sábado, 30 de novembro de 2013

O alcance psicanalítico do poder judicial de condenação à prática de acto devido


               Depois de superados os óbices dos primórdios do Contencioso Administrativo, relativos à confusão entre as funções do administrador e do juiz, eis que surge um Contencioso de plena jurisdição[1], pois os tribunais administrativos podem, agora, proferir sentenças de carácter declarativo, constitutivo e condenatório[2].

               Com efeito, e antes da reforma de 2002/2003, operada neste âmbito, estes tribunais apenas dispunham de poderes de anulação de decisões da Administração Pública – no então designado “recurso hierárquico jurisdicionalizado”[3] – o que os aproximava mais da Administração, inviabilizando, portanto, a sua consideração como verdadeiros órgãos jurisdicionais, com implicações eventualmente negativas no tocante à tutela efectiva dos direitos dos particulares que se encontrassem em litígio com entidades da Administração Pública. E isto tanto assim era que a Administração deveria retirar todas as conclusões que fossem adequadas à regulação do caso concreto, daquilo que resultaria da anulação de um determinado acto de indeferimento, já que, pela negativa, se podia aperceber do que poderia ou não fazer quanto a uma actuação vinculada.

                Assim, e para além da importante consagração da chamada tutela jurisdicional efectiva, prevista especificamente no artigo 268.º/4 e 5 da Constituição e no artigo 2.º/1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) – segundo a ideia de que a cada direito corresponde uma acção em face de uma acção ou omissão (indevidas) da Administração Pública – há que referir e enaltecer a evolução verificada no âmbito dos poderes do juiz administrativo em geral, nos termos dos artigos 2.º/2[4] e 3.º/1 do CPTA, e em especial, com base no artigo 71.º, também do CPTA, tendo sempre presente que “o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio que corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração”[5].

                Importa compreender que a alteração de paradigma operada também teve subjacente a mudança da própria Administração Pública que, de agressiva passou a prestadora e infra-estrutural – e cujo papel é decisivo na tutela dos direitos dos cidadãos, atendendo, nomeadamente, à actual relevância jurídica das omissões de comportamento legalmente exigido.

                No respeitante à evolução verificada em Portugal quanto à modalidade de condenação da Administração à prática de acto legalmente devido há que referir que, na sequência da revisão Constitucional de 1982, o legislador da reforma do Contencioso Administrativo de 1984/1985, adopta um novo meio processual, a par do recurso de anulação – característico de todo o sistema do Contencioso Administrativo anterior. Ora, este novo modelo foi, de alguma maneira, a base de sustentação do modelo da condenação da Administração à prática de acto devido que hoje conhecemos, sendo a então designada “acção para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos” (art. 69.º LEPTA), pela qual se permitia a condenação da Administração na prática de actos legalmente devidos, nomeadamente, em casos de omissão ilegal. Era, assim, um meio processual que serviria de suplemento aos meios processuais já existentes e que se destinava a garantir a tutela efectiva dos particulares nas relações jurídicas administrativas.
                   Não obstante a importância deste primeiro momento, a verdade é que foi apenas com a revisão constitucional de 1997, que o legislador veio, expressamente, estabelecer a possibilidade de “determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos”[6], entendendo esta como uma componente essencial do princípio da tutela jurisdicional plena e efetiva dos direitos dos particulares face à Administração.
                Foi de todo este processo que surgiu a acção de condenação à prática de ato devido, como modalidade de ação administrativa especial, prevista nos artigos 66.º e seguintes do CPTA. Com base no Direito Alemão (“Verplichtungsklage”), tanto se permite a condenação da Administração nos casos de omissão da actuação, como nos casos de emissão de ato de conteúdo negativo/desfavorável ao particular.[7]

                Feito o enquadramento histórico e dogmático da acção de condenação à prática de acto devido cabe agora atender ao alcance psicanalítico do poder judicial relativo a esta mesma acção.
                Assim sendo, há que ter presente que o tribunal, não só pode, como deve defender a ordem jurídica, reintegrando a legalidade que haja sido ofendida por condutas ilegais da Administração, na sequência do pedido de condenação feito perante o incumprimento do dever de deferir por esta mesma Administração.
                Desta forma, e como o reconhece RITA CALÇADA PIRES, o referido pedido de condenação à prática de acto legalmente devido deve ter como base “a exclusão da possibilidade de existência de discricionariedade de acção, i.e., aquela discricionariedade de optar entre agir e não agir, antes se verificando a existência de vinculação quanto à oportunidade da actuação, não podendo a Administração escolher entre praticar o acto ou não praticar, porque a lei afirma a obrigatoriedade dessa prática, caso contrário não estaríamos perante um direito ou interesse legítimo do particular à prática desse acto como forma de concretização do direito ou interesse em questão.”[8]

                Assim, e em termos esquemáticos, podemos dizer que o alcance dos poderes do juiz administrativo, na acção administrativa especial de condenação à prática de acto legalmente devido, pode ser analisado segundo duas vertentes distintas, a saber:

                1) Vertente da vinculatividade da actuação administrativa[9]; e
                2) Vertente da discricionariedade de escolha da actuação da administração[10].

                1) Neste ponto integrar-se-ão as situações em que é a própria lei a determinar o conteúdo do acto devido[11], bem como situações de redução da discricionariedade a zero[12] [13] dois tipos de casos em que o tribunal terá de indicar qual o conteúdo do acto a realizar pela Administração (artigo 71.º/2 do CPTA, a contrario), o que em nada vem bulir com o princípio da separação de poderes pois o legislador já definira e identificara esse conteúdo aquando da emissão do seu acto normativo.
                Ora, nesta situação há que atender ao artigo 71.º/1 do CPTA, do qual se conclui que o tribunal não se poderá limitar a constatar a invalidade da conduta da Administração, aquando da apreciação de um pedido de condenação à prática de acto devido, e remeter pura e simplesmente para a entidade administrativa em questão para que esta decida de sua justiça. E isto mesmo nas situações em que tenha havido um indeferimento liminar ou uma simples omissão administrativa em face de um requerimento que haja sido apresentado à Administração, ou seja, mesmo nas situações em que não tenha existido qualquer tramitação destinada a analisar o pedido apresentado.[14]
                Assim, e mesmo que não tenha existido o referido procedimento administrativo, a actividade do juiz poderá implicar a realização de diligências de prova no sentido de aferir da existência dos pressupostos justificadores da pretensão do particular – o que exige a determinação de limites até aos quais o tribunal poderá ir, de modo a que a substituição da Administração não desrespeite o princípio da separação de poderes. E este é um ponto de extrema importância pois o facto de estarmos perante a substituição judicial de competências vinculadas da Administração poderia levar a crer que os poderes do tribunal na condenação à prática do acto legalmente devido seriam ilimitados, como sucede em Espanha, e como parece resultar dos artigos 3.º/3 e 167.º/6 do CPTA – quando o juiz, entendendo a questão madura para a decisão, e com base no princípio do inquisitório, declarasse a obrigação de a Administração praticar o acto devido.

                Contudo, e não obstante a mais-valia desta solução de “esgotamento” do assunto em litígio para a concretização da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares e do princípio da boa administração – através da procura judicial oficiosa de todos os factos relevantes para a apreciação da pretensão material do requerente – não podemos, a priori, deixar de considerar todos os interesses que estejam em questão, sob pena de se obter um resultado contrário à tutela dos particulares, e à custa de uma invasão injustificada no campo da Administração.

                E isto tanto é assim se considerarmos duas situações em que a devolução para a Administração será a opção mais adequada, sem se ter emitido qualquer sentença substitutiva, a saber:

·                nos casos de remissão para normas técnicas – circunstância também possível aquando do exercício de competências vinculadas –, em que se exige a intervenção de um órgão mais qualificado para proceder à análise de uma dada situação, de modo a reduzir a probabilidade de erro quanto aos pressupostos de facto, sendo, portanto a solução mais adequada, o reenvio do assunto à Administração.[15]
 
·                nos casos de procedimentos com um certo grau de complexidade, em que a substituição da Administração pelo Tribunal poderia levar a um tratamento da matéria em causa de uma forma não satisfatória, já que é a Administração que está mais preparada (ou, pelo menos, deveria ser) para responder ao que é exigido. Além de que, se se massificasse o recurso ao Tribunal para este emitir a correspondente sentença substitutiva, estar-se-ia a reforçar uma saturação da jurisdição administrativa, com uma consequente diminuição da capacidade para assegurar uma igualdade efectiva entre os cidadãos – uns submetidos aos modelos da Administração, e outros aos dos tribunais administrativos – em situações que mereceriam um tratamento e um resultado tendencialmente uniforme.

 
                Em suma, e como afirma ANDRÉ PAIS PROENÇA “trata-se, aqui de uma manifestação do dever de o juiz, no âmbito de uma acção destinada a assegurar a realização do direito do particular à prática de um acto que lhe é legalmente devido, conhecer do fundo da causa e pronunciar-se sobre o direito alegado, obrigando a Administração a praticar o acto requerido se aquele direito efectivamente exigir”[16].

                Mas este poder/ dever tem de ser aplicado de modo a conseguir uma imprescindível coerência entre a medida substitutiva e a sentença executória. Trata-se, afinal, e como o afirma RITA CALÇADA PIRES, “de aplicar o princípio da legalidade ao juiz, exigindo que, no uso do poder de substituição, deverá atender à necessidade da medida, à sua razoabilidade e à proporcionalidade, surgindo estas exigências como limite funcional ao poder de substituição”[17].


                2) Há aqui que contar, desde logo, com os limites estabelecidos no artigo 3.º do CPTA, pois o princípio da separação de poderes exige um espaço de intervenção menor do juiz, em relação ao que é conferido à Administração, neste âmbito, o que não poderá ser entendido em termos absolutos, pois terá de se garantir o controlo judicial necessário – o que reveste uma elevada importância quando estivermos perante a emissão de um acto administrativo favorável. Com efeito, há que considerar que “discricionariedade e controlo judicial não são realidades opostas. O controlo judicial não se opõe ao reconhecimento ou ao exercício de faculdades discricionárias pela Administração; unicamente garante o seu exercício dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico”[18].

                Com efeito, e ao contrário do que se referiu no ponto 1), quando estiver em causa o exercício de um poder discricionário por parte da Administração, é manifestamente evidente que o Tribunal não poderá exercer livremente os seus poderes instrutórios, dada a necessidade de considerar e respeitar os elementos que hajam contribuído para a formação da vontade administrativa. Por outro lado, mais do que a extensão dos poderes instrutórios do juiz, o que agora terá de se considerar é o âmbito dos poderes de pronúncia do juiz administrativo, ou seja, os casos em que há a condenação da Administração à prática de um acto devido, apesar de existir, em abstracto, um poder discricionário, sem se desconsiderar os limites que o tribunal terá de respeitar quando se pronunciar sobre a pretensão material do requerente.

                Assim sendo, cabe agora atender ao disposto no artigo 71.º/2 do CPTA, segundo 2 planos de análise, a saber:

                1.º o da interpretação do que sejam “valorações próprias do exercício da actividade administrativa”, que levará o tribunal a “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido”;


                2.º o da constatação de que “a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível”, conduzindo o tribunal a “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido”;

                Quanto ao 1.º plano, há que referir que “tal conceito [indeterminado] é reconduzível a um espaço de livre criação de efeitos jurídicos[19], o que significa a sua recondução à figura da margem de livre decisão administrativa – que integra a discricionariedade e o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados que enunciem, normativamente, pressupostos do acto administrativo.

                Com efeito, a subsunção de factos em conceitos jurídicos indeterminados nem sempre constitui um acto de conhecimento da realidade, pelo que pode ser necessário fazer um juízo valorativo, de prognose e segundo parâmetros extra-jurídicos. “Sempre que tal suceder, estamos perante um conceito indeterminado que implica a formulação de valorações próprias da função administrativa e que, portanto, integra a reserva da Administração”[20].

                Assim, há que considerar, como o fazem ANTÓNIO CADILHA[21] e COLAÇO ANTUNES[22], que está aqui em causa é a fixação de um critério vinculativo geral relativamente aos tribunais, no que respeita à definição dos limites funcionais da jurisdição administrativa, como resultado de uma reserva parcial da Administração em face do poder judicial – daí também o reforço desta ideia nos artigos 95.º/3, 168.º/2 e 179.º/1 do CPTA.

