domingo, 20 de outubro de 2013

O contencioso de urgência – os processos urgentes, em especial: o contencioso pré-contratual


Sumário:
1.      A urgência no Contencioso Administrativo;
2.      Os processos urgentes: distinção entre impugnações e intimações;
3.      O contencioso pré-contratual. 
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1. A urgência no Contencioso Administrativo

Atendo à circunstância de especial urgência de que são revestidas certas situações jurídicas, tornou-se necessária a consagração de meios processuais especialmente céleres, aptos a compor o litígio de forma eficiente e em tempo útil. Se de outro modo fosse entendido o problema, muitas seriam as situações que perderiam a sua utilidade ao momento da decisão nas acções administrativas ditas “não-urgentes”. Por outras palavras: estamos perante situações jurídicas que apresentam um periculum in mora.    
Estes meios processuais são caracterizados por uma tramitação mais simplificada. A ideia de simplificação é melhor compreendida se for contraposta às formas da acção administrativa (comum ou especial), à qual estão submetidas a generalidade das situações jurídicas. Com efeito, poderemos salientar que, além da brevidade das fases processuais e dos prazos, tendencialmente, mais curtos, os processos urgentes decorrem mesmo durante as férias judicais; é-lhes dispensado o visto prévio; são dotados de prevalência perante os demais actos de secretaria, sendo que estes são praticados no próprio dia (art.36º/2); os recursos sobem imediatamente, com os seus prazos reduzidos para a metade (art.147º); e não tem lugar o reenvio prejudicial (art. 93º/3).    
Neste sentido, o Código de Processo dos Tribunais Administrativos veio consagrar quatro processos urgentes autónomos: duas impugnações e duas intimações (cfr. art. 36º e 97º e ss). A saber:
  1.  Impugnação relativa ao contencioso eleitoral;
  2. Impugnação relativa ao contencioso pré-contratual; 
  3. Intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões;
  4. Intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
Como bem relembra José Vieira de Andrade, a circunstância do artigo 36º estabelecer uma enumeração legal não significa que estejamos perante um numerus clausus, que impeça que outros processos revistam carácter de urgência[1]. Com efeito, constituem exemplos de processos urgentes a acção para declaração de perda de mandato local (cfr. art. 15º da Lei nº. 27/96); as intimações para a prática de acto legalmente devido no âmbito do regime jurídico da Urbanização e da Edificação (cfr. art. 112º do DL nº. 555/99); e os processos relativos ao direito de exilio (cfr. art. 84º da Lei nº. 27/2008).
Além do mais, a convolação do processo cautelar em processo principal e a, consequente, antecipação da decisão definitiva, permite “uma abertura para a criação ad hoc de novos processos urgentes” (cfr. arts. 121º e 132º/7)[2].  
No âmbito das situações de urgência, encontramos a par dos processos urgentes, as providências cautelares (cfr. art. 36º).
O que distingue, essencialmente, as providências cautelares dos processos urgentes é o facto de nestes últimos estarmos perante uma decisão definitiva sobre o mérito da causa e não uma decisão provisória, dependente da proposição de uma acção principal. Deste modo, estamos diante um real e efectivo processo principal, regulador definitivo do litígio. 
Ao autonomizar os processos urgentes enquanto meio principal, o legislador veio dar cumprimento ao comando de celeridade, consagrado no art. 20º/5 da Constituição da República Portuguesa de 1976, introduzido com a revisão constitucional de 1997; ampliando-o além das exigências relacionadas com a marcha dos processos e com o aprofundamento dos procedimentos cautelares[3].
Como salienta Mário Aroso de Almeida, merece destaque a inovatória consagração do processo de intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias, que veio complementar garantia da tutela jurisdicional efectiva[4]. Com esta inovação, o legislador foi mais além das exigências do imperativo constitucional, pois optou por estender o âmbito de aplicação deste processo à defesa de todos os direitos, liberdades e garantias (incluindo os de natureza análoga [por força do regime do art. 17º CRP]), não se bastando pelo de natureza pessoais, tal como refere o art. 20º/5 CRP. Esta solução por uma protecção mais abrangente é justificada pela especial relação entre os direitos em causa e a dignidade da pessoa humana.[5]   
Em jeito de conclusão da presente secção, importa alertar que os processos de decisão urgente sobre o mérito da causa devem ser restringidos a situações que comportem verdadeira urgência, pois estes muitas vezes desenrolam-se em termos que impedem a devida produção de prova e o exercício pleno do contraditório. Como nos diz Aroso De Almeida, não é aconselhável abusar dos processos urgentes, tendo em atenção que este tendem a significar “o sacrifício de certos valores, que quando as razões de urgência não o exijam, não devem ser sacrificados.” Para o autor, a solução mais adequada seria a de dar prioridade aos processos não-urgentes, devidamente complementados por uma tutela cautelar eficaz, “aptos a evitar a constituição de situações irreversíveis ou a emergência de danos de difícil reparação”, e reservar os processos urgentes para as situações de real urgência[6], ou seja, aquelas que não se compadecem de uma composição provisória do litígio.


