Depois de
superados os óbices dos primórdios do Contencioso Administrativo, relativos à
confusão entre as funções do administrador e do juiz, eis que surge um Contencioso
de plena jurisdição[1], pois os
tribunais administrativos podem, agora, proferir sentenças de carácter
declarativo, constitutivo e condenatório[2].
Com efeito, e antes da reforma
de 2002/2003, operada neste âmbito, estes tribunais apenas dispunham de poderes
de anulação de decisões da Administração Pública – no então designado “recurso
hierárquico jurisdicionalizado”[3]
– o que os aproximava mais da Administração, inviabilizando, portanto, a sua
consideração como verdadeiros órgãos jurisdicionais, com implicações
eventualmente negativas no tocante à tutela efectiva dos direitos dos
particulares que se encontrassem em litígio com entidades da Administração
Pública. E isto tanto assim era que a Administração deveria retirar todas as
conclusões que fossem adequadas à regulação do caso concreto, daquilo que
resultaria da anulação de um determinado acto de indeferimento, já que, pela
negativa, se podia aperceber do que poderia ou não fazer quanto a uma actuação
vinculada.
Assim, e para além da importante
consagração da chamada tutela jurisdicional efectiva, prevista especificamente no
artigo 268.º/4 e 5 da Constituição e no artigo 2.º/1 do Código de Processo dos
Tribunais Administrativos (CPTA) – segundo a ideia de que a cada direito
corresponde uma acção em face de uma acção ou omissão (indevidas) da
Administração Pública – há que referir e enaltecer a evolução verificada no
âmbito dos poderes do juiz administrativo em geral, nos termos dos artigos
2.º/2[4] e 3.º/1
do CPTA, e em especial, com base no artigo 71.º, também do CPTA, tendo sempre
presente que “o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio que
corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração”[5].
Importa
compreender que a alteração de paradigma operada também teve subjacente a
mudança da própria Administração Pública que, de agressiva passou a prestadora
e infra-estrutural – e cujo papel é decisivo na tutela dos direitos dos
cidadãos, atendendo, nomeadamente, à actual relevância jurídica das omissões de
comportamento legalmente exigido.
No respeitante à evolução verificada em Portugal quanto à modalidade
de condenação da Administração à prática de acto legalmente devido há que
referir que, na sequência da revisão Constitucional de 1982, o legislador da
reforma do Contencioso Administrativo de 1984/1985, adopta um novo meio
processual, a par do recurso de anulação – característico de todo o sistema do
Contencioso Administrativo anterior. Ora, este novo modelo foi, de alguma
maneira, a base de sustentação do modelo da condenação da Administração à
prática de acto devido que hoje conhecemos, sendo a então designada “acção para
o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos” (art. 69.º
LEPTA), pela qual se permitia a condenação da Administração na prática de actos
legalmente devidos, nomeadamente, em casos de omissão ilegal. Era, assim, um
meio processual que serviria de suplemento aos meios processuais já existentes
e que se destinava a garantir a tutela efectiva dos particulares nas relações
jurídicas administrativas.
Não obstante a importância deste
primeiro momento, a verdade é que foi apenas com a revisão constitucional de
1997, que o legislador veio, expressamente, estabelecer a possibilidade de
“determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos”[6],
entendendo esta como uma componente essencial do princípio da tutela
jurisdicional plena e efetiva dos direitos dos particulares face à
Administração.
Foi
de todo este processo que surgiu a acção de condenação à prática de ato devido,
como modalidade de ação administrativa especial, prevista nos artigos 66.º e
seguintes do CPTA. Com base no Direito Alemão (“Verplichtungsklage”), tanto se
permite a condenação da Administração nos casos de omissão da actuação, como
nos casos de emissão de ato de conteúdo negativo/desfavorável ao particular.[7]
Feito o enquadramento histórico e dogmático da acção de condenação à
prática de acto devido cabe agora atender ao alcance psicanalítico do poder
judicial relativo a esta mesma acção.
Assim sendo, há que ter presente
que o tribunal, não só pode, como deve defender a ordem jurídica, reintegrando
a legalidade que haja sido ofendida por condutas ilegais da Administração, na
sequência do pedido de condenação feito perante o incumprimento do dever de
deferir por esta mesma Administração.