                Em suma: a consideração do critério que nos é dado pela expressão “formulação de valorações próprias da actividade administrativa” – o de saber se o preenchimento do conceito indeterminado pressupõe um juízo valorativo de prognose e extra-jurídico –, para saber quais as situações em que a indeterminação conceptual exige o reconhecimento de uma margem de livre decisão por parte da Administração justifica que o Tribunal defina os limites funcionais da sua esfera de intervenção, com base na aplicação deste critério. Mais se refere que o preenchimento de tal critério legal exige, por parte do Tribunal, a interpretação da norma resultante do poder administrativo, bem como a consideração de todos os factores normativos em que esta se integra – como os factos nacionais que a inspiram, a origem histórica e relação com leis anteriores e com todo o sistema – de modo a conseguir perceber se a opção legislativa foi no sentido de atribuir poder de decisão ao nível da execução administrativa da lei.

 

                Quanto ao 2.º plano, há que considerar que, quando estiver em causa o exercício de poderes discricionários, o conteúdo da sentença que condene a Administração à prática do acto devido, terá de ser concretizado através da identificação das ilegalidades em que incorreu o acto de conteúdo negativo[23].

                Assim, o Tribunal apenas poderá estabelecer as modalidades de actuação que a Administração não deverá praticar – o que exige um cuidado redobrado, pois se tal poder do juiz for mal utilizado, a reserva parcial administrativa poderá ser posta em causa.

                Desta forma, e depois de se concluir pela existência de margem de livre decisão, os poderes judiciais de condenação à prática do acto devido deverão ter em conta uma importante distinção[24] entre:

ü  a zona de juridicidade dessa margem, que corresponde a todos os imperativos decorrentes da norma de competência, dos princípios gerais, dos direitos fundamentais e de outras normas que sejam aplicáveis no caso concreto;

 

ü  e a área respeitante à escolha administrativa auto-determinada segundo critérios de valoração e de decisão meta-jurídica, que é uma função da Administração no âmbito da prossecução do interesse público.

 

                Assim, é importante notar que o juiz administrativo nunca se poderá esquecer de considerar e aplicar os testes aferidores da juridicidade previstos no artigo 266.º/2 da Constituição da República Portuguesa, que excluem os resultados que contrariem os valores jurídicos aí consagrados, ao impedir uma intromissão administrativa desigualitária, desproporcional e injusta. São, no fundo, limites negativos de correcção jurídica na valoração e correcção, dos quais decorre um efeito preclusivo sobre o exercício posterior do poder da Administração, de modo a que esta não volte a cometer os mesmos erros.

                Para compreender a forma como os tribunais devem actuar na verificação do exercício da margem de livre decisão através da definição de tais limites é preciso atender ao princípio da proporcionalidade, considerando, nomeadamente, a necessidade de separar os elementos jurídicos das valorações extra-jurídicas aquando da fixação do conteúdo da decisão; além de ser adequado fazer um controlo circunscrito à verificação negativa de modo a concluir que esta é, pelo menos, parcialmente desproporcional, devendo, portanto, ser repetida, quando tal défice for manifesto, deixando em aberto o modo de preenchimento dos espaços de livre valoração da norma.

                Desta forma se garantirá o respeito do juiz administrativo pelas competências da Administração “evitando que na conformação da esfera jurídica dos particulares este assuma uma responsabilidade que cabe, em última instância, à Administração, de proceder a juízos valorativos à luz de parâmetros escolhidos em áreas de configuração meta-jurídica de tarefas públicas”[25].