2. Os processos urgentes: distinção entre impugnações e intimações

O legislador ordinário reservou o título IV do CPTA para regular o regime dos processos principais urgentes. Este título está estruturado em torno da distinção entre de dois géneros de processos urgentes: as impugnações e as intimações.
As impugnações urgentes são processos céleres, de cognição plena acelerada, que desembocam em sentença de fundo [sobre a legalidade dos actos da Administração] e que transitam, com pequenas modificações, da legislação anterior[7].
Neste sentido, elas constituem uma espécie de “acções administrativas especiais urgentes[8], pois o seu objecto não tem de se cingir à mera a impugnação de actos administrativos, podendo nelas cumular-se um pedido de condenação directa da Administração. Com efeito, é-lhes aplicável a tramitação das acções administrativas especiais, com as adaptações do art. 99º para o contencioso eleitoral e do art. 102º para o contencioso pré-contratual.     
Por seu turno, as intimações são processos de condenação, que culminam na imposição judicial à prática ou omissão de certas condutas pela Administração, admitindo-se nos casos da intimação para protecção de direitos, liberdades, garantias a condenação à prática de actos administrativos.   
Feita esta distinção entre impugnações e intimações, cumpre agora fazer uma menção, em termos superficiais, a cada um dos processos urgentes (com excepção do contencioso pré-contratual, que será alvo de um desenvolvimento ligeiramente mais minucioso).
Desta feita, começaremos pelo contencioso eleitoral. Este processo de impugnação está regulado nos artigos 97º a 99º. Consiste, essencialmente, na impugnação de actos administrativos em matéria eleitoral, cuja apreciação seja da competência dos tribunais administrativos.
A ressalva à jurisdição administrativa, feita pelo art. 97º, está relacionada com a diversidade de competências dos diferentes tribunais em matéria eleitoral, nomeadamente com a reserva de competência do Tribunal Constitucional. Compreendendo esta realidade, o ETAF vem, na alínea m) do art.4, atribuir jurisdição residual aos Tribunais Administrativos no âmbito do contencioso eleitoral, atribuindo-lhe competência sobre as matérias não reservadas a outros tribunais.  
Voltando a nossa atenção para as intimações urgentes, são elas: a intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (arts. 104º-108) e a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (arts. 109º-111º).
  A intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões surge no contexto do princípio da colaboração da Administração com os particulares (consagrado no art. 268º CRP e art. 1º/ al. a) do CPA). Desta feita, quando se verifiquem situações de incumprimento dos comandos legislativos consagrados no CPA (cfr. atrs. 61º-63º), ao interessado é facultado o recurso à via contenciosa.
Com efeito, a intimação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões consiste no meio adequado para a obter a satisfação de todas a pretensões informativas. Como salienta Vieria de Andrade, por vezes poderá não se verificar as razões de urgência na utilização deste meio processual, podendo estar em causa a obtenção de informações em circunstância tidas com normais. Para o autor, o fundamento deste amplo alcance prende-se com razões de acentuação da transparência[9].
 Finalmente, cumpre aludir à figura da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Como supra enunciado, esta consiste na grande inovação do CPTA. Visando o aperfeiçoamento da tutela jurisdicional efectiva, o legislador ordinário consagrou um meio processual que visa a protecção de todos e quaisquer direitos, liberdades e garantias, incluindo os de natureza análoga.
Tendo em linha de conta que esta ideia já foi sufragada no presente trabalho, cumpre fazer uma remissão, pese embora seja reconhecida a especial importância deste meio processual, que muitas páginas já rendeu no seio da doutrina Portuguesa.


