domingo, 20 de outubro de 2013

O âmbito da jurisdição administrativa – A competência material dos tribunais administrativos



O âmbito da jurisdição administrativa – A competência material dos tribunais administrativos

O conceito de “competência” é definido pelo Prof. Marcelo Caetano como o “complexo de poderes funcionais conferidos por lei a cada órgão ou cargo para o desempenho das atribuições da pessoa colectiva em que esteja integrado”. A competência na área jurisdicional pertence aos tribunais, órgãos de soberania aos quais cabe administrar a justiça em nome do povo (art. 202º/1 CRP), sendo do nosso interesse, para este efeito, a competência para assegurar a defesa dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos, bem como para dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (202º/2 CRP). Não deve confundir-se “jurisdição” com “competência”, conceitos conexos mas distintos, na medida em que, nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09/09/2013, “jurisdição” corresponde ao “poder de julgar genericamente atribuído, na organização do Estado, ao conjunto de tribunais” e “competência” tem a ver com “a medida de jurisdição legalmente atribuída a cada um deles”.

Tradicionalmente, vigora a ideia de que a jurisdição administrativa não está a par da dos tribunais comuns, de jurisdição especializada. O mesmo é dizer que se trata de uma jurisdição autónoma, pautada pela existência de um órgão superior administrativo próprio, e cujos juízos se encontram submetidos a um estatuto próprio. Só através de revisão constitucional é que pode ser posta em causa a dualidade de jurisdições, isto é, entre tribunais judiciais (art. 211º CRP) e tribunais administrativos e fiscais (art. 212º CRP).

Quanto aos tribunais administrativos e fiscais, é da sua competência julgar as acções e os recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212º/3 CRP). Este preceito contempla uma reserva constitucional de jurisdição administrativa, ao regular que os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais devem ser dirimidos pelos tribunais administrativos e fiscais. Várias questões têm sido colocadas, a propósito da interpretação deste preceito constitucional. Afinal, resulta ou não uma reserva constitucional absoluta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais? Deverá admitir-se que litígios que não envolvam relações jurídicas administrativas e fiscais sejam apresentados perante tribunais administrativos? O art. 212º/3 CRP confere uma margem de liberdade ao legislador ordinário, ou este está vinculado ao critério enunciado na Lei Fundamental?
A este respeito, a Doutrina tem considerado que não há uma reserva absoluta de competência. Vieira de Andrade, apontando razões históricas e de capacidade e meios dos tribunais administrativos, admite que, pontualmente, haja litígios que envolvam relações jurídicas administrativas e fiscais que não sejam resolvidos por tribunais administrativos. Por sua vez, a Jurisprudência, nomeadamente o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Constitucional, pronunciaram-se pela não inconstitucionalidade de normas que subtraem à jurisdição administrativa litígios resultantes de relações jurídicas administrativas e fiscais. A este propósito, vejam-se os seguintes acórdãos: Ac TC 607/95, de 08/11; Ac TC 284/03, de 29/05; Ac STA de 14/06/2000, Processo nº 633; Ac STA de 27/01/2004, Processo nº 1116/03. Voltaremos a este assunto mais adiante.

