízos sobre a oportunidade do acto
solicitado ou o conhecer de questões que envolvam qualquer tipo de opções de índole
político-administrativo[18].
Mas, embora o tribunal esteja impedido de proferir uma
sentença que envolva a obrigação da emissão de um acto que incida sobre matéria
que recaia no campo dos poderes discricionários da Administração, ainda assim
incumbe-lhe verificar da conformidade da actuação dos poderes públicos com as
regras e princípios de Direito a que esta está obrigada.
De facto, mesmo estando em causa uma actuação administrativa discricionária,
e por via disso o tribunal se ver confrontado um leque mais limitado de opções
e um mais reduzido campo de intervenção, o exercício do controlo judicial
continua a ser necessário por estar em causa um direito à emissão de um acto
administrativo favorável, garantindo-se o seu exercício dentro dos limites
impostos pelo ordenamento jurídico.
A solução encontrada para este problema, e plasmada no
artigo 71.º do CPTA permite prever as situações em que (i) a prática do acto devido corresponde a um acto ilegalmente
recusado ou omitido – termos em que a condenação será feita apenas se a lei for
clara quanto ao sentido de impor uma actuação, ou quando o tribunal considere
que a administração deverá, atendendo às circunstâncias do caso, agir num único
e determinado sentido (redução a zero da
discricionariedade quanto à oportunidade de actuação)[19], em
paralelo com aquelas em que (ii) a
prática do acto devido corresponde à prática de actos administrativos de
conteúdo discricionário, sendo que a sua emissão é exigida (o que quer dizer
que nem sempre o conteúdo está legalmente pré-determinado ou vinculado), hipótese
em que o tribunal poderá condenar a administração à prática do acto, delineando
o quadro de facto e de direito em que esses poderes deverão ser exercidos[20].
O n.º 2 do artigo 71.º estatui ainda que, quando se
esteja perante a emissão de um acto de conteúdo discricionário, o tribunal deve
determinar o conteúdo do acto a praticar sempre que a apreciação do caso
concreto permita identificar apenas uma
solução como legalmente possível (redução
da discricionariedade a zero). Nos restantes casos, deverá apenas
explicitar as vinculações a observar pela administração na emissão do acto
devido (limitações pela positiva) sem
precisar o sentido da decisão (o que não impede que a sentença se refira as
ilegalidades em que incorreu o acto, exigindo à administração que actue de
novo, evitando a mesma ilegalidade, ao especificar os aspectos vinculados a
observar).
c)
Finalmente, e quando com o pedido de anulação ou de declaração de
nulidade ou inexistência de um acto administrativo tenha sido cumulado pedido de condenação da administração
à adopção dos actos e operações necessários para reconstituir a situação que
existiria se o acto impugnado não tivesse sido praticado, o n.º 3 do artigo 95.º
do CPTA, em linha com o que foi atrás referido, autonomiza também, como não
poderia deixar de ser, o caso em que a adopção da conduta devida envolva a
formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa. Assim,
nestes casos em que a apreciação do caso concreto não permita identificar
apenas uma actuação como legalmente possível, ao tribunal está vedado
determinar o conteúdo da conduta a adoptar, embora deva explicitar quais as
vinculações a observar pela Administração[21].
Pelo exposto, verifica-se que a condenação judicial à
prática do acto administrativo se confronta com os limites impostos pelas
margens de livre apreciação e de livre decisão administrativas e que nem sempre
terá o mesmo sentido: poderá versar sobre as especificações a ter em conta
quanto ao conteúdo do acto a praticar[22] mas
poderá também, em casos excepcionais, versar sobre a totalidade do acto a
praticar quando exista para o caso apenas uma única solução legalmente
admissível.
Poderá ainda a sentença incidir apenas sobre a própria condenação, sem qualquer especificação
quanto ao conteúdo do acto (casos de inércia ou omissão por parte da AP ou em
que esta invocou infundadamente a existência de questões prévias para se
recusar a apreciar a pretensão). Aqui o tribunal exige apenas que o acto seja
reapreciado, podendo, eventualmente, explicitar algumas vinculações a observar.
Em resumo, para os casos em que o acto administrativo
envolva o exercício de poderes discricionários, e com vista a salvaguardar o
aludido princípio da separação de poderes, a doutrina subjacente à solução
encontrada pelo CPTA é a de que um interessado que vê o seu direito frustrado
pelo indevido exercício ou não exercício de um poder discricionário por parte
da AP, não poderá sem mais recorrer de imediato ao tribunal, para que este se
substitua à administração, praticando o acto devido. Considera-se suficiente e
adequado que requeira ao tribunal que condene a AP à respectiva prática.
Mas, ao mesmo tempo, a sentença judicial de provimento
proferida ao abrigo dos artigos 71.º/1 e 2 traduz-se numa decisão restaurativa
de um equilíbrio de poderes quebrado pelo exercício ilegítimo da
discricionariedade administrativa não se limitando o tribunal a um controlo do
erro de apreciação ou avaliação ou da aplicação de um critério manifestamente
desadequado apreciando as várias situações argumentativas do exercício
incorrecto do poder discricionário seja através do recurso aos princípios jurídicos
materiais de controlo da acção administrativa – igualdade, proporcionalidade, boa-fé
etc... – quer através da subsunção as figuras relativas ao mau uso do poder discricionário
– excesso de poder, desvio de poder, exercício omissivo ou deficiente do poder[23].
Tal solução parece proporcionar ao interessado a
adequada tutela judicial no plano declarativo já que, neste particular,
objectivo do controlo jurisdicional não será tanto o de eliminar os espaços de
decisão da AP, mas sim o de salvaguardar o dever de cumprir a Lei e o Direito
em toda a extensão em que a conduta da AP se deva reger por regras e princípios
jurídicos.
[1] Este conceito pode ser encarado sob duas perspectivas
diferentes: a primeira coloca o acento tónico nos actos da administração (teoria da actividade), ao passo que a
segunda realça a perspectiva dos poderes
da administração (teoria da organização). Deste modo, tem-se que, para a
primeira os actos da AP serão vinculados
quando “praticados no exercício de poderes vinculados” sendo discricionários quando “praticados no
exercício de poderes discricionários”. Na segunda perspectiva, o poder é vinculado “quando a lei não
remete para o critério do respectivo titular a escolha da solução concreta mais
adequada” e será discricionário
“quando o seu exercício ficar entregue ao critério do respectivo titular, que
pode e deve escolher a solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à
realização do interesse público protegido pela norma que o confere” (AMARAL,
Diogo Freitas, Curso de Direito
Administrativo, vol. II, Almedina, 2011, p. 86).
[2] Cf. AMARAL, Diogo Freitas, Direito Administrativo, volume II, Lisboa, 1984, p. 269. O mesmo
autor viria a referir mais tarde que outros fundamentos parecem poder
encontrar-se no princípio da separação de poderes e no Estado Social de
Direito, enquanto prestador e constitutivo de deveres positivos para
administração, assim como de direitos ou interesses legítimos para os
particulares, Cf. AMARAL, Diogo Freitas, ob.
cit., 2011, p. 97.
[3] A doutrina sustenta assim a existência de uma parcial
vinculação à lei aquando da prática de actos administrativos que envolvam o
exercício destes poderes. Por exemplo, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (Lições de Direito Administrativo,
Lisboa, 1994/1995, p. 127 e 128) invoca a existência de uma vinculação estrita
quanto aos respectivos pressupostos – órgão, titular devidamente investido,
competência do órgão, eventuais pressupostos objectivos do acto – bem como
quanto aos elementos vontade e fim, acrescentando ainda existir uma
parcial vinculação quanto aos restantes elementos (conteúdo, objecto,
formalidades e forma). O Prof.
Freitas do Amaral, acrescenta ainda que os aspectos discricionários do poder de
actuar se limitam ao momento da prática do acto, à decisão de praticar ou não
um certo acto, à determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão
e a faculdade de apor, ou não, no acto administrativo a condições, termos,
modos, ou outras cláusulas acessórias (cf. artigo 121.º do CPA).
[4] Entendido como o uso indevido que a autoridade administrativa
faz da faculdade discricionária que a lei lhe atribui para concretizar uma dada
finalidade e que se exprime no facto de o acto praticado ou demonstrar uma
discrepância entre o fim efectivamente seguido pela administração e o fim
legal, ou uma divergência entre o fim real e o fim legal.
De acordo com a posição então expressa pelo Prof.
Freitas do Amaral (cf. (AMARAL, Diogo Freitas, ob. cit., 2011, p.115-116) a única forma ampla e eficaz de criar
condições para um controlo efectivo do exercício do poder discricionário seria
o de aumentar o número de vinculações legais e, por isso, o de diminuir o poder
discricionário, no exercício do poder administrativo. Neste sentido, enumerava
como exemplos de situações em que a administração se deveria sujeitar ao
controlo jurisdicional: (i) a
admissão do erro de facto como fundamento da acção de impugnação; (ii) o estabelecimento do controlo
jurisdicional sobre a existência ou inexistência de pressupostos de facto de
competência; (iii) a imposição legal
da obrigação de fundamentar os actos administrativos; (iv) a sujeição a certos princípios gerais de direito, formais e
materiais, tudo com vista a aumentar progressivamente o controlo por parte dos
tribunais, através do acatamento de princípios e critérios jurídicos que
vinculem a administração mas tendo em atenção os princípios da separação de
poderes e da legalidade.
[5] Essa legitimidade será contudo negada a quem, nos
termos do Artigo 56.º, n.º 1 e 2, tenha aceitado o acto, expressa ou tacitamente (através da
prática espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de o vir
a impugnar), depois de praticado.
[6] CORTEZ, Jorge, “Acção de condenação à prática do acto
devido: poderes de pronúncia do tribunal”, Revista
do Ministério Publico, n. 107, 2006, p. 52.
[7] Possuem legitimidade activa para interpor a acção
administrativa especial de condenação à prática do acto devido, nos termos do
artigo 68.º n.º 1 do CPTA, os titulares do próprio direito ou interesse
legalmente protegido (al. a)), as pessoas colectivas, públicas ou privadas, em
relação aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (al. b)), o
Ministério Público, quando o dever de actuar resulte da lei e estejam em causa
a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse especialmente relevantes ou
de qualquer dos valores e bens referidos no artigo 9.º, n.º 2 do CPTA (al. c))
bem como as demais pessoas e entidades mencionadas no mesmo n.º 2 do artigo 9.º
(al. d)).
Quanto aos titulares de legitimidade passiva, o n.º 2
do artigo 68.º refere a entidade incumpridora e os contra-interessados.
A acção deve ser interposta no prazo de um ano nos casos de inércia da
Administração e de três meses nos
casos de indeferimento. Já o prazo legal de decisão não consta regulado. A
doutrina tem considerado ser neste caso aplicável o prazo de noventa dias relativo ao indeferimento e
deferimento tácitos (figuras que se consideram implicitamente revogadas com esta
reforma do contencioso - artigos 108.º e 109.º do CPA). Não obstante alguma
doutrina tem sustentado que uma vez expirado o prazo de um ano estabelecido no
artigo 69º, o interessado pode apresentar de novo o mesmo requerimento a AP e
como não houve anteriormente qualquer decisão, a este requerimento não pode ser
oposto o regime do artigo 9.º, n.º 2. Deste modo, a renovação do mesmo pedido,
ainda que apoiado nos mesmos fundamentos, não se dirige a constituir de novo o
órgão competente no dever de decidir (porque ele ficou constituído nesse dever
a partir do momento em que o primeiro requerimento foi apresentado e esse dever
não se extinguiu) no plano substantivo, com a caducidade, no plano processual,
do direito de reacção judicial contra o incumprimento. Dirigir-se-á, sim, a
permitir a reabertura da via judicial (cf. ALMEIDA, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos tribunais
administrativos, p. 178).
[8] PIRES, Rita Calçada, “O pedido de condenação à prática
de acto administrativo legalmente devido”, Desafiar
a modernização administrativa? Almedina, Fevereiro 2004, p. 15-16.
[9] Bem como a possibilidade de cumulação do pedido de
condenação à prática do acto legalmente devido com o pedido de condenação da
Administração à reparação dos danos resultantes da actuação ou omissão
administrativa ilegal, nos termos do artigo 47.º, n.º 1, CPTA.
[10] AMARAL, Diogo Freitas e ALMEIDA, Mário Aroso de, Grandes Linhas na Reforma do Contencioso
Administrativo, 3.ª edição revista e actualizada, Almedina, Junho, 2004.
[11] Contudo, esta possibilidade de cumulação de pedidos
vem sendo considerada por alguns autores como uma incongruência legislativa,
argumentando Rita PIRES que, no caso de se estar perante uma recusa expressa de
actuar por parte da Administração, o pedido de condenação feito pelo particular
retira conteúdo ao pedido de impugnação do acto, já que a pronúncia
condenatória apresentara sempre um duplo sentido (i) o de condenar a Administração a praticar o acto devido e (ii) como resultado dessa condenação,
fazer desaparecer da ordem jurídica o citado acto de recusa. Acrescenta-se que,
e na medida em que os pedidos visam fins diferentes, a cumulação apenas é possível
desde que haja uma conexão essencial entre as questões e se verifiquem os
pressupostos específicos de cada pedido, o que nem sempre se torna possível.
[12] PIRES, Rita Calçada, ob. cit., p. 20.
[13] Ibidem, p.
93.
[14] Não obstante existir a obrigatoriedade da apresentação
do requerimento perante o órgão competente, o incumprimento de tal comando não
prejudica o particular - artigo 67.º, n.º 3 CPTA – na medida em que o órgão que
o recebeu indevidamente o deve reconduzir para o legalmente competente.
[15] PIRES, Rita Calçada, ob. cit., p. 57.
[16] ALMEIDA, Mario Aroso de, ob. cit., p. 182.
[17] A este propósito a doutrina menciona também os auxílios criados por lei para a figura
da condenação à prática do acto administrativo legalmente devido quer na fase
declarativa quer na fase executiva. A primeira, consagrada no artigo 66.º n.º 3
CPTA (que remete para o artigo 169.º) –
sanção pecuniária compulsória -, que visa, em fase declarativa, e aquando
da condenação da administração, a possibilidade de o juiz impor sanção
pecuniária com finalidade preventiva contra o incumprimento administrativo da
sentença, a qual, recaindo sobre os titulares do órgão, constitui um mecanismo
coercivo para o cumprimento das obrigações ali fixadas. A segunda, consagrada
no artigo 167.º, n.º 6 do CPTA – poder de
substituição – traduz-se no facto de, constatado o incumprimento da
Administração de uma sentença de condenação (decorridos três meses se a
sentença não estipular outro prazo, nos termos do artigo 162.º n.º 1 CPTA)
relativa ao conteúdo de acto estritamente
vinculado, permitir a lei que o juiz se substitua à administração,
produzindo a sentença do tribunal os efeitos do acto legalmente omitido (cf.
artigos 164.º, n.º 4, al. c) e 167.º n.º 6).
[18] CORTEZ, Jorge, ob.
cit., p. 63.
[19] Ibidem, p. 48
e 85. O autor, fazendo apelo ao conceito do direito alemão da “maturidade da questão”,
explicita que o tribunal apenas devera declarar a obrigação da administração em
praticar o acto devido se do processo
constarem todas as circunstâncias de facto que, segundo o direito material aplicável,
possibilitam que seja proferida uma decisão final pela administração sobre a pretensão
material, acrescentando que as esferas de livre apreciação e de livre decisão
administrativa a que corresponde o exercício de poderes discricionários constituem
uma área onde não se verificará, em princípio, tal maturidade (p. 67).
Acrescente-se que não existem, nesses casos de condenação
à prática do acto, devido quaisquer violações do princípio da separação de
poderes, já que estando no espaço de actuação vinculada, o tribunal apenas
censura a administração pela falta de actuação que lhe cabia, determinando a
orientação que deve ser seguida por aquela.
[20] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013, p. 94.
[21] Pelo que, se o quadro normativo permitir ao tribunal especificar o
conteúdo dos actos e operações a adoptar para remover a situação directamente
criada pelo acto impugnado, mas do processo não resultarem elementos de facto
suficientes para proceder a essa especificação, o tribunal notifica a Administração
para em 20 dias apresentar proposta fundamentada sobre a matéria. O tribunal
pode ordenar ainda outras diligências que repute necessárias e ouvir os demais
interessados antes de proferir decisão final (n.º 4 e 5 do artigo 95.º).
[22] Cuja amplitude pode variar desde uma condenação
meramente genérica, o que ocorrerá sempre que o tribunal não possua todos os
elementos do caso concreto que lhe permitam uma delimitação correcta da
condenação (cf. ALMEIDA, Mário Aroso, ob.
cit., p. 185), à injunção de uma tomada de posição final sobre o
requerimento, passando pela condenação da administração na reapreciação do
mesmo mas, sempre e em qualquer caso, tendo presente o enquadramento fáctico-normativo
dado como assente na sentença (cf. CORTEZ, Jorge, ob. cit., p. 85).
Constatado um incumprimento subsequente dessa decisão,
a doutrina formula dois tipos de soluções, que radicam ou na opcionalidade ou no deferimento tácito. A primeira traduz-se no facto de, após a
condenação, estar vedado à Administração escolher executar ou não executar a
sentença pois esta última criou uma obrigação de execução. Esta obrigação de produzir
um resultado que satisfaça o direito do particular criaria ela própria uma
vinculação que legitimaria o recurso subsequente à figura da substituição (cf. supra nota 17). No que
concerne à segunda, esta passaria pelo dever da administração de notificar a
execução da sentença ao tribunal e, se passado o prazo para a execução
espontânea, esta nada disser, então o tribunal emitiria uma sentença que
valeria como título do deferimento tácito e que visaria a protecção do direito
do particular.
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