Desta forma, e como o reconhece
RITA CALÇADA PIRES, o referido pedido de condenação à prática de acto
legalmente devido deve ter como base “a exclusão da possibilidade de existência
de discricionariedade de acção, i.e., aquela discricionariedade de optar entre
agir e não agir, antes se verificando a existência de vinculação quanto à
oportunidade da actuação, não podendo a Administração escolher entre praticar o
acto ou não praticar, porque a lei afirma a obrigatoriedade dessa prática, caso
contrário não estaríamos perante um direito ou interesse legítimo do particular
à prática desse acto como forma de concretização do direito ou interesse em
questão.”[8]
Assim, e em termos esquemáticos,
podemos dizer que o alcance dos poderes do juiz administrativo, na acção
administrativa especial de condenação à prática de acto legalmente devido, pode
ser analisado segundo duas vertentes distintas, a saber:
1) Vertente da vinculatividade da actuação administrativa[9];
e
2) Vertente da discricionariedade de escolha da actuação da
administração[10].
1) Neste ponto integrar-se-ão as situações em que é a própria lei a
determinar o conteúdo do acto devido[11],
bem como situações de redução da discricionariedade a zero[12]
[13]
dois tipos de casos em que o tribunal terá de indicar qual o conteúdo do acto a
realizar pela Administração (artigo 71.º/2 do CPTA, a contrario), o que em nada vem bulir com o princípio da
separação de poderes pois o legislador já definira e identificara esse conteúdo
aquando da emissão do seu acto normativo.
Ora, nesta situação há que
atender ao artigo 71.º/1 do CPTA, do qual se conclui que o tribunal não se
poderá limitar a constatar a invalidade da conduta da Administração, aquando da
apreciação de um pedido de condenação à prática de acto devido, e remeter pura
e simplesmente para a entidade administrativa em questão para que esta decida
de sua justiça. E isto mesmo nas situações em que tenha havido um indeferimento
liminar ou uma simples omissão administrativa em face de um requerimento que
haja sido apresentado à Administração, ou seja, mesmo nas situações em que não
tenha existido qualquer tramitação destinada a analisar o pedido apresentado.[14]
Assim, e mesmo que não tenha
existido o referido procedimento administrativo, a actividade do juiz poderá
implicar a realização de diligências de prova no sentido de aferir da
existência dos pressupostos justificadores da pretensão do particular – o que
exige a determinação de limites até aos quais o tribunal poderá ir, de modo a
que a substituição da Administração não desrespeite o princípio da separação de
poderes. E este é um ponto de extrema importância pois o facto de estarmos
perante a substituição judicial de competências vinculadas da Administração
poderia levar a crer que os poderes do tribunal na condenação à prática do acto
legalmente devido seriam ilimitados, como sucede em Espanha, e como parece
resultar dos artigos 3.º/3 e 167.º/6 do CPTA – quando o juiz, entendendo a
questão madura para a decisão, e com base no princípio do inquisitório, declarasse
a obrigação de a Administração praticar o acto devido.
Contudo, e não obstante a
mais-valia desta solução de “esgotamento” do assunto em litígio para a
concretização da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares e
do princípio da boa administração – através da procura judicial oficiosa de
todos os factos relevantes para a apreciação da pretensão material do
requerente – não podemos, a priori, deixar
de considerar todos os interesses que estejam em questão, sob pena de se obter
um resultado contrário à tutela dos particulares, e à custa de uma invasão
injustificada no campo da Administração.
E
isto tanto é assim se considerarmos duas situações em que a devolução para a
Administração será a opção mais adequada, sem se ter emitido qualquer sentença
substitutiva, a saber:
·
nos casos de
remissão para normas técnicas – circunstância também possível aquando do
exercício de competências vinculadas –, em que se exige a intervenção de um
órgão mais qualificado para proceder à análise de uma dada situação, de modo a
reduzir a probabilidade de erro quanto aos pressupostos de facto, sendo,
portanto a solução mais adequada, o reenvio do assunto à Administração.[15]
·
nos casos de
procedimentos com um certo grau de complexidade, em que a substituição da
Administração pelo Tribunal poderia levar a um tratamento da matéria em causa
de uma forma não satisfatória, já que é a Administração que está mais preparada
(ou, pelo menos, deveria ser) para responder ao que é exigido. Além de que, se se
massificasse o recurso ao Tribunal para este emitir a correspondente sentença
substitutiva, estar-se-ia a reforçar uma saturação da jurisdição
administrativa, com uma consequente diminuição da capacidade para assegurar uma
igualdade efectiva entre os cidadãos – uns submetidos aos modelos da
Administração, e outros aos dos tribunais administrativos – em situações que
mereceriam um tratamento e um resultado tendencialmente uniforme.