                Resta, enfim, perguntar se o poder judicial de condenação à prática de acto devido tem já a força necessária para lhe conferir o estatuto de instrumento autónomo de protecção efectiva dos particulares.
                As alterações operadas no âmbito dos poderes do juiz administrativo foram determinantes na afirmação de um novo paradigma de Contencioso Administrativo – visto já não só como de mera legalidade, mas também como uma realidade respeitadora da inevitável e necessária divisão entre a função administrativa e judicial – sendo isto tanto mais importante se considerarmos o facto de que julgar a Administração não pode ser ainda administrar, mas sim, e apenas, julgar e condenar.
                Assim, e depois de analisado o artigo 71.º/1 do CPTA há que concluir pela sua aplicação quando estivermos perante o incumprimento do exercício de poderes vinculados da Administração, sendo de destacar que as sentenças substitutivas de actos administrativos – artigos 3.º/3 e 167.º/6 do CPTA – não poderão ser aceites sem mais, dada a possibilidade de existirem situações em que terá de se admitir a devolução do assunto à Administração, para que esta possa desenvolver o procedimento devido, proferindo o acto legalmente devido. Assim, os dois referidos preceitos não poderão corresponder a uma habilitação geral, absoluta ou ilimitada para a emissão judicial de sentenças substitutivas de actos administrativos, sob pena de intromissão arbitrária do poder judicial no exercício de actividades reservadas ao poder administrativo – tudo isto se devendo articular com um desejado reequilíbrio destes dois poderes, pois ao substituir a Administração na reposição da legalidade, o Tribunal não retirará a legitimidade constitucional que é atribuída àquela, apenas permitindo concluir pela inexistência de uma actividade administrativa, considerada tradicionalmente como infungível.

                Mais se acrescenta que a possibilidade de permitir que a Administração volte a tratar do procedimento em relação ao qual haja sido feito ao Tribunal um pedido de condenação à prática do acto devido, não corresponde a qualquer subalternização do princípio da tutela jurisdicional efectiva que assiste aos particulares, pois tal solução pode, em virtude das circunstâncias do caso concreto, ser, até, a mais adequada para tutelar os direitos destes.[26]

                Quanto ao artigo 71.º/2 do CPTA, vale a pena referir que “a regra é, pois, a de que, na tarefa de explicitação das vinculações a observar (artigo 71.º/2 do CPTA), os tribunais não podem deduzir destes princípios [os do artigo 266.º/2 da Constituição] uma injunção quanto ao sentido alternativo da decisão ou valoração, mas apenas condenar a Administração a repetir o acto administrativo e a reproduzir o iter cognoscitivo e valorativo de formação, identificando os limites inultrapassáveis que decorrem de tais parâmetros de sindicabilidade”[27].

                Desta forma, e porque se trata, afinal, de duas faces da mesma realidade, há que constatar que, quer os actos resultantes de uma actividade vinculada, quer os que decorrem de uma discricionariedade de escolha apresentam aspectos comum entre si. Entre tais aspectos há que referir a censura que é feita à Administração – através da respectiva condenação à prática do acto devido – e, também, o facto de o juiz administrativo ter de apreciar o caso, materialmente.

                Ora, este poder que é conferido ao Tribunal Administrativo de apreciar toda a relação jurídico-administrativa, considerando aquelas duas faces – a da vinculação e respectiva determinação do acto devido, e a da discricionariedade, e respectiva orientação quanto às vinculações a serem observadas pela Administração –, sem se substituir às escolhas que apenas poderão ser tomadas no seio da função administrativa, está hoje consolidado no nosso Estado de Direito Democrático, como um poder necessário para assegurar a tutela dos direitos dos particulares, consolidado que está (e deve estar!) o Princípio da Separação de Poderes.

                Com efeito, os tribunais administrativos, como órgãos jurisdicionais que são, têm como imperiosa missão constitucional a defesa da legalidade e do interesse de todos e de cada um – segundo o artigo 202.º da Constituição – sendo também independentes – atendendo ao artigo 203.º da Lei Fundamental – pelo que dispõem de todos os instrumentos para proferir sentenças capazes de assegurar a referida missão – e que constitui, de resto, a forma de provar o alcance da reforma do Contencioso Administrativo.

                Assim, e quanto a saber se o poder judicial de condenação à prática de acto devido tem já a força necessária para lhe conferir o estatuto de instrumento capaz de garantir uma protecção efectiva dos particulares, há que dizer que tal circunstância dependerá sempre do bom senso e da prudência jurídica com que a jurisprudência encare cada novo caso trazido a juízo, o que implicará que o juiz, para além de condenar a Administração à prática do acto legalmente devido, deverá conformar o comportamento administrativo devido numa das situações do artigo 71.º do CPTA – cujo alcance psicanalítico terá de ir mais além do que a simples devolução do assunto à Administração, mas sem que tal signifique a desconsideração do seu campo de intervenção, também ele localizado na área protegida dos direitos e interesses dos particulares.

