domingo, 20 de outubro de 2013

Os poderes do juiz administrativo
Aos tribunais cabe o desempenho da função jurisdicional, através da prática da faculdade decisória de afirmar e impor coercivamente o Direito. A resolução de litígios que decorram de relações jurídicas administrativas é da competência dos tribunais administrativos, estando estabelecido o seu âmbito material no artigo 212º, número 3 CRP. O artigo 266º CRP estabelece que a função administrativa tem em vista a prossecução do interesse público, com respeito pela ordem jurídica e pelos princípios que esta impõe à actuação dos órgãos e agentes administrativos.
A reforma do Contencioso Administrativo de 2002/2003 permitiu que fosse ultrapassada a questão dos limites funcionais da jurisdição administrativa, superando-se a concepção de administrador-juiz, em que se confundia a Administração e a Justiça, para se aprofundar o papel de controlo dos tribunais administrativos na tutela jurisdicional efectiva e plena dos direitos dos particulares, consagrada nos artigos 20º e 268º, nº4 CRP, e, deste modo, assegurando-se o direito fundamental de acesso à justiça administrativa, fazendo corresponder a cada particular o direito a um meio de defesa adequado em juízo. Assim, conseguiu-se um equilíbrio entre dois importantes valores constitucionais, o princípio da separação de poderes contemplado no artigo 114º CRP, que promove uma interdependência e colaboração entre as várias funções estaduais, e o princípio da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva, artigo 20º e 268º, nº4 CRP. O princípio da tutela jurisdicional efectiva é reafirmado pelo artigo 2º e 7º CPTA, determinando o direito de obter, dentro de um prazo razoável, uma decisão judicial que examine a pretensão e que resulte numa pronúncia sobre o mérito das pretensões formuladas. Contudo, mantém-se um núcleo de competências exclusivo e insusceptível de ser invadido ou atribuído a outros órgãos estaduais, operando uma delimitação material entre os vários poderes do Estado.
A actividade administrativa está subordinada a um sistema de controlo jurisdicional concretizado pelo tribunal administrativo e que está constitucionalmente garantido. Do princípio da separação de poderes, na dimensão de separação entre o poder administrativo e judicial, decorrem limites funcionais da actividade de fiscalização jurisdicional, de modo a evitar que o núcleo da função administrativa seja invadido, restringindo-se a competência dos tribunais administrativos à apreciação da compatibilidade das decisões administrativas com a lei, ficando excluídos os poderes que envolvam questões de mérito, que impliquem a avaliação da oportunidade e conveniência da actividade administrativa, área que está exclusivamente direccionada para a Administração. Do artigo 3º, nº1 CPTA extraímos o princípio da limitação funcional da jurisdição administrativa, que enfatiza a área de exclusividade que não pode ser invadida pelos tribunais podendo, o juiz administrativo, apenas intervir quando a questão a julgar seja uma questão de legalidade ou juridicidade. Resulta do artigo 268º, nº 4 e 5 CRP que entra na esfera de competência da função jurisdicional a resolução de litígios mediante a aplicação do Direito a um caso controvertido, protegendo-se, assim, direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
Em relação aos poderes que cabem na esfera de competência dos tribunais administrativos, a incidência recaí especialmente sobre a acção de condenação à prática do acto devido, corporizada nos artigos 66º e seguintes do CPTA, e que confere ao juiz o poder de impor directamente à Administração a formulação de situações jurídicas administrativas na esfera dos particulares. Nas situações em que um particular se arroga titular de um direito e requer à autoridade administrativa competente a emissão de um requerimento destinado à prossecução de um acto administrativo, havendo uma recusa injustificada dessa pretensão ou não tendo praticado um acto administrativo favorável ao particular, conforme era devido, ele está habilitado a propor uma acção de condenação à prática do acto devido. Perante esta acção, o tribunal administrativo tem o poder de proferir uma sentença que condena a Administração à emissão do acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado com um conteúdo específico e densificado, não se limitando a verificar a legalidade da recusa e a declarar a sua invalidade, mas antes a proceder a um juízo material sobre o lítigio, julgando acerca da existência e alcance do direito do particular e determinando o conteúdo do comportamento juridicamente devido pela Administração. No entanto, é necessário ter presente que a medida da condenação corresponde ao âmbito da vinculação da Administração, ou seja, corresponde apenas ao conteúdo do direito do particular.
Esta possibilidade de condenação judicial à prática do acto devido suscitou problemas associados ao princípio da separação de poderes, todavia, tais questões foram ultrapassadas, considerando-se que o princípio não impedia a emissão de pronúncias condenatórias contra a Administração, mas a intromissão do poder judicial no exercício da função administrativa. Segundo a doutrina de Sérvulo Correia “o ponto de intersecção entre separação de poderes e justiça administrativa não reside, consequentemente, na forma jurídica, mas antes no conteúdo material da injunção. O que há que determinar é o plano a partir do qual a injunção deixa de relevar na função jurisdicional”[1]. Dos poderes de pronúncia que se encontram no âmbito de competências do tribunal administrativo, contemplados no artigo 71º CPTA, é essencial que redunde uma harmonia entre a tutela dos direitos dos particulares e a necessidade de garantir que o tribunal não interfere no campo de acção da esfera própria de actuação da Administração, sendo a prioridade do CPTA a de garantir que as injunções de condenação à prática de um acto administrativo dirigidas pelas entidades judiciais à Administração não violem o espaço de livre actuação, ou seja, o exercício de poderes discricionários legalmente atribuído à Administração, regra geral que se encontra patente no artigo 3º, nº 1 CPTA e que corresponde à lógica do modelo constitucional de separação entre a Administração e a Justiça. Como afirma Sérvulo Correira, “Aquilo que o juiz não pode fazer – sob pena de usurpação de poderes – é transformar a injunção num acto funcionalmente administrativo. É o que aconteceria se o juiz se substituísse à Administração, fosse para exercer as opções próprias do poder discricionário, fosse para efectuar um julgamento de valor sobre situações correspondentes a conceitos jurídicos indeterminados. O problema não é, com efeito, que o juiz administrativo exerça o poder de injunção, mas antes que ele vele por mantê-lo no quadro da função jurisdicional do Estado”.[2]  Há, portanto, que garantir que a faculdade de condenação dos tribunais administrativos em relação à Administração se limite a assegurar o cumprimento da lei, não interferindo na apreciação da oportunidade ou mérito da actividade administrativa, ou seja, demarcar se o acto administrativo a que se condena a Administração a concretizar corresponde ao exercício de uma competência vinculada ou discricionária.
No caso de se estar perante um acto administrativo que cabe no exercício de um poder vinculativo da Administração, entende-se, pela mera aplicação da lei e sem ingerência no desempenho das competências próprias do poder administrativo, que o juiz administrativo pode sentenciar a entidade administrativa a praticar o acto devido, concretizando-se na denominada sentença de condenação em sentido estrito. Por outro lado, estando em causa o exercício de uma faculdade discricionária do poder administrativo, apenas é da competência do tribunal devolver a questão ao órgão competente ao verificar a ilegalidade do acto de indeferimento ou da omissão administrativa, intimando-o a resolver o assunto em causa ao indicar a forma correcta do exercício do poder discricionário e ao determinar o alcance e os limites das vinculações legais, assim como facultar orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão, sendo esta modalidade denominada sentença indicativa segundo a terminologia avançada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva. Esta distinção encontra-se manifesta no artigo 71º, nº 2 do CPTA. É de referir que o poