sexta-feira, 29 de novembro de 2013


Poder Discricionário da Administração e Controlo Jurisdicional  
 

I.

Não obstante a Administração Pública (doravante AP) se encontrar subordinada à lei (princípio da legalidade), raros são os casos em que esta lhe confere um quadro exaustivo de regulação da sua actuação (poderes vinculados). Nos casos muito frequentes em que lhe é atribuída por lei alguma margem de liberdade na decisão, diz-se que é conferida à AP uma discricionariedade para actuar, ou um poder discricionário[1] de actuar.
 A discricionariedade encontra o seu principal fundamento na circunstância de, por um lado, ser manifestamente impossível à lei quer regular todo e qualquer aspecto das diversas situações em que a Administração é chamada a actuar quer antever a respectiva conformação em face do seu constante desenvolvimento[2].
Mas, sem embargo de na discricionariedade se estar perante um espaço de livre apreciação por parte da AP, nem todos os aspectos relativos ao exercício dos denominados poderes discricionários são totalmente discricionários já que, de contrário, se estaria perante a concessão de um verdadeiro poder arbitrário[3].
Nestes termos, a discricionariedade prende-se, quando e conforme a lei assim o determinar, com a parte do conteúdo, a parte do objecto, a parte das formalidades e a parte da forma dos actos de gestão pública unilaterais da Administração deixados ao critério desta.
Com tais fundamentos, eram formuladas críticas, ainda na vigência da antiga Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo, ao teor do seu artigo 19.º que afirmava que o acto praticado ao abrigo de um poder discricionário só poderia ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder[4].

II.

Contudo, e na medida em que os actos que envolvem o exercício de um poder discricionário são sempre também, em certa medida, praticados no uso de poderes vinculados parece ser hoje pacífico que estes podem ser impugnados contenciosamente com fundamento (artigo 78.º, n.º 1, al. g)) em qualquer dos vícios do acto administrativo (artigos 50.º, n.º 1 e 95.º, n.º 2 CPTA), podendo ser alegados, conforme os casos: (i) incompetência; (ii) vício de forma; (iii) violação de lei (ofensa a quaisquer limites impostos ao poder discricionário, por lei ou por auto-vinculação e até de princípios constitucionais); (iv) ou qualquer outro fundamento relacionado com uma vontade defeituosa (designadamente, o erro de facto).
Este contencioso de impugnação que tem por objecto a anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência de um acto administrativo ilegal (artigo 50º CPTA) constitui um dos tipos de pedidos que que pode ser formulado na acção administrativa especial referida nos artigos 46.º n.º 1 e 2 al. a) do CPTA.
Possuem legitimidade activa para formular este pedido tanto quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, como as demais pessoas e entidades referidas no artigo 55.º sempre que verificados os condicionalismos ali previstos[5].
Possuem por sua vez legitimidade passiva para esta acção, nos termos do artigo 57.º, e para além da entidade autora do acto impugnado, os contra-interessados, ou seja todos aqueles a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado.
Os prazos de exercício dessa impugnação são os constantes do artigo 58.º, com as especificações constantes do artigo 59.º constituindo o objecto desta acção de condenação, nos termos do artigo 50.º, o pedido de eliminação pura e simples de um acto jurídico e dos seus efeitos com fundamento na sua ilegalidade, dado que esta se projecta, negativamente, na esfera jurídica do autor[6]. 
 

III.

Sucede que, e em paralelo com este regime, o CPTA no seu artigo 46.º, n.º 2 al. b) veio instituir, igualmente como meio processual principal a exercer sob a forma desta mesma acção administrativa especial, a possibilidade de ser formulado um pedido de condenação da Administração à prática do acto legalmente devido, com o qual se visa oferecer aos particulares titulares de um direito ou um interesse legalmente protegido[7], uma mais efectiva protecção jurídica à emissão de um acto administrativo quando a AP actua através da recusa ou do silêncio[8] e, com o qual se veio acentuar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (artigo 268.º, n.º 4, CRP) e do Estado Social de Direito Democrático.
            Não obstante existir uma clara diferença no propósito e no conteúdo entre este pedido e o de mera impugnação, o legislador permitiu a cumulação[9] de ambos na mesma acção (artigo 47.º n.º 2, al. a) e artigo 4.º CPTA) o que, como referem Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida[10], deve ser entendido como traduzindo uma mera faculdade atribuída ao particular já que este pode optar por pedir apenas a anulação do acto, tal como se fazia em sede de recurso contencioso[11].
Com a introdução do mecanismo do pedido de condenação da Administração à prática do acto legalmente devido, o CPTA visou proporcionar um controlo judicial mais vivo e activo da actuação da AP com vista a que o particular veja as suas pretensões e os seus direitos realizados. Nas palavras de Rita Pires, estamos perante uma “reconstrução de um contencioso administrativo centrado nos direitos dos particulares e não no acto administrativo[12], sendo atribuído ao tribunal o direito e o dever de, para salvaguardar a ordem jurídica, dar ordens à Administração tendo como parâmetros “o respeito da Lei Fundamental e o espaço que a Constituição e a lei ordinária reservem à AP[13].
Constituem pressupostos da formulação de um pedido de condenação da prática do acto devido o facto de i) existir o dever geral da Administração de se pronunciar sobre assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados pelo particular nos termos do artigo 9.º do Código de Procedimento Administrativo; ii) o particular, sujeito do direito ou interesse legalmente protegido, apresentar um requerimento à AP[14] em que exige a prática desse acto que lhe é devido por lei, para que o seu direito seja concretizado e iii) face à apresentação do requerimento, a Administração actue ilegalmente por uma das formas previstas no artigo 67.º, n.º 1, ou seja, ou através de um mero silêncio equivalente a omissão pura, através da recusa expressa da prática do acto requerido que se apresenta como legalmente devido ou, finalmente, através da recusa de apreciação do requerimento.
Nestes termos, e de acordo com o artigo 66.º, o objecto do processo será, neste caso, a pretensão do interessado em obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado pelo que, mesmo que a prática desse acto tenha sido expressamente recusada, o objecto do processo será sempre essa pretensão do interessado e não o acto de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória.
Tal facto permite afirmar a existência de uma clara distinção entre as funções do pedido de condenação à prática do acto devido e do pedido de impugnação de actos administrativos, não havendo sobreposição entre ambos. Mais, assumir-se-á a conveniência do pedido de condenação à prática de acto devido quando se esteja perante uma recusa expressa de praticar tal acto já que a pronúncia condenatória será ela própria o elemento que elimina da ordem jurídica o acto de indeferimento expresso[15].
Mas será possível ainda assim formular um pedido deste tipo nos casos em que a actuação da AP esteja essencialmente dominada pelo princípio da discricionariedade?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa, embora se deva ter em atenção que a base do pedido de condenação à prática do acto legalmente devido é exactamente a exclusão da possibilidade de qualquer discricionariedade que seja oferecida à administração na decisão de agir ou não agir ou, por outras palavras, tem que existir uma vinculação quanto à oportunidade de actuação[16] já que se a lei não afirmasse a obrigatoriedade da prática do acto não estaríamos perante um direito ou interesse legitimo do particular à prática do mesmo como forma de concretização do direito ou interesse em questão, o que como se referiu, constitui um pressuposto da viabilidade do pedido.
Contudo, o sentido da decisão do tribunal mostra-se intimamente ligado com os termos da concessão da discricionariedade como iremos ver de seguida.  
 