 

Bibliografia consultada:

 

ALMEIDA, Mário Aroso de, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004; «Manual de Processo Administrativo», reimpressão, Almedina, Coimbra, 2010

ALMEIDA, Mário Aroso de/ CADILHA, Carlos, «Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos», 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2010

AMORIM, João Pacheco de, “O debate universitário: trabalhos preparatórios”, in «Reforma do Contencioso Administrativo», vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2003

ANDRADE, Vieira de, «A Justiça Administrativa (Lições)», 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012

CADILHA, António, “Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”, in «Estudos em homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia», Coimbra, 2010, vol. II, pp. 161-224

CADILHA, Carlos, «Dicionário de Contencioso Administrativo», Almedina, 2006

COLAÇO, Luís Antunes, “A Acção de Condenação e o Direito ao Acto”, in Colóquio Luso-Espanhol «O Acto Administrativo – Tradição e Reforma», Almedina, Coimbra, 2005

CORREIA, Sérvulo, “O incumprimento do dever de decidir” in «Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Professor Doutor António de Sousa Franco» - Lisboa, 2006, pp. 217-254. - Vol. 2

LORA, Alejandro Huergo, «Las pretensiones de condenea en el Contencioso Administrativo», Aranzadi, Navarra, 2000

MEALHA, Esperança, “A condenação à prática de acto devido na jurisprudência”, in «Revista do Ministério Público, n.º 117 (2009)

PIRES, Rita Calçada, «O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido – desafiar a modernização administrativa?, Coimbra, Almedina, 2004
       Portocarrero, Maria Francisca, “Reflexões sobre os poderes da pronúncia do tribunal num novo meio contencioso - a acção para a determinação da prática de acto administrativo legalmente devido – na sua configuração no art. 71º do CPTA”, in Separata de ARS IVDICANDI – estudos em homenagem ao Prof. Dr. António Castanheira Neves, volume III, 2008.
       PUENTE, Marcos Gómez, «La inactividad de la administración», 2.ª edição, Aranzadi, Navarra, 2000
       PROENÇA, André Rosa Lã País – «As duas faces da condenação à prática do acto devido». Lisboa, 2005. Tese apresentada à Faculdade de Direito de Lisboa. Págs. 68 a 97
SILVA, Vasco Pereira da, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009

 
Mara Afonso, n.º 20684, subturma 1

 