Como decorre da última parte do nº 1 do art. 211º da CRP, os tribunais judiciais “exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, o que significa que estes tribunais constituem a regra dentro da organização judiciária. Por conseguinte, os restantes tribunais, de entre os quais os tribunais administrativos, verão a sua competência limitada às matérias que lhes são especificamente atribuídas.
A este propósito, várias normas se pronunciam. O enunciado do art. 1/1º do ETAF, sob a epígrafe “Jurisdição administrativa e fiscal”, constitui uma simbiose entre os art. 202º/1 e 212º/3 da CRP, ao determinar que “os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Rios de tinta têm corrido sobre estes preceitos, levando a várias considerações doutrinárias.
Gomes Canotilho e Vital Moreira comentam o art. 212º/3, referindo que “a competência dos tribunais administrativos deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns. A letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções, no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões, ou que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais”, podendo dizer-se que “os tribunais administrativos passaram a ser verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa”.
Noutra perspectiva, Freitas do Amaral posiciona-se com aqueles que consideram que “a relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade (“jus imperium”) ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”.
Numa outra linha, Vieira de Andrade defende que a percepção do conceito de “relação jurídica administrativa” pretendida pelo legislador constituinte, passa obrigatoriamente “pela distinção material entre o domínio público e o direito privado”. À luz de um critério estatutário, compreenderá “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. Segundo um critério material, é o resultado de um “regime de administração executiva, em que se define um domínio de actividade, a função administrativa, e, nesse contexto, um conjunto de relações onde a Administração é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.
Já Mário Aroso de Almeida assenta a interpretação do art. 1º/1 ETAF na convicção de que “os traços distintivos que permitem identificar as normas de Direito Administrativo, constitutivas de relações jurídico-administrativas” são a “atribuição de prerrogativas de autoridade ou (n)a imposição de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público”. Assim, o Direito Administrativo regula a actuação de todos os sujeitos jurídicos “que exerçam a função administrativa”, ou “quando e na medida em que (a sua actuação) se interseccione com o exercício da função administrativa”.
Como se verifica, deste modo, o art. 1º/1 ETAF deixou de assentar na tradicional distinção entre actos de gestão pública (regidos pelo direito público) e actos de gestão privada (regidos pelo direito privado), passando a contemplar uma posição que implica a prossecução do interesse público, por entidades públicas ou privadas, no âmbito do exercício de um poder público.

Aqui chegados, cabe remissão para o art. 4º ETAF. Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto supra-referido, este preceito “visa ampliar e reduzir o âmbito da jurisdição (administrativa), funcionando como norma especial em relação ao art. 1º, mas também como critério de interpretação”.
Se considerarmos que o art. 4º é taxativo, obtemos a solução bizarra de litígios que envolvam relações administrativas e fiscais, mas que não caibam no âmbito do preceito, serem julgados e decididos por tribunais judiciais. Por outro lado, se entendermos que o elenco do art. 4º não é taxativo, posição que nos parece a mais correta, designadamente pela utilização da expressão “nomeadamente”, estaremos no âmbito de jurisdição administrativa e fiscal. Com a reforma de 2004, procedeu-se a uma clarificação dos critérios de delimitação do âmbito de jurisdição administrativa previstos no preceito em análise, o que contribuiu para um melhor acesso à tutela jurisdicional dos interessados, e ainda para se evitarem conflitos de competência e consequente morosidade acrescida do funcionamento da Justiça.

Dada a extensão do art. 4.º e a quantidade de pontos que podem ser trazidos à colação neste âmbito, remetemos este aprofundamento para um post posterior.

Concluímos com a ideia, também já sublinhada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, de que temos nas relações jurídicas administrativas e fiscais o objecto do Contencioso Administrativo.


Referências bibliográficas:
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2013.
AMARAL, FREITAS DO, Direito Administrativo, vol. III.
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, A Justiça Administrativa – Lições, 12ª edição, Almedina, Coimbra, 2012.
CAETANO,  MARCELO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1991.
CANOTILHO, GOMES, e MOREIRA, VITAL, Constituição da República Portuguesa Anotada.
SILVA, PEDRO CRUZ E, Breve estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em matéria de responsabilidade civil e de contratos, Verbo Jurídico, 2006.
SILVA, VASCO PEREIRA DA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2009.

Referências jurisprudenciais:
Ac. Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 2452/12.7TJVNF-A.P1, de 09/09/2013

Legislação nacional:
Código de Processo dos Tribunais Administrativos
Constituição da República Portuguesa 1976
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais

Outros
Aula teórica de 10/10/2013, pelo Prof. João Miranda, FDUL.
Aula teórica de 17/10/2013, pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, FDUL.

Joana Guerreiro, n.º 19 647

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