IV.

a)
Em face de um mero pedido de impugnação formulado ao abrigo do artigo 46.º, n.º 1 e 2 al. a) do CPTA, a lei estabelece um dever de pronúncia do tribunal que abranja todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o acto impugnado - excepto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito - assim como a identificação da existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, produzindo uma decisão relativamente ao pedido em conformidade com a apreciação que sobre elas faça (n.º 2 do artigo 95º).

b)
Por seu turno, em face de um pedido de condenação da Administração à prática do acto legalmente devido, o sentido da decisão do tribunal pode assumir uma das duas vias referidas no artigo 3.º, n.º 3 do CPTA, cuja prossecução está dependente do facto de a prática e o conteúdo do acto estarem estritamente vinculados à lei ou envolverem alguma margem de discricionariedade: no primeiro caso, a própria sentença do órgão jurisdicional pode impor a prática do acto devido (e.g. artigo 71.º/1), podendo até mesmo, nalguns casos, produzir os seus efeitos (164.º/4, al. c) e 167.º/6 do CPTA)[17], enquanto no segundo, o tribunal se limita a providenciar pela concretização material do que se determina na sua decisão.
Esta diferente solução justifica-se pelo facto de o Tribunal se não poder substituir à AP na prática de acto administrativo quando este envolva um poder discricionário que só a esta última incumbe exercer. De contrário, colocar-se-ia em crise o princípio da separação e interdependência de poderes reafirmado pelo n.º 1 do mesmo artigo 3.º que veda aos tribunais apreciar da conveniência ou oportunidade da actuação da AP, ou seja, confundir-se-ia o dever de administrar (pela Administração) com o dever de julgar (pelos tribunais).
Em consequência, mostra-se possível identificar áreas em que a própria actividade cognitiva do tribunal sofre algumas limitações resultantes da aplicação deste princípio, quando o acto envolve o exercício de poderes discricionários. Assim dir-se-á que parece estar-lhe vedado, durante a acção, o repetir uma actividade instrutória já realizada pela administração, o sobrepor-se aos juízos de natureza técnico-científica efectuados por esta, o substituir o juízo que a mesma tenha formulado em questões de ponderação do bem jurídico fundamental prevalecente (em caso de colisão com outro de idêntica natureza), e ainda os casos que envolvam o proferir de quaisquer juízos sobre a oportunidade do acto solicitado ou o conhecer de questões que envolvam qualquer tipo de opções de índole político-administrativo[18]. 
Mas, embora o tribunal esteja impedido de proferir uma sentença que envolva a obrigação da emissão de um acto que incida sobre matéria que recaia no campo dos poderes discricionários da Administração, ainda assim incumbe-lhe verificar da conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e princípios de Direito a que esta está obrigada.
De facto, mesmo estando em causa uma actuação administrativa discricionária, e por via disso o tribunal se ver confrontado um leque mais limitado de opções e um mais reduzido campo de intervenção, o exercício do controlo judicial continua a ser necessário por estar em causa um direito à emissão de um acto administrativo favorável, garantindo-se o seu exercício dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico.
A solução encontrada para este problema, e plasmada no artigo 71.º do CPTA permite prever as situações em que (i) a prática do acto devido corresponde a um acto ilegalmente recusado ou omitido – termos em que a condenação será feita apenas se a lei for clara quanto ao sentido de impor uma actuação, ou quando o tribunal considere que a administração deverá, atendendo às circunstâncias do caso, agir num único e determinado sentido (redução a zero da discricionariedade quanto à oportunidade de actuação)[19], em paralelo com aquelas em que (ii) a prática do acto devido corresponde à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário, sendo que a sua emissão é exigida (o que quer dizer que nem sempre o conteúdo está legalmente pré-determinado ou vinculado), hipótese em que o tribunal poderá condenar a administração à prática do acto, delineando o quadro de facto e de direito em que esses poderes deverão ser exercidos[20].
O n.º 2 do artigo 71.º estatui ainda que, quando se esteja perante a emissão de um acto de conteúdo discricionário, o tribunal deve determinar o conteúdo do acto a praticar sempre que a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível (redução da discricionariedade a zero). Nos restantes casos, deverá apenas explicitar as vinculações a observar pela administração na emissão do acto devido (limitações pela positiva) sem precisar o sentido da decisão (o que não impede que a sentença se refira as ilegalidades em que incorreu o acto, exigindo à administração que actue de novo, evitando a mesma ilegalidade, ao especificar os aspectos vinculados a observar).

c)
Finalmente, e quando com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência de um acto administrativo tenha sido cumulado pedido de condenação da administração à adopção dos actos e operações necessários para reconstituir a situação que existiria se o acto impugnado não tivesse sido praticado, o n.º 3 do artigo 95.º do CPTA, em linha com o que foi atrás referido, autonomiza também, como não poderia deixar de ser, o caso em que a adopção da conduta devida envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa. Assim, nestes casos em que a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma actuação como legalmente possível, ao tribunal está vedado determinar o conteúdo da conduta a adoptar, embora deva explicitar quais as vinculações a observar pela Administração[21].
Pelo exposto, verifica-se que a condenação judicial à prática do acto administrativo se confronta com os limites impostos pelas margens de livre apreciação e de livre decisão administrativas e que nem sempre terá o mesmo sentido: poderá versar sobre as especificações a ter em conta quanto ao conteúdo do acto a praticar[22] mas poderá também, em casos excepcionais, versar sobre a totalidade do acto a praticar quando exista para o caso apenas uma única solução legalmente admissível.
Poderá ainda a sentença incidir apenas sobre a própria condenação, sem qualquer especificação quanto ao conteúdo do acto (casos de inércia ou omissão por parte da AP ou em que esta invocou infundadamente a existência de questões prévias para se recusar a apreciar a pretensão). Aqui o tribunal exige apenas que o acto seja reapreciado, podendo, eventualmente, explicitar algumas vinculações a observar.
Em resumo, para os casos em que o acto administrativo envolva o exercício de poderes discricionários, e com vista a salvaguardar o aludido princípio da separação de poderes, a doutrina subjacente à solução encontrada pelo CPTA é a de que um interessado que vê o seu direito frustrado pelo indevido exercício ou não exercício de um poder discricionário por parte da AP, não poderá sem mais recorrer de imediato ao tribunal, para que este se substitua à administração, praticando o acto devido. Considera-se suficiente e adequado que requeira ao tribunal que condene a AP à respectiva prática.
Mas, ao mesmo tempo, a sentença judicial de provimento proferida ao abrigo dos artigos 71.º/1 e 2 traduz-se numa decisão restaurativa de um equilíbrio de poderes quebrado pelo exercício ilegítimo da discricionariedade administrativa não se limitando o tribunal a um controlo do erro de apreciação ou avaliação ou da aplicação de um critério manifestamente desadequado apreciando as várias situações argumentativas do exercício incorrecto do poder discricionário seja através do recurso aos princípios jurídicos materiais de controlo da acção administrativa – igualdade, proporcionalidade, boa-fé etc... – quer através da subsunção as figuras relativas ao mau uso do poder discricionário – excesso de poder, desvio de poder, exercício omissivo ou deficiente do poder[23].
Tal solução parece proporcionar ao interessado a adequada tutela judicial no plano declarativo já que, neste particular, objectivo do controlo jurisdicional não será tanto o de eliminar os espaços de decisão da AP, mas sim o de salvaguardar o dever de cumprir a Lei e o Direito em toda a extensão em que a conduta da AP se deva reger por regras e princípios jurídicos.