Em suma, e como
afirma ANDRÉ PAIS PROENÇA “trata-se, aqui de uma manifestação do dever de o
juiz, no âmbito de uma acção destinada a assegurar a realização do direito do
particular à prática de um acto que lhe é legalmente devido, conhecer do fundo
da causa e pronunciar-se sobre o direito alegado, obrigando a Administração a
praticar o acto requerido se aquele direito efectivamente exigir”[16].
Mas este poder/ dever tem de ser
aplicado de modo a conseguir uma imprescindível coerência entre a medida
substitutiva e a sentença executória. Trata-se, afinal, e como o afirma RITA
CALÇADA PIRES, “de aplicar o princípio da legalidade ao juiz, exigindo que, no
uso do poder de substituição, deverá atender à necessidade da medida, à sua
razoabilidade e à proporcionalidade, surgindo estas exigências como limite
funcional ao poder de substituição”[17].
2) Há aqui que contar, desde logo, com os limites estabelecidos no
artigo 3.º do CPTA, pois o princípio da separação de poderes exige um espaço de
intervenção menor do juiz, em relação ao que é conferido à Administração, neste
âmbito, o que não poderá ser entendido em termos absolutos, pois terá de se
garantir o controlo judicial necessário – o que reveste uma elevada importância
quando estivermos perante a emissão de um acto administrativo favorável. Com
efeito, há que considerar que “discricionariedade e controlo judicial não são
realidades opostas. O controlo judicial não se opõe ao reconhecimento ou ao
exercício de faculdades discricionárias pela Administração; unicamente garante
o seu exercício dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico”[18].
Com efeito, e ao contrário do
que se referiu no ponto 1), quando estiver em causa o exercício de um poder
discricionário por parte da Administração, é manifestamente evidente que o
Tribunal não poderá exercer livremente os seus poderes instrutórios, dada a
necessidade de considerar e respeitar os elementos que hajam contribuído para a
formação da vontade administrativa. Por outro lado, mais do que a extensão dos
poderes instrutórios do juiz, o que agora terá de se considerar é o âmbito dos
poderes de pronúncia do juiz administrativo, ou seja, os casos em que há a
condenação da Administração à prática de um acto devido, apesar de existir, em
abstracto, um poder discricionário, sem se desconsiderar os limites que o
tribunal terá de respeitar quando se pronunciar sobre a pretensão material do
requerente.
Assim sendo, cabe agora atender
ao disposto no artigo 71.º/2 do CPTA, segundo 2 planos de análise, a saber:
1.º o da interpretação do que sejam “valorações próprias do
exercício da actividade administrativa”, que levará o tribunal a “explicitar as
vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido”;
2.º o da constatação de que “a apreciação do caso concreto não permita
identificar apenas uma solução como legalmente possível”, conduzindo o tribunal
a “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto
devido”;
Quanto ao 1.º plano, há que referir que “tal conceito [indeterminado] é
reconduzível a um espaço de livre criação
de efeitos jurídicos”[19],
o que significa a sua recondução à figura da margem de livre decisão
administrativa – que integra a discricionariedade e o preenchimento valorativo
de conceitos indeterminados que enunciem, normativamente, pressupostos do acto
administrativo.
Com efeito, a subsunção de
factos em conceitos jurídicos indeterminados nem sempre constitui um acto de
conhecimento da realidade, pelo que pode ser necessário fazer um juízo
valorativo, de prognose e segundo parâmetros extra-jurídicos. “Sempre que tal
suceder, estamos perante um conceito indeterminado que implica a formulação de valorações próprias da função
administrativa e que, portanto, integra a reserva da Administração”[20].
Assim, há que considerar, como o
fazem ANTÓNIO CADILHA[21]
e COLAÇO ANTUNES[22], que
está aqui em causa é a fixação de um critério vinculativo geral relativamente
aos tribunais, no que respeita à definição dos limites funcionais da jurisdição
administrativa, como resultado de uma reserva parcial da Administração em face
do poder judicial – daí também o reforço desta ideia nos artigos 95.º/3,
168.º/2 e 179.º/1 do CPTA.
