domingo, 20 de outubro de 2013


O Princípio da Discricionariedade na Administração Pública
 

Não obstante a Administração Pública (doravante AP) se encontrar subordinada à lei (princípio da legalidade), raros são os casos em que esta lhe confere um quadro exaustivo de regulação da sua actuação (poderes vinculados). Nos casos muito frequentes em que a lei lhe confere alguma margem de liberdade de decisão, diz-se que é conferida à AP uma discricionariedade para actuar, ou um poder discricionário de actuar.  

Este conceito pode ser encarado sob duas perspectivas diferentes: a primeira coloca o acento tónico nos actos da administração (teoria da actividade), ao passo que a segunda realça a perspectiva dos poderes da administração (teoria da organização). Deste modo, tem-se que, para a primeira os actos da AP serão vinculados quando “praticados no exercício de poderes vinculados” sendo discricionários quando “praticados no exercício de poderes discricionários”. Na segunda perspectiva, o poder é vinculado “quando a lei não remete para o critério do respectivo titular a escolha da solução concreta mais adequada” e será discricionário “quando o seu exercício ficar entregue ao critério do respectivo titular, que pode e deve escolher a solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere”. (Amaral, Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2011, p. 86).

 A discricionariedade encontra o seu principal fundamento na circunstância de, por um lado, ser manifestamente impossível à lei, quer regular todo e qualquer aspecto das diversas situações em que a Administração é chamada a actuar, quer antever a respectiva conformação em face do seu constante desenvolvimento (Amaral, Freitas, Direito Administrativo, volume II, Lisboa, 1984, p. 269). Não obstante, outros fundamentos parecem poder encontrar-se no princípio da separação de poderes e no Estado Social de Direito, enquanto prestador e constitutivo de deveres positivos para administração, assim como os direitos ou interesses legítimos para os particulares (Amaral, Freitas, ob. cit., 2011, p. 97).

Mas, sem embargo de na discricionariedade se estar perante um espaço de livre apreciação por parte da AP, nem todos os aspectos relativos ao exercício dos denominados poderes discricionários são totalmente discricionários já que, de contrário, se estaria perante a concessão de um verdadeiro poder arbitrário.

A doutrina sustenta assim a existência de uma parcial vinculação à lei aquando da prática de actos administrativos que envolvam o exercício destes poderes. Por exemplo, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (Lições de Direito Administrativo, Lisboa, 1994/1995, p. 127 e 128) invoca a existência de uma vinculação estrita quanto aos respectivos pressupostos – órgão, titular devidamente investido, competência do órgão, eventuais pressupostos objectivos do acto – bem como quanto aos elementos vontade e fim, acrescentando ainda existir uma parcial vinculação quanto aos restantes elementos (conteúdo, objecto, formalidades e forma). O Prof. Freitas do Amaral, acrescenta ainda que os aspectos discricionários do poder de actuar se limitam ao momento da prática do acto, à decisão de praticar ou não um certo acto, à determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão e a faculdade de apor, ou não, no acto administrativo a condições, termos, modos, ou outras cláusulas acessórias (cfr. art. 121.º CPA).

Nestes termos, a discricionariedade prende-se, quando e conforme a lei assim o determinar, com a parte do conteúdo, a parte do objecto, a parte das formalidades e a parte da forma dos actos de gestão pública unilaterais da Administração deixados ao critério desta.

 Com tais fundamentos, eram formuladas severas críticas, ainda na vigência da antiga Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo, ao teor do seu artigo 19.º que afirmava que o acto praticado ao abrigo de um poder discricionário só poderia ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder (uso indevido que a autoridade administrativa faz da faculdade discricionária que a lei lhe atribui para concretizar uma dada finalidade e que se exprime no facto de o acto praticado ou demonstrar uma discrepância entre o fim efectivamente seguido pela administração e o fim legal, ou uma divergência entre o fim real e o fim legal).

De acordo com a posição então expressa pelo Prof. Freitas do Amaral, a única forma ampla e eficaz de criar condições para um controlo efectivo do exercício do poder discricionário seria o de aumentar o número de vinculações legais e, por isso, o de diminuir o poder discricionário, no exercício do poder administrativo. Neste sentido, enumerava como exemplos de situações em que a administração se deveria sujeitar ao controlo jurisdicional: (i) a admissão do erro de facto como fundamento da acção de impugnação; (ii) o estabelecimento do controlo jurisdicional sobre a existência ou inexistência de pressupostos de facto de competência; (iii) a imposição legal da obrigação de fundamentar os actos administrativos; (iv) a sujeição a certos princípios gerais de direito, formais e materiais, tudo com vista a aumentar progressivamente o controlo por parte dos tribunais, através do acatamento de princípios e critérios jurídicos que vinculem a administração mas tendo em atenção os princípios da separação de poderes e da legalidade. (Amaral, Freitas, ob.cit., 2011, p. 115-116)

Parece ser hoje pacífico que, na medida em que os actos que envolvem o exercício de um poder discricionário são sempre também em certa medida praticados no uso de poderes vinculados, estes podem ser impugnados  contenciosamente com fundamento (artigo 78.º /1, al. g)) em qualquer dos vícios do acto administrativo (arts. 50.º/1 e 95.º/2 CPTA). Assim pode ser alegada, conforme os casos, (i) a incompetência; (ii) o vício de forma; (iii) a violação de lei (ofensa a quaisquer limites impostos ao poder discricionário, por lei ou por auto-vinculação e até de princípios constitucionais); (iv) ou qualquer fundamento relacionado com uma vontade defeituosa (designadamente, o erro de facto).

            Reconhecida judicialmente a invalidade do acto administrativo que envolve o exercício do poder discricionário importa saber qual o sentido da decisão do Tribunal no que concerne à reposição da legalidade (arts. 66.º e seguintes do CPTA).

A este propósito, o artigo 3.º/ 3 do CPTA distingue claramente duas vias, conforme a prática e o conteúdo do acto sejam estritamente vinculados à lei ou envolvam alguma margem de discricionariedade: no primeiro caso, a própria sentença do órgão jurisdicional impõe a prática do acto devido (e.g. artigo 71.º/1), podendo até mesmo, nalguns casos produzir os seus efeitos (164.º/4, al. c) e 167.º/6 do CPTA), ao passo que, no segundo, se limita a providenciar pela concretização material do que se determina na sua decisão.

            Esta diferente solução justifica-se pelo facto de o Tribunal se não poder substituir à AP na prática de acto administrativo quando este envolva um poder discricionário que só a esta última incumbe exercer. De contrário, colocar-se-ia em crise o princípio da separação e interdependência de poderes reafirmado pelo n.º 1 do mesmo artigo 3.º que veda aos Tribunais apreciar da conveniência ou oportunidade da actuação da AP, ou seja, confundir-se-ia o dever de administrar (pela administração) com o dever de julgar (pelos tribunais).

            Mas em que se consubstancia então a expressão “providenciar pela concretização material do que foi determinado na sentença” constante do artigo 3.º n.º 3?

Embora o tribunal esteja impedido de proferir uma sentença que envolva a obrigação da emissão de um acto que incida sobre matéria que recaia no campo dos poderes discricionários da Administração, incumbe-lhe verificar da conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e princípios de Direito a que esta está obrigada.

A solução encontrada e plasmada no art. 71.º permite assim prever as situações em que  (i) a prática do acto devido corresponde a um acto ilegalmente recusado ou omitido – termos em que a condenação será feita apenas se a lei for clara quanto ao sentido de impor uma actuação, ou quando o tribunal considere que a administração deverá, atendendo às circunstâncias do caso, agir num único e determinado sentido (redução da discricionariedade quanto à oportunidade de actuação), ou em que (ii) a prática do acto devido corresponde à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário, sendo que a sua emissão é exigida (o que quer dizer que nem sempre o conteúdo está legalmente pré-determinado ou vinculado) – aqui o tribunal poderá condenar a AP à prática do acto, delineando o quadro de facto e de direito em que esses poderes deverão ser exercidos (Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo administrativo, Almedina, 2013, p. 94).

O n.º 2 desta norma estatui que, quando se esteja perante a emissão de um acto de conteúdo discricionário, o tribunal deve determinar o conteúdo do acto a praticar sempre que a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível (redução da discricionariedade a zero). Nos restantes casos, deverá apenas explicitar as vinculações a observar pela administração na emissão do acto devido, sem precisar o sentido da decisão (o que não impede que a sentença se refira as ilegalidades em que incorreu o acto, exigindo à administração que actue de novo, evitando a mesma ilegalidade, ao especificar os aspectos vinculados a observar).

Pelo exposto, verifica-se que a condenação à prática do acto administrativo nem sempre terá o mesmo sentido: poderá versar sobre as especificações a ter em conta quanto ao conteúdo do acto a praticar mas poderá também, em casos excepcionais, versar sobre o acto a praticar quando exista para o caso apenas uma única solução legalmente admissível.

Poderá ainda a sentença incidir apenas sobre a própria condenação, sem qualquer especificação quanto ao conteúdo do acto (casos de inércia ou omissão por parte da AP ou em que esta invocou infundadamente a existência de questões prévias para se recusar a apreciar a pretensão). Aqui o tribunal exige apenas que o acto seja reapreciado, podendo, eventualmente, explicitar algumas vinculações a observar.

Em resumo, para os casos em que o acto administrativo envolva o exercício de poderes discricionários, e com vista a salvaguardar o aludido princípio da separação de poderes, a doutrina subjacente à solução encontrada pelo CPTA é a de que um interessado que vê o seu direito frustrado pelo indevido exercício ou não exercício de um poder discricionário por parte da AP, não poderá sem mais recorrer de imediato ao tribunal, para que este se substitua à administração, praticando o acto devido. Considera-se suficiente e adequado que requeira ao tribunal que condene a AP à respectiva prática.

Tal solução parece proporcionar ao interessado a adequada tutela judicial no plano declarativo já que, neste particular, objectivo do controlo jurisdicional não será tanto o de eliminar os espaços de decisão da AP, mas sim o de salvaguardar o dever de cumprir a Lei e o Direito em toda a extensão em que a conduta da AP se deva reger por regras e princípios jurídicos.
 
Por Diana Silva Pereira, n.º 21513

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