[1]  VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», p. 241
[2] Neste sentido MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, em anotação ao artigo 3.º do CPTA, «Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos», p. 35
[3]  VASCO PEREIRA DA SILVA, Idem, p. 242
[4] Neste preceito é feita uma enumeração meramente exemplificativa dos poderes de pronúncia do juiz, integrando as sentenças de simples apreciação, as constitutivas e as condenatórias.
[5]  MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «Manual de Processo Administrativo», p. 95
[6]  VASCO PEREIRA DA SILVA, idem, p. 381
[7] Para um aprofundamento do conteúdo do incumprimento do dever de decidir e sua relação com o procedimento administrativo ver SÉRVULO CORREIA, “O incumprimento do dever de decidir” in «Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Professor Doutor António de Sousa Franco», devendo considerar-se o papel do procedimento administrativo, como algo realmente essencial no que respeita à acção de condenação da prática de acto devido, por nele constarem todos os factos juridicamente relevantes para a decisão da causa, deixando às partes o papel de, em juízo, os enquadrarem, sem necessidade de juntar elementos fácticos novos.
[8] RITA CALÇADA PIRES, “O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido”, p. 94
[9] Este tipo de situação surge no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17/01/2008, Proc. N.º 1376/06, referido por ESPERANÇA MEALHA, em “A condenação à prática de acto devido na jurisprudência”, in «Revista do Ministério Público n.º 117, pp. 191-192
[10]  Esta situação surge no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3/11/2005, Proc. N.º 239/05, e no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 26/10/2006, Proc. N.º 1844/06 referidos por ESPERANÇA MEALHA, idem, pp. 187-190
[11] PACHECO DE AMORIM, em “O debate universitário”, p. 382, refere como exemplos de actos de conteúdo vinculado, “os de verificação necessária, como as autorizações recognitivas ou declarativas, como é o caso da maioria dos licenciamentos industriais e comerciais, e de uma boa parte dos licenciamentos urbanísticos, e ainda os actos ditos de verificação constitutiva, tais como as inscrições em ordens profissionais e em escolas públicas, as inscrições em listas eleitorais […], as subvenções, em matéria de segurança social”.
[12] Tal circunstância decorrerá do facto de, e em face de um caso concreto, se concluir pela existência de apenas uma opção a tomar pela Administração, não obstante a lei lhe ter conferido, ab initio, poderes discricionários relativamente ao conteúdo favorável do acto devido, e se a escolha já tiver sido realizada.
[13]  Esta situação surge no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 29/11/2007, Proc. N.º 2977/07, referido por ESPERANÇA MEALHA, idem, pp. 190-191
[14] A sentença do Tribunal Administrativo Federal Alemão de 13 de Abril de 1961 vem demonstrar o elevado nível de exigência da jurisprudência alemã quanto a este dever do tribunal, afirmando-se que, “condenar a Administração a que resolva sobre o requerimento de um particular é apenas um imperfeito sucedâneo de uma decisão sobre o fundo e, de acordo com os princípios do Estado de Direito, só é aceitável quando não se dêem as condições para esta última: quando o assunto não reúna as condições necessárias para que se dite uma sentença ou não se possa levar a essa situação”, in HUERGO LORA, «Las pretensiones de condenea en el Contencioso Administrativo», p. 291, onde também se refere a possibilidade de anulação de decisões de tribunais de primeira instância que não tenham procedido à apreciação do fundo da causa, antes se limitando a devolver o assunto à Administração, para que esta realizasse as diligências de prova requeridas para o proferimento de uma decisão sobre o fundo da causa.
[15] E é neste sentido que se pronuncia COLAÇO ANTUNES, em “A Acção de Condenação e o Direito ao Acto”, p. 220, referindo que “em presença de actos vinculados, sempre que se preveja a obrigatoriedade de um procedimento administrativo como pressuposto de legitimidade do acto, o processo e o seu juiz não poderão substituir o procedimento administrativo e, consequentemente, não poderá ser pronunciado um Vornahmeurteil”.
[16] ANDRÉ PAIS PROENÇA, “As duas faces da condenação à prática de acto devido”, p. 75
[17] RITA CALÇADA PIRES, idem, p. 108
[18]  MARCOS GÓMEZ PUENTE, « La inactividad de la administración», p. 149
[19]  ANTÓNIO CADILHA, “Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”, p. 186
[20] ANTÓNIO CADILHA, idem, p. 188
[21] Ibidem
[22] COLAÇO ANTUNES, idem, p. 228
[23] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, em ”Manual de Processo Administrativo”, p. 101, sintetiza esta mesma ideia, referindo que “se trata de traduzir para positivo as vinculações que, pela negativa, eram deduzidas das tradicionais sentenças de anulação de actos negativos”.
[24] Esta distinção entre zona sindicável e não sindicável deve ser sempre considerada aquando da explicitação das vinculações que a Administração deverá respeitar na emissão do acto devido.
[25] ANTÓNIO CADILHA, idem, p. 222
[26]  O que, obviamente, não impede o tribunal de impor, de forma mais intensa, a devida execução pela Administração de uma sentença meramente indicativa, atendendo aos artigos 44.º, 49.º e 169.º do CPTA, ou que, a decisão que venha a ser proferida pela Administração volte a ser novamente contestada judicialmente – tudo isto tendo subjacente a inevitável ponderação que o juiz administrativo terá de fazer entre os interesses envolvidos de modo a concluir pela maior adequação da emissão de uma sentença meramente indicativa, de tal modo que seja impossível ou, pelo menos, de grande inconveniência, uma pronúncia condenatória nos termos dos artigos 66.º e 77.º/1 do CPTA.
[27] ANTÓNIO CADILHA, idem, p. 221

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