Em suma: a consideração do
critério que nos é dado pela expressão “formulação de valorações próprias da
actividade administrativa” – o de saber se o preenchimento do conceito
indeterminado pressupõe um juízo valorativo de prognose e extra-jurídico –,
para saber quais as situações em que a indeterminação conceptual exige o
reconhecimento de uma margem de livre decisão por parte da Administração
justifica que o Tribunal defina os limites funcionais da sua esfera de
intervenção, com base na aplicação deste critério. Mais se refere que o
preenchimento de tal critério legal exige, por parte do Tribunal, a
interpretação da norma resultante do poder administrativo, bem como a
consideração de todos os factores normativos em que esta se integra – como os
factos nacionais que a inspiram, a origem histórica e relação com leis
anteriores e com todo o sistema – de modo a conseguir perceber se a opção
legislativa foi no sentido de atribuir poder de decisão ao nível da execução
administrativa da lei.
Quanto ao 2.º plano, há que considerar que, quando estiver em causa o
exercício de poderes discricionários, o conteúdo da sentença que condene a
Administração à prática do acto devido, terá de ser concretizado através da
identificação das ilegalidades em que incorreu o acto de conteúdo negativo[23].
Assim, o Tribunal apenas poderá
estabelecer as modalidades de actuação que a Administração não deverá praticar
– o que exige um cuidado redobrado, pois se tal poder do juiz for mal
utilizado, a reserva parcial administrativa poderá ser posta em causa.
Desta
forma, e depois de se concluir pela existência de margem de livre decisão, os
poderes judiciais de condenação à prática do acto devido deverão ter em conta
uma importante distinção[24]
entre:
ü a zona de juridicidade dessa margem, que
corresponde a todos os imperativos decorrentes da norma de competência, dos
princípios gerais, dos direitos fundamentais e de outras normas que sejam
aplicáveis no caso concreto;
ü e a área respeitante à escolha administrativa
auto-determinada segundo critérios de valoração e de decisão meta-jurídica, que
é uma função da Administração no âmbito da prossecução do interesse público.
Assim,
é importante notar que o juiz administrativo nunca se poderá esquecer de
considerar e aplicar os testes aferidores da juridicidade previstos no artigo
266.º/2 da Constituição da República Portuguesa, que excluem os resultados que
contrariem os valores jurídicos aí consagrados, ao impedir uma intromissão
administrativa desigualitária, desproporcional e injusta. São, no fundo,
limites negativos de correcção jurídica na valoração e correcção, dos quais
decorre um efeito preclusivo sobre o exercício posterior do poder da
Administração, de modo a que esta não volte a cometer os mesmos erros.
Para
compreender a forma como os tribunais devem actuar na verificação do exercício
da margem de livre decisão através da definição de tais limites é preciso
atender ao princípio da proporcionalidade, considerando, nomeadamente, a
necessidade de separar os elementos jurídicos das valorações extra-jurídicas
aquando da fixação do conteúdo da decisão; além de ser adequado fazer um
controlo circunscrito à verificação negativa de modo a concluir que esta é,
pelo menos, parcialmente desproporcional, devendo, portanto, ser repetida, quando
tal défice for manifesto, deixando em aberto o modo de preenchimento dos
espaços de livre valoração da norma.
Desta
forma se garantirá o respeito do juiz administrativo pelas competências da
Administração “evitando que na conformação da esfera jurídica dos particulares
este assuma uma responsabilidade que cabe, em última instância, à
Administração, de proceder a juízos valorativos à luz de parâmetros escolhidos
em áreas de configuração meta-jurídica de tarefas públicas”[25].
Resta, enfim,
perguntar se o poder judicial de condenação à prática de acto devido tem já a
força necessária para lhe conferir o estatuto de instrumento autónomo de
protecção efectiva dos particulares.
As
alterações operadas no âmbito dos poderes do juiz administrativo foram determinantes
na afirmação de um novo paradigma de Contencioso Administrativo – visto já não
só como de mera legalidade, mas também como uma realidade respeitadora da inevitável
e necessária divisão entre a função administrativa e judicial – sendo isto
tanto mais importante se considerarmos o facto de que julgar a Administração
não pode ser ainda administrar, mas sim, e apenas, julgar e condenar.
Assim,
e depois de analisado o artigo 71.º/1 do CPTA há que concluir pela sua
aplicação quando
estivermos perante o incumprimento do exercício de poderes vinculados da
Administração, sendo de destacar que as sentenças substitutivas de actos
administrativos – artigos 3.º/3 e 167.º/6 do CPTA – não poderão ser aceites sem
mais, dada a possibilidade de existirem situações em que terá de se admitir a
devolução do assunto à Administração, para que esta possa desenvolver o
procedimento devido, proferindo o acto legalmente devido. Assim, os dois
referidos preceitos não poderão corresponder a uma habilitação geral, absoluta
ou ilimitada para a emissão judicial de sentenças substitutivas de actos
administrativos, sob pena de intromissão arbitrária do poder judicial no
exercício de actividades reservadas ao poder administrativo – tudo isto se
devendo articular com um desejado reequilíbrio destes dois poderes, pois ao
substituir a Administração na reposição da legalidade, o Tribunal não retirará
a legitimidade constitucional que é atribuída àquela, apenas permitindo
concluir pela inexistência de uma actividade administrativa, considerada
tradicionalmente como infungível.
Mais se acrescenta que a
possibilidade de permitir que a Administração volte a tratar do procedimento em
relação ao qual haja sido feito ao Tribunal um pedido de condenação à prática
do acto devido, não corresponde a qualquer subalternização do princípio da
tutela jurisdicional efectiva que assiste aos particulares, pois tal solução
pode, em virtude das circunstâncias do caso concreto, ser, até, a mais adequada
para tutelar os direitos destes.[26]
Quanto ao artigo 71.º/2 do CPTA,
vale a pena referir que “a regra é, pois, a de que, na tarefa de explicitação das vinculações a observar
(artigo 71.º/2 do CPTA), os tribunais não podem deduzir destes princípios [os
do artigo 266.º/2 da Constituição] uma injunção quanto ao sentido alternativo
da decisão ou valoração, mas apenas condenar a Administração a repetir o acto
administrativo e a reproduzir o iter cognoscitivo
e valorativo de formação, identificando os limites inultrapassáveis que
decorrem de tais parâmetros de sindicabilidade”[27].
Desta forma, e
porque se trata, afinal, de duas faces da mesma realidade, há que constatar
que, quer os actos resultantes de uma actividade vinculada, quer os que
decorrem de uma discricionariedade de escolha apresentam aspectos comum entre
si. Entre tais aspectos há que referir a censura que é feita à Administração –
através da respectiva condenação à prática do acto devido – e, também, o facto
de o juiz administrativo ter de apreciar o caso, materialmente.
Ora, este poder
que é conferido ao Tribunal Administrativo de apreciar toda a relação
jurídico-administrativa, considerando aquelas duas faces – a da vinculação
e respectiva determinação do acto devido, e a da discricionariedade, e
respectiva orientação quanto às vinculações a serem observadas pela
Administração –, sem se substituir às escolhas que apenas poderão ser tomadas
no seio da função administrativa, está hoje consolidado no nosso Estado de
Direito Democrático, como um poder necessário para assegurar a tutela dos
direitos dos particulares, consolidado que está (e deve estar!) o Princípio da
Separação de Poderes.
Com efeito, os tribunais
administrativos, como órgãos jurisdicionais que são, têm como imperiosa missão
constitucional a defesa da legalidade e do interesse de todos e de cada um –
segundo o artigo 202.º da Constituição – sendo também independentes – atendendo
ao artigo 203.º da Lei Fundamental – pelo que dispõem de todos os instrumentos
para proferir sentenças capazes de assegurar a referida missão – e que
constitui, de resto, a forma de provar o alcance da reforma do Contencioso
Administrativo.
Assim, e quanto a saber se o
poder judicial de condenação à prática de acto devido tem já a força necessária
para lhe conferir o estatuto de instrumento capaz de garantir uma protecção
efectiva dos particulares, há que dizer que tal circunstância dependerá sempre
do bom senso e da prudência jurídica com que a jurisprudência encare cada novo
caso trazido a juízo, o que implicará que o juiz, para além de condenar a
Administração à prática do acto legalmente devido, deverá conformar o
comportamento administrativo devido numa das situações do artigo 71.º do CPTA –
cujo alcance psicanalítico terá de ir mais além do que a simples devolução do
assunto à Administração, mas sem que tal signifique a desconsideração do seu
campo de intervenção, também ele localizado na área protegida dos direitos e interesses
dos particulares.
Bibliografia consultada:
ALMEIDA,
Mário Aroso de, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», 3.ª edição,
Almedina, Coimbra, 2004; «Manual de Processo Administrativo», reimpressão, Almedina,
Coimbra, 2010
ALMEIDA,
Mário Aroso de/ CADILHA, Carlos, «Comentário ao Código de Processo nos
Tribunais Administrativos», 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2010
AMORIM,
João Pacheco de, “O debate universitário:
trabalhos preparatórios”, in «Reforma do Contencioso Administrativo», vol. I,
Coimbra Editora, Coimbra, 2003
ANDRADE,
Vieira de, «A Justiça Administrativa (Lições)», 12.ª edição, Almedina, Coimbra,
2012
CADILHA,
António, “Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à
prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”, in
«Estudos em homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia», Coimbra, 2010, vol.
II, pp. 161-224
CADILHA,
Carlos, «Dicionário de Contencioso Administrativo», Almedina, 2006
COLAÇO,
Luís Antunes, “A Acção de Condenação e o Direito ao Acto”, in Colóquio
Luso-Espanhol «O Acto Administrativo – Tradição e Reforma», Almedina, Coimbra,
2005
CORREIA,
Sérvulo, “O incumprimento do dever de decidir” in «Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao
Professor Doutor António de Sousa Franco» - Lisboa, 2006, pp. 217-254. - Vol. 2
LORA, Alejandro Huergo, «Las pretensiones de
condenea en el Contencioso Administrativo», Aranzadi, Navarra, 2000
MEALHA,
Esperança, “A condenação à prática de acto devido na jurisprudência”, in
«Revista do Ministério Público, n.º 117 (2009)
PIRES,
Rita Calçada, «O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo
Legalmente Devido – desafiar a modernização administrativa?, Coimbra, Almedina,
2004
Portocarrero,
Maria Francisca, “Reflexões sobre os poderes da pronúncia do tribunal num novo
meio contencioso - a acção para a determinação da prática de acto
administrativo legalmente devido – na sua configuração no art. 71º do CPTA”, in
Separata de ARS IVDICANDI – estudos em homenagem ao Prof. Dr. António
Castanheira Neves, volume III, 2008.
PUENTE, Marcos Gómez, «La inactividad de la administración», 2.ª
edição, Aranzadi, Navarra, 2000
PROENÇA, André
Rosa Lã País – «As duas faces da condenação à prática do acto devido». Lisboa,
2005. Tese apresentada à Faculdade de Direito de Lisboa. Págs. 68 a 97
SILVA,
Vasco Pereira da, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio
sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2.ª edição, Almedina,
Coimbra, 2009
Mara Afonso, n.º 20684, subturma 1
[1] VASCO
PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», p. 241
[2] Neste sentido MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e
CARLOS CADILHA, em anotação ao artigo 3.º do CPTA, «Comentário ao Código de
Processo dos Tribunais Administrativos», p. 35
[3] VASCO
PEREIRA DA SILVA, Idem, p. 242
[4] Neste preceito é feita uma enumeração
meramente exemplificativa dos poderes de pronúncia do juiz, integrando as
sentenças de simples apreciação, as constitutivas e as condenatórias.
[5] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, «Manual de Processo Administrativo», p. 95
[6] VASCO
PEREIRA DA SILVA, idem, p. 381
[7] Para um aprofundamento do conteúdo do
incumprimento do dever de decidir e sua relação com o procedimento
administrativo ver SÉRVULO CORREIA, “O incumprimento do dever de decidir” in «Estudos jurídicos
e económicos em homenagem ao Professor Doutor António de Sousa Franco», devendo
considerar-se o papel do procedimento administrativo, como algo realmente
essencial no que respeita à acção de condenação da prática de acto devido, por
nele constarem todos os factos juridicamente relevantes para a decisão da
causa, deixando às partes o papel de, em juízo, os enquadrarem, sem necessidade
de juntar elementos fácticos novos.
[8] RITA CALÇADA PIRES, “O Pedido de Condenação
à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido”, p. 94
[9] Este tipo de situação surge no Acórdão do
Tribunal Central Administrativo Sul de 17/01/2008, Proc. N.º 1376/06, referido
por ESPERANÇA MEALHA, em “A condenação à prática de acto devido na
jurisprudência”, in «Revista do Ministério Público n.º 117, pp. 191-192
[10] Esta
situação surge no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3/11/2005,
Proc. N.º 239/05, e no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de
26/10/2006, Proc. N.º 1844/06 referidos por ESPERANÇA MEALHA, idem, pp. 187-190
[11] PACHECO DE AMORIM, em “O debate
universitário”, p. 382, refere como exemplos de actos de conteúdo vinculado,
“os de verificação necessária, como as autorizações recognitivas ou
declarativas, como é o caso da maioria dos licenciamentos industriais e comerciais,
e de uma boa parte dos licenciamentos urbanísticos, e ainda os actos ditos de
verificação constitutiva, tais como as inscrições em ordens profissionais e em
escolas públicas, as inscrições em listas eleitorais […], as subvenções, em
matéria de segurança social”.
[12] Tal circunstância decorrerá do facto de, e
em face de um caso concreto, se concluir pela existência de apenas uma opção a
tomar pela Administração, não obstante a lei lhe ter conferido, ab initio, poderes discricionários
relativamente ao conteúdo favorável do acto devido, e se a escolha já tiver
sido realizada.
[13] Esta
situação surge no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 29/11/2007,
Proc. N.º 2977/07, referido por ESPERANÇA MEALHA, idem, pp. 190-191
[14] A sentença do Tribunal Administrativo
Federal Alemão de 13 de Abril de 1961 vem demonstrar o elevado nível de
exigência da jurisprudência alemã quanto a este dever do tribunal, afirmando-se
que, “condenar a Administração a que resolva sobre o requerimento de um
particular é apenas um imperfeito sucedâneo de uma decisão sobre o fundo e, de
acordo com os princípios do Estado de Direito, só é aceitável quando não se
dêem as condições para esta última: quando o assunto não reúna as condições
necessárias para que se dite uma sentença ou não se possa levar a essa
situação”, in HUERGO LORA, «Las pretensiones de condenea en el Contencioso
Administrativo», p. 291, onde também se refere a possibilidade de anulação de
decisões de tribunais de primeira instância que não tenham procedido à apreciação
do fundo da causa, antes se limitando a devolver o assunto à Administração,
para que esta realizasse as diligências de prova requeridas para o proferimento
de uma decisão sobre o fundo da causa.
[15] E é neste sentido que se pronuncia COLAÇO
ANTUNES, em “A Acção de Condenação e o Direito ao Acto”, p. 220, referindo que
“em presença de actos vinculados, sempre que se preveja a obrigatoriedade de um
procedimento administrativo como pressuposto de legitimidade do acto, o
processo e o seu juiz não poderão substituir o procedimento administrativo e,
consequentemente, não poderá ser pronunciado um Vornahmeurteil”.
[16] ANDRÉ PAIS PROENÇA, “As duas faces da
condenação à prática de acto devido”, p. 75
[17] RITA CALÇADA PIRES, idem, p. 108
[18] MARCOS GÓMEZ PUENTE, « La inactividad de la administración», p. 149
[19] ANTÓNIO
CADILHA, “Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à
prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”, p.
186
[20]
ANTÓNIO CADILHA, idem, p. 188
[21] Ibidem
[22] COLAÇO ANTUNES, idem, p. 228
[23] MÁRIO AROSO
DE ALMEIDA, em ”Manual de Processo Administrativo”, p.
101, sintetiza esta mesma ideia, referindo que “se trata de traduzir para
positivo as vinculações que, pela negativa, eram deduzidas das tradicionais
sentenças de anulação de actos negativos”.
[24] Esta distinção entre zona sindicável e não
sindicável deve ser sempre considerada aquando da explicitação das vinculações
que a Administração deverá respeitar na emissão do acto devido.
[25] ANTÓNIO CADILHA, idem, p. 222
[26] O que,
obviamente, não impede o tribunal de impor, de forma mais intensa, a devida
execução pela Administração de uma sentença meramente indicativa, atendendo aos
artigos 44.º, 49.º e 169.º do CPTA, ou que, a decisão que venha a ser proferida
pela Administração volte a ser novamente contestada judicialmente – tudo isto
tendo subjacente a inevitável ponderação que o juiz administrativo terá de
fazer entre os interesses envolvidos de modo a concluir pela maior adequação da
emissão de uma sentença meramente indicativa, de tal modo que seja impossível
ou, pelo menos, de grande inconveniência, uma pronúncia condenatória nos termos
dos artigos 66.º e 77.º/1 do CPTA.
[27] ANTÓNIO CADILHA, idem, p. 221
Sem comentários:
Enviar um comentário