3. O Contencioso pré-contratual

Feita esta pequena alusão aos diferentes processos urgentes, cabe, por razões de brevidade, centrar as atenções para um processo urgente em particular. Desta feita, o eleito foi o contencioso pré-contratual.
O processo urgente do contencioso pré-contratual consiste num meio de impugnação de actos referente à celebração de quatro espécies contratos: empreitada de obras públicas, concessão de obras públicas, prestação de serviços e fornecimentos de bens (cfr. art. 100º).
Este meio processual urgente surge com uma imposição comunitária, nascendo, por conseguinte, da transposição da “Directiva-Recursos” (Directiva nº 89/665/CEE), pelo DL. 134/98.
Como nós diz Isabel Alexandre, a ideia de urgência que lhe está subjacente é a de “repor a legalidade antes do acto conclusivo do contrato”, notando que até então a jurisprudência não iria além da condenação ao pagamento de indemnização por despesas feitas com o procedimento contratual[10]. Neste sentido, sendo a cognição do tribunal plena, a sua sentença, em caso de procedência da acção, tende a ser anulatória ou de declaração de invalidade do acto em causa.
Para Vieira de Andrade, este processo urgente resulta da necessidade de assegurar duas ordens de valores: por um lado, a promoção da transparência e da concorrência e, por outro, garantir o início célere da execução dos contratos e a sua estabilidade[11].
Uma crítica que se faz sentir no seio da doutrina, prende-se com o facto de o legislador ordinário se ter ficado pela aplicação deste processo aos contratos exigidos pela União Europeia. Cingindo-se ao estritamente necessário para cumprir as obrigações comunitárias. Excluindo, sem razão aparente, outros contratos de natureza administrativa em circunstâncias substancialmente idênticas face aos imperativos de protecção dos interesses dos candidatos preteridos. Assim, como as razões de estabilidade do contrato é, igualmente, importante nos demais contratos[12].  
Posto isto, importa agora analisar, muito sinteticamente, os seus aspectos de regime.
Em relação ao seu objecto, ele não se cinge apenas à impugnação de actos administrativos, podendo abranger actos similares praticados por entidades privadas e os documentos contratuais (art. 100º/2 e 3). Por outro lado, existe a possibilidade de o mesmo ser ampliado à impugnação do contrato já celebrado, embora apenas em relação às invalidades que surjam de ilegalidades do procedimento pré-contratual e quando o mesmo seja celebrado na pendência da acção[13] (art. 63º ex vi art. 102º/4 ).
Quanto ao prazo para a apresentação do pedido, cumpre assinalar a solução, prima facie, paradoxal do artigo 101º, ao optar por alargar o prazo de 15 das para um mês, pese embora o facto de reafirmar o carácter de urgência do contencioso pré-contratual. Esta solução, todavia, é justificada pela consideração de que o prazo anterior era insuficiente e conduzia frequentemente a situações de desprotecção, sobretudo atendendo à impossibilidade de recurso alternativo à via da impugnação do acto no prazo normal.
A propósito deste preceito, cabe apenas notar que ele introduz um desvio à remissão geral do art. 100º/1, por afastar os prazos consagrados no art. 58º. Estabelecendo para o efeito um prazo único de impugnação.
Relativamente aos pressupostos processuais, por força da norma remissiva do art. 100º/1, aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime da acção administrativa especial, nomeadamente, da impugnação do acto administrativo.
Para concluir, importa mencionar: (i) que a tramitação do processo é única e segue a da acção administrativa especial (art. 102º/1); (ii) a possibilidade do tribunal decidir por realizar uma audiência pública para a discussão da matéria de facto e de direito, sendo no seu término ditada a sentença (art. 103º); (iii) e, por último, a faculdade de o juiz não proferir a sentença e optar por promover o acordo das parte em relação ao montante indemnizatório (art. 102º/5).  
   

Nota adicional: todas as disposições citadas, sem a devida referência legislativa, correspondem a preceitos do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro.

Abreviaturas: ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos. CRP – Constituição da República Portuguesa. CPTA – Código de Processo dos Tribunais Administrativos. CPA - Código de Procedimento Administrativo.  

Referências bibliográficas
ALEXANDRE, Ana Isabel, Efectividade da tutela jurisdicional administrativa, a celeridade e a urgência: contributos recíprocos, Relatório de mestrado, Orientador: Prof. Doutor Sérvulo Correia, 2004;
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2013;
ALMEIDA, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2005.
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 12ª edição, Coimbra, Almedina, 2012;
FONSECA, Isabel Celeste M, Dos novos processos urgentes no contencioso administrativo (função e estrutura), Lisboa, Lex, 2004.
RATO, António Esteves Fermiano, Contencioso administrativo: novo regime explicado e anotado, Coimbra, Almedina, 2004.
Carina Ardisson, nº 19529



[1] José Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 12ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, pp.225.
[2] José Vieira de Andrade, op cit, pp. 225. 
[3] Cfr. Ana Isabel Alexandre, Efectividade da tutela jurisdicional administrativa, a celeridade e a urgência: contributos recíprocos, Relatório de mestrado, 2004, pp. 20. E Mário Aroso de Almeida, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2005. pp. 270.
[4] Mário Aroso de Almeida, O novo regime do processo (…)pp. 270.
[5] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 139 e 243.
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual (…), pp. 144.
[7]Isabel Celeste M. Fonseca, Dos novos processos urgentes no contencioso administrativo (função e estrutura), Lisboa, Lex, 2004, pp. 70.
[8] Expressão utilizada por Mário Aroso de Almeida em Manual de Processo Administrativo (…), pp. 408.
[9] José Vieira de Andrade, op cit, pp. 240
[10] Ana Isabel Alexandre, op cit, pp. 22
[11] José Vieira de Andrade, op cit, pp. 231
[12] Neste sentido, Isabel Alexandre, op cit. 22, José Vieira de Andrade, op. Cit, pp.231-232.
[13] A este propósito, cabe referir a crítica feita por Isabel Alexandre. Para a autora faria mais sentido, tendo em atenção a ratio de estabilidade dos contratos, a suspensão automática do procedimento de formação do contrato. 


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