O âmbito da
jurisdição administrativa – A competência material dos tribunais
administrativos
O conceito de “competência” é
definido pelo Prof. Marcelo Caetano como o “complexo de poderes funcionais
conferidos por lei a cada órgão ou cargo para o desempenho das atribuições da
pessoa colectiva em que esteja integrado”. A competência na área jurisdicional
pertence aos tribunais, órgãos de soberania aos quais cabe administrar a
justiça em nome do povo (art. 202º/1 CRP), sendo do nosso interesse, para este
efeito, a competência para assegurar a defesa dos interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, bem como para dirimir os conflitos de interesses
públicos e privados (202º/2 CRP). Não deve confundir-se “jurisdição” com “competência”,
conceitos conexos mas distintos, na medida em que, nas palavras do Acórdão do
Tribunal da Relação do Porto, de 09/09/2013, “jurisdição” corresponde ao “poder
de julgar genericamente atribuído, na organização do Estado, ao conjunto de
tribunais” e “competência” tem a ver com “a medida de jurisdição legalmente
atribuída a cada um deles”.
Tradicionalmente, vigora a
ideia de que a jurisdição administrativa não está a par da dos tribunais
comuns, de jurisdição especializada. O mesmo é dizer que se trata de uma
jurisdição autónoma, pautada pela existência de um órgão superior
administrativo próprio, e cujos juízos se encontram submetidos a um estatuto
próprio. Só através de revisão constitucional é que pode ser posta em causa a
dualidade de jurisdições, isto é, entre tribunais judiciais (art. 211º CRP) e
tribunais administrativos e fiscais (art. 212º CRP).
Quanto aos tribunais
administrativos e fiscais, é da sua competência julgar as acções e os recursos
contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas e fiscais (art. 212º/3 CRP). Este preceito contempla
uma reserva constitucional de jurisdição administrativa, ao regular que os
litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais devem ser
dirimidos pelos tribunais administrativos e fiscais. Várias questões têm sido
colocadas, a propósito da interpretação deste preceito constitucional. Afinal,
resulta ou não uma reserva constitucional absoluta de jurisdição dos tribunais
administrativos e fiscais? Deverá admitir-se que litígios que não envolvam
relações jurídicas administrativas e fiscais sejam apresentados perante
tribunais administrativos? O art. 212º/3 CRP confere uma margem de liberdade ao
legislador ordinário, ou este está vinculado ao critério enunciado na Lei
Fundamental?
A este respeito, a Doutrina
tem considerado que não há uma reserva absoluta de competência. Vieira de
Andrade, apontando razões históricas e de capacidade e meios dos tribunais
administrativos, admite que, pontualmente, haja litígios que envolvam relações
jurídicas administrativas e fiscais que não sejam resolvidos por tribunais
administrativos. Por sua vez, a Jurisprudência, nomeadamente o Supremo Tribunal
Administrativo e o Tribunal Constitucional, pronunciaram-se pela não inconstitucionalidade
de normas que subtraem à jurisdição administrativa litígios resultantes de relações
jurídicas administrativas e fiscais. A este propósito, vejam-se os seguintes
acórdãos: Ac TC 607/95, de 08/11; Ac TC 284/03, de 29/05; Ac STA de 14/06/2000,
Processo nº 633; Ac STA de 27/01/2004, Processo nº 1116/03. Voltaremos a este
assunto mais adiante.
Como decorre da última parte
do nº 1 do art. 211º da CRP, os tribunais judiciais “exercem jurisdição em
todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, o que significa que
estes tribunais constituem a regra dentro da organização judiciária. Por conseguinte,
os restantes tribunais, de entre os quais os tribunais administrativos, verão a
sua competência limitada às matérias que lhes são especificamente atribuídas.
A este propósito, várias
normas se pronunciam. O enunciado do art. 1/1º do ETAF, sob a epígrafe “Jurisdição
administrativa e fiscal”, constitui uma simbiose entre os art. 202º/1 e 212º/3
da CRP, ao determinar que “os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são
os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do
povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Rios de tinta têm corrido
sobre estes preceitos, levando a várias considerações doutrinárias.
Gomes Canotilho e Vital
Moreira comentam o art. 212º/3, referindo que “a competência dos tribunais
administrativos deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais
judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns. A
letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções, no
sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões, ou que
certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros
tribunais”, podendo dizer-se que “os tribunais administrativos passaram a ser
verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa”.