[1] Este conceito pode ser encarado sob duas perspectivas diferentes: a primeira coloca o acento tónico nos actos da administração (teoria da actividade), ao passo que a segunda realça a perspectiva dos poderes da administração (teoria da organização). Deste modo, tem-se que, para a primeira os actos da AP serão vinculados quando “praticados no exercício de poderes vinculados” sendo discricionários quando “praticados no exercício de poderes discricionários”. Na segunda perspectiva, o poder é vinculado “quando a lei não remete para o critério do respectivo titular a escolha da solução concreta mais adequada” e será discricionário “quando o seu exercício ficar entregue ao critério do respectivo titular, que pode e deve escolher a solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere” (AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2011, p. 86).
[2] Cf. AMARAL, Diogo Freitas, Direito Administrativo, volume II, Lisboa, 1984, p. 269. O mesmo autor viria a referir mais tarde que outros fundamentos parecem poder encontrar-se no princípio da separação de poderes e no Estado Social de Direito, enquanto prestador e constitutivo de deveres positivos para administração, assim como de direitos ou interesses legítimos para os particulares, Cf. AMARAL, Diogo Freitas, ob. cit., 2011, p. 97.
[3] A doutrina sustenta assim a existência de uma parcial vinculação à lei aquando da prática de actos administrativos que envolvam o exercício destes poderes. Por exemplo, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (Lições de Direito Administrativo, Lisboa, 1994/1995, p. 127 e 128) invoca a existência de uma vinculação estrita quanto aos respectivos pressupostos – órgão, titular devidamente investido, competência do órgão, eventuais pressupostos objectivos do acto – bem como quanto aos elementos vontade e fim, acrescentando ainda existir uma parcial vinculação quanto aos restantes elementos (conteúdo, objecto, formalidades e forma). O Prof. Freitas do Amaral, acrescenta ainda que os aspectos discricionários do poder de actuar se limitam ao momento da prática do acto, à decisão de praticar ou não um certo acto, à determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão e a faculdade de apor, ou não, no acto administrativo a condições, termos, modos, ou outras cláusulas acessórias (cf. artigo 121.º do CPA).
[4] Entendido como o uso indevido que a autoridade administrativa faz da faculdade discricionária que a lei lhe atribui para concretizar uma dada finalidade e que se exprime no facto de o acto praticado ou demonstrar uma discrepância entre o fim efectivamente seguido pela administração e o fim legal, ou uma divergência entre o fim real e o fim legal.
De acordo com a posição então expressa pelo Prof. Freitas do Amaral (cf. (AMARAL, Diogo Freitas, ob. cit., 2011, p.115-116) a única forma ampla e eficaz de criar condições para um controlo efectivo do exercício do poder discricionário seria o de aumentar o número de vinculações legais e, por isso, o de diminuir o poder discricionário, no exercício do poder administrativo. Neste sentido, enumerava como exemplos de situações em que a administração se deveria sujeitar ao controlo jurisdicional: (i) a admissão do erro de facto como fundamento da acção de impugnação; (ii) o estabelecimento do controlo jurisdicional sobre a existência ou inexistência de pressupostos de facto de competência; (iii) a imposição legal da obrigação de fundamentar os actos administrativos; (iv) a sujeição a certos princípios gerais de direito, formais e materiais, tudo com vista a aumentar progressivamente o controlo por parte dos tribunais, através do acatamento de princípios e critérios jurídicos que vinculem a administração mas tendo em atenção os princípios da separação de poderes e da legalidade.
[5] Essa legitimidade será contudo negada a quem, nos termos do Artigo 56.º, n.º 1 e 2, tenha aceitado o acto, expressa ou tacitamente (através da prática espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de o vir a impugnar), depois de praticado.
[6] CORTEZ, Jorge, “Acção de condenação à prática do acto devido: poderes de pronúncia do tribunal”, Revista do Ministério Publico, n. 107, 2006, p. 52. 
