O Princípio da Discricionariedade na Administração Pública
Não obstante a Administração Pública (doravante AP) se
encontrar subordinada à lei (princípio da legalidade), raros são os casos em
que esta lhe confere um quadro exaustivo de regulação da sua actuação (poderes
vinculados). Nos casos muito frequentes em que a lei lhe confere alguma margem
de liberdade de decisão, diz-se que é conferida à AP uma discricionariedade para actuar, ou um poder discricionário de actuar.
Este conceito pode ser encarado sob duas perspectivas
diferentes: a primeira coloca o acento tónico nos actos da administração (teoria da actividade), ao passo que a
segunda realça a perspectiva dos poderes
da administração (teoria da organização). Deste modo, tem-se que, para a primeira
os actos da AP serão vinculados quando
“praticados no exercício de poderes vinculados” sendo discricionários quando “praticados no exercício de poderes
discricionários”. Na segunda perspectiva, o
poder é vinculado “quando a lei não remete para o critério do respectivo
titular a escolha da solução concreta mais adequada” e será discricionário “quando o seu exercício
ficar entregue ao critério do respectivo titular, que pode e deve escolher a
solução a adoptar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse
público protegido pela norma que o confere”. (Amaral, Freitas, Curso de Direito
Administrativo, vol. II, Almedina, 2011, p. 86).
A discricionariedade encontra o seu
principal fundamento na circunstância de, por um lado, ser manifestamente
impossível à lei, quer regular todo e qualquer aspecto das diversas situações
em que a Administração é chamada a actuar, quer antever a respectiva conformação
em face do seu constante desenvolvimento (Amaral, Freitas, Direito
Administrativo, volume II, Lisboa, 1984, p. 269). Não obstante, outros
fundamentos parecem poder encontrar-se no princípio da separação de poderes e no
Estado Social de Direito, enquanto prestador e constitutivo de deveres
positivos para administração, assim como os direitos ou interesses legítimos
para os particulares (Amaral, Freitas, ob. cit., 2011, p. 97).
Mas, sem embargo de na discricionariedade se estar perante um espaço de livre apreciação
por parte da AP, nem todos os aspectos relativos ao exercício dos denominados poderes discricionários são totalmente discricionários já que, de contrário,
se estaria perante a concessão de um verdadeiro poder arbitrário.
A doutrina sustenta assim a existência de uma parcial
vinculação à lei aquando da prática de actos administrativos que envolvam o exercício
destes poderes. Por exemplo, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (Lições de Direito
Administrativo, Lisboa, 1994/1995, p. 127 e 128) invoca a existência de uma vinculação
estrita quanto aos respectivos pressupostos – órgão, titular devidamente
investido, competência do órgão, eventuais pressupostos objectivos do acto –
bem como quanto aos elementos vontade e fim, acrescentando ainda existir uma
parcial vinculação quanto aos restantes elementos (conteúdo, objecto,
formalidades e forma). O Prof.
Freitas do Amaral, acrescenta ainda que os aspectos discricionários do poder de
actuar se limitam ao momento da prática do acto, à decisão de praticar ou não
um certo acto, à determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão
e a faculdade de apor, ou não, no acto administrativo a condições, termos,
modos, ou outras cláusulas acessórias (cfr. art. 121.º CPA).
Nestes termos, a discricionariedade prende-se, quando e
conforme a lei assim o determinar, com a parte do conteúdo, a parte do objecto,
a parte das formalidades e a parte da forma dos actos de gestão pública unilaterais da Administração deixados ao critério
desta.
De acordo com a posição então expressa pelo Prof.
Freitas do Amaral, a única forma ampla e eficaz de criar condições para um
controlo efectivo do exercício do poder discricionário seria o de aumentar o
número de vinculações legais e, por isso, o de diminuir o poder discricionário,
no exercício do poder administrativo. Neste sentido, enumerava como exemplos de
situações em que a administração se deveria sujeitar ao controlo jurisdicional:
(i) a admissão do erro de facto como
fundamento da acção de impugnação; (ii)
o estabelecimento do controlo jurisdicional sobre a existência ou inexistência
de pressupostos de facto de competência; (iii)
a imposição legal da obrigação de fundamentar os actos administrativos; (iv) a sujeição a certos princípios
gerais de direito, formais e materiais, tudo com vista a aumentar
progressivamente o controlo por parte dos tribunais, através do acatamento de
princípios e critérios jurídicos que vinculem a administração mas tendo em
atenção os princípios da separação de poderes e da legalidade. (Amaral,
Freitas, ob.cit., 2011, p. 115-116)
Parece ser hoje pacífico que, na medida em que os
actos que envolvem o exercício de um poder discricionário são sempre também em
certa medida praticados no uso de poderes vinculados, estes podem ser
impugnados contenciosamente com
fundamento (artigo 78.º /1, al. g)) em qualquer dos vícios do acto
administrativo (arts. 50.º/1 e 95.º/2 CPTA). Assim pode ser alegada, conforme
os casos, (i) a incompetência; (ii) o vício de forma; (iii) a violação de lei (ofensa a
quaisquer limites impostos ao poder discricionário, por lei ou por
auto-vinculação e até de princípios constitucionais); (iv) ou qualquer fundamento relacionado com uma vontade defeituosa
(designadamente, o erro de facto).
Reconhecida judicialmente a
invalidade do acto administrativo que envolve o exercício do poder discricionário
importa saber qual o sentido da decisão do Tribunal no que concerne à reposição
da legalidade (arts. 66.º e seguintes do CPTA).
A este propósito, o artigo 3.º/ 3 do CPTA distingue
claramente duas vias, conforme a prática e o conteúdo do acto sejam
estritamente vinculados à lei ou envolvam alguma margem de discricionariedade:
no primeiro caso, a própria sentença do órgão jurisdicional impõe a prática do
acto devido (e.g. artigo 71.º/1), podendo até mesmo, nalguns casos produzir os
seus efeitos (164.º/4, al. c) e 167.º/6 do CPTA), ao passo que, no segundo, se
limita a providenciar pela concretização material do que se determina na sua
decisão.
Esta diferente solução justifica-se
pelo facto de o Tribunal se não poder substituir à AP na prática de acto
administrativo quando este envolva um poder discricionário que só a esta última
incumbe exercer. De contrário, colocar-se-ia em crise o princípio da separação e
interdependência de poderes reafirmado pelo n.º 1 do mesmo artigo 3.º que veda
aos Tribunais apreciar da conveniência ou oportunidade da actuação da AP, ou
seja, confundir-se-ia o dever de administrar
(pela administração) com o dever de julgar
(pelos tribunais).
Mas em que se consubstancia então a
expressão “providenciar pela concretização material do que foi determinado na
sentença” constante do artigo 3.º n.º 3?
Embora o tribunal esteja impedido de proferir uma
sentença que envolva a obrigação da emissão de um acto que incida sobre matéria
que recaia no campo dos poderes discricionários da Administração, incumbe-lhe
verificar da conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e
princípios de Direito a que esta está obrigada.
A solução encontrada e plasmada no art. 71.º permite
assim prever as situações em que (i) a prática do acto devido corresponde
a um acto ilegalmente recusado ou omitido – termos em que a condenação será
feita apenas se a lei for clara quanto ao sentido de impor uma actuação, ou
quando o tribunal considere que a administração deverá, atendendo às
circunstâncias do caso, agir num único e determinado sentido (redução da discricionariedade quanto à
oportunidade de actuação), ou em que (ii)
a prática do acto devido corresponde à prática de actos administrativos de
conteúdo discricionário, sendo que a sua emissão é exigida (o que quer dizer
que nem sempre o conteúdo está legalmente pré-determinado ou vinculado) – aqui
o tribunal poderá condenar a AP à prática do acto, delineando o quadro de facto
e de direito em que esses poderes deverão ser exercidos (Almeida, Mário Aroso
de, Manual de Processo administrativo, Almedina, 2013, p. 94).
O n.º 2 desta norma estatui que, quando se esteja
perante a emissão de um acto de conteúdo discricionário, o tribunal deve
determinar o conteúdo do acto a praticar sempre que a apreciação do caso
concreto permita identificar apenas uma
solução como legalmente possível (redução
da discricionariedade a zero). Nos restantes casos, deverá apenas explicitar as vinculações a observar pela
administração na emissão do acto devido, sem precisar o sentido da decisão
(o que não impede que a sentença se refira as ilegalidades em que incorreu o
acto, exigindo à administração que actue de novo, evitando a mesma ilegalidade,
ao especificar os aspectos vinculados a observar).
Pelo exposto, verifica-se que a condenação à prática
do acto administrativo nem sempre terá o mesmo sentido: poderá versar sobre as
especificações a ter em conta quanto ao conteúdo do acto a praticar mas poderá
também, em casos excepcionais, versar sobre o acto a praticar quando exista
para o caso apenas uma única solução legalmente admissível.
Poderá ainda a sentença incidir apenas sobre a própria condenação, sem qualquer especificação
quanto ao conteúdo do acto (casos de inércia ou omissão por parte da AP ou em
que esta invocou infundadamente a existência de questões prévias para se
recusar a apreciar a pretensão). Aqui o tribunal exige apenas que o acto seja
reapreciado, podendo, eventualmente, explicitar algumas vinculações a observar.
Em resumo, para os casos em que o acto administrativo
envolva o exercício de poderes discricionários, e com vista a salvaguardar o
aludido princípio da separação de poderes, a doutrina subjacente à solução
encontrada pelo CPTA é a de que um interessado que vê o seu direito frustrado
pelo indevido exercício ou não exercício de um poder discricionário por parte
da AP, não poderá sem mais recorrer de imediato ao tribunal, para que este se
substitua à administração, praticando o acto devido. Considera-se suficiente e
adequado que requeira ao tribunal que condene a AP à respectiva prática.
Tal solução parece proporcionar ao interessado a
adequada tutela judicial no plano declarativo já que, neste particular,
objectivo do controlo jurisdicional não será tanto o de eliminar os espaços de
decisão da AP, mas sim o de salvaguardar o dever de cumprir a Lei e o Direito
em toda a extensão em que a conduta da AP se deva reger por regras e princípios
jurídicos.
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