Noutra perspectiva, Freitas do
Amaral posiciona-se com aqueles que consideram que “a relação jurídica
administrativa é aquela que confere poderes de autoridade (“jus imperium”) ou impõe
restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que
atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a
Administração”.
Numa outra linha, Vieira de
Andrade defende que a percepção do conceito de “relação jurídica administrativa”
pretendida pelo legislador constituinte, passa obrigatoriamente “pela distinção
material entre o domínio público e o direito privado”. À luz de um critério
estatutário, compreenderá “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma
entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público,
actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Segundo um critério material, é o resultado de um “regime de administração
executiva, em que se define um domínio de actividade, a função administrativa,
e, nesse contexto, um conjunto de relações onde a Administração é, tipicamente
ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas
principais tarefas de realização do interesse público”.
Já Mário Aroso de Almeida
assenta a interpretação do art. 1º/1 ETAF na convicção de que “os traços
distintivos que permitem identificar as normas de Direito Administrativo,
constitutivas de relações jurídico-administrativas” são a “atribuição de
prerrogativas de autoridade ou (n)a imposição de deveres, sujeições ou
limitações especiais por razões de interesse público”. Assim, o Direito
Administrativo regula a actuação de todos os sujeitos jurídicos “que exerçam a função
administrativa”, ou “quando e na medida em que (a sua actuação) se interseccione
com o exercício da função administrativa”.
Como se verifica, deste modo,
o art. 1º/1 ETAF deixou de assentar na tradicional distinção entre actos de gestão
pública (regidos pelo direito público) e actos de gestão privada (regidos pelo
direito privado), passando a contemplar uma posição que implica a prossecução
do interesse público, por entidades públicas ou privadas, no âmbito do exercício
de um poder público.
Aqui chegados, cabe remissão
para o art. 4º ETAF. Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
supra-referido, este preceito “visa ampliar e reduzir o âmbito da jurisdição
(administrativa), funcionando como norma especial em relação ao art. 1º, mas também
como critério de interpretação”.
Se considerarmos que o art. 4º
é taxativo, obtemos a solução bizarra de litígios que envolvam relações
administrativas e fiscais, mas que não caibam no âmbito do preceito, serem
julgados e decididos por tribunais judiciais. Por outro lado, se entendermos
que o elenco do art. 4º não é taxativo, posição que nos parece a mais correta, designadamente
pela utilização da expressão “nomeadamente”, estaremos no âmbito de jurisdição
administrativa e fiscal. Com a reforma de 2004, procedeu-se a uma clarificação
dos critérios de delimitação do âmbito de jurisdição administrativa previstos
no preceito em análise, o que contribuiu para um melhor acesso à tutela
jurisdicional dos interessados, e ainda para se evitarem conflitos de
competência e consequente morosidade acrescida do funcionamento da Justiça.
Dada a extensão do art. 4.º e
a quantidade de pontos que podem ser trazidos à colação neste âmbito, remetemos
este aprofundamento para um post posterior.
Concluímos com a ideia, também
já sublinhada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, de que temos nas relações
jurídicas administrativas e fiscais o objecto do Contencioso Administrativo.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE,
Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2013.
AMARAL, FREITAS DO, Direito
Administrativo, vol. III.
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA
DE, A Justiça Administrativa – Lições, 12ª edição, Almedina, Coimbra, 2012.
CAETANO, MARCELO, Manual de Direito Administrativo,
vol. I, Coimbra, 1991.
CANOTILHO, GOMES, e MOREIRA,
VITAL, Constituição da República Portuguesa Anotada.
SILVA, PEDRO CRUZ E, Breve estudo
sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em
matéria de responsabilidade civil e de contratos, Verbo Jurídico, 2006.
SILVA, VASCO PEREIRA DA, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Ações no
Novo Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2009.
Referências jurisprudenciais:
Ac. Tribunal da Relação do
Porto, Processo n.º 2452/12.7TJVNF-A.P1, de 09/09/2013
Legislação nacional:
Código de Processo dos
Tribunais Administrativos
Constituição da República
Portuguesa 1976
Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais
Outros
Aula teórica de 10/10/2013,
pelo Prof. João Miranda, FDUL.
Aula teórica de 17/10/2013,
pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, FDUL.
Joana Guerreiro, n.º 19 647
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