[7] Possuem legitimidade activa para interpor a acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido, nos termos do artigo 68.º n.º 1 do CPTA, os titulares do próprio direito ou interesse legalmente protegido (al. a)), as pessoas colectivas, públicas ou privadas, em relação aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (al. b)), o Ministério Público, quando o dever de actuar resulte da lei e estejam em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse especialmente relevantes ou de qualquer dos valores e bens referidos no artigo 9.º, n.º 2 do CPTA (al. c)) bem como as demais pessoas e entidades mencionadas no mesmo n.º 2 do artigo 9.º (al. d)).
Quanto aos titulares de legitimidade passiva, o n.º 2 do artigo 68.º refere a entidade incumpridora e os contra-interessados.
A acção deve ser interposta no prazo de um ano nos casos de inércia da Administração e de três meses nos casos de indeferimento. Já o prazo legal de decisão não consta regulado. A doutrina tem considerado ser neste caso aplicável o prazo de noventa dias relativo ao indeferimento e deferimento tácitos (figuras que se consideram implicitamente revogadas com esta reforma do contencioso - artigos 108.º e 109.º do CPA). Não obstante alguma doutrina tem sustentado que uma vez expirado o prazo de um ano estabelecido no artigo 69º, o interessado pode apresentar de novo o mesmo requerimento a AP e como não houve anteriormente qualquer decisão, a este requerimento não pode ser oposto o regime do artigo 9.º, n.º 2. Deste modo, a renovação do mesmo pedido, ainda que apoiado nos mesmos fundamentos, não se dirige a constituir de novo o órgão competente no dever de decidir (porque ele ficou constituído nesse dever a partir do momento em que o primeiro requerimento foi apresentado e esse dever não se extinguiu) no plano substantivo, com a caducidade, no plano processual, do direito de reacção judicial contra o incumprimento. Dirigir-se-á, sim, a permitir a reabertura da via judicial (cf. ALMEIDA, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, p. 178).
[8] PIRES, Rita Calçada, “O pedido de condenação à prática de acto administrativo legalmente devido”, Desafiar a modernização administrativa? Almedina, Fevereiro 2004, p. 15-16.
[9] Bem como a possibilidade de cumulação do pedido de condenação à prática do acto legalmente devido com o pedido de condenação da Administração à reparação dos danos resultantes da actuação ou omissão administrativa ilegal, nos termos do artigo 47.º, n.º 1, CPTA.
[10] AMARAL, Diogo Freitas e ALMEIDA, Mário Aroso de, Grandes Linhas na Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª edição revista e actualizada, Almedina, Junho, 2004.
[11] Contudo, esta possibilidade de cumulação de pedidos vem sendo considerada por alguns autores como uma incongruência legislativa, argumentando Rita PIRES que, no caso de se estar perante uma recusa expressa de actuar por parte da Administração, o pedido de condenação feito pelo particular retira conteúdo ao pedido de impugnação do acto, já que a pronúncia condenatória apresentara sempre um duplo sentido (i) o de condenar a Administração a praticar o acto devido e (ii) como resultado dessa condenação, fazer desaparecer da ordem jurídica o citado acto de recusa. Acrescenta-se que, e na medida em que os pedidos visam fins diferentes, a cumulação apenas é possível desde que haja uma conexão essencial entre as questões e se verifiquem os pressupostos específicos de cada pedido, o que nem sempre se torna possível.
[12] PIRES, Rita Calçada, ob. cit., p. 20.
[13] Ibidem, p. 93.
[14] Não obstante existir a obrigatoriedade da apresentação do requerimento perante o órgão competente, o incumprimento de tal comando não prejudica o particular - artigo 67.º, n.º 3 CPTA – na medida em que o órgão que o recebeu indevidamente o deve reconduzir para o legalmente competente.
[15] PIRES, Rita Calçada, ob. cit., p. 57.
[16] ALMEIDA, Mario Aroso de, ob. cit., p. 182.
[17] A este propósito a doutrina menciona também os auxílios criados por lei para a figura da condenação à prática do acto administrativo legalmente devido quer na fase declarativa quer na fase executiva. A primeira, consagrada no artigo 66.º n.º 3 CPTA (que remete para o artigo 169.º) – sanção pecuniária compulsória -, que visa, em fase declarativa, e aquando da condenação da administração, a possibilidade de o juiz impor sanção pecuniária com finalidade preventiva contra o incumprimento administrativo da sentença, a qual, recaindo sobre os titulares do órgão, constitui um mecanismo coercivo para o cumprimento das obrigações ali fixadas. A segunda, consagrada no artigo 167.º, n.º 6 do CPTA – poder de substituição – traduz-se no facto de, constatado o incumprimento da Administração de uma sentença de condenação (decorridos três meses se a sentença não estipular outro prazo, nos termos do artigo 162.º n.º 1 CPTA) relativa ao conteúdo de acto estritamente vinculado, permitir a lei que o juiz se substitua à administração, produzindo a sentença do tribunal os efeitos do acto legalmente omitido (cf. artigos 164.º, n.º 4, al. c) e 167.º n.º 6).  
[18] CORTEZ, Jorge, ob. cit., p. 63.
[19] Ibidem, p. 48 e 85. O autor, fazendo apelo ao conceito do direito alemão da “maturidade da questão”, explicita que o tribunal apenas devera declarar a obrigação da administração em praticar o acto devido se do processo constarem todas as circunstâncias de facto que, segundo o direito material aplicável, possibilitam que seja proferida uma decisão final pela administração sobre a pretensão material, acrescentando que as esferas de livre apreciação e de livre decisão administrativa a que corresponde o exercício de poderes discricionários constituem uma área onde não se verificará, em princípio, tal maturidade (p. 67).
Acrescente-se que não existem, nesses casos de condenação à prática do acto, devido quaisquer violações do princípio da separação de poderes, já que estando no espaço de actuação vinculada, o tribunal apenas censura a administração pela falta de actuação que lhe cabia, determinando a orientação que deve ser seguida por aquela.
[20] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013, p. 94.
[21] Pelo que, se o quadro normativo permitir ao tribunal especificar o conteúdo dos actos e operações a adoptar para remover a situação directamente criada pelo acto impugnado, mas do processo não resultarem elementos de facto suficientes para proceder a essa especificação, o tribunal notifica a Administração para em 20 dias apresentar proposta fundamentada sobre a matéria. O tribunal pode ordenar ainda outras diligências que repute necessárias e ouvir os demais interessados antes de proferir decisão final (n.º 4 e 5 do artigo 95.º).
[22] Cuja amplitude pode variar desde uma condenação meramente genérica, o que ocorrerá sempre que o tribunal não possua todos os elementos do caso concreto que lhe permitam uma delimitação correcta da condenação (cf. ALMEIDA, Mário Aroso, ob. cit., p. 185), à injunção de uma tomada de posição final sobre o requerimento, passando pela condenação da administração na reapreciação do mesmo mas, sempre e em qualquer caso, tendo presente o enquadramento fáctico-normativo dado como assente na sentença (cf. CORTEZ, Jorge, ob. cit., p. 85).
Constatado um incumprimento subsequente dessa decisão, a doutrina formula dois tipos de soluções, que radicam ou na opcionalidade ou no deferimento tácito. A primeira traduz-se no facto de, após a condenação, estar vedado à Administração escolher executar ou não executar a sentença pois esta última criou uma obrigação de execução. Esta obrigação de produzir um resultado que satisfaça o direito do particular criaria ela própria uma vinculação que legitimaria o recurso subsequente à figura da substituição (cf. supra nota 17). No que concerne à segunda, esta passaria pelo dever da administração de notificar a execução da sentença ao tribunal e, se passado o prazo para a execução espontânea, esta nada disser, então o tribunal emitiria uma sentença que valeria como título do deferimento tácito e que visaria a protecção do direito do particular.
[23] CORTEZ, Jorge, ob. cit., p. 73.
 
 
Diana Silva Pereira, n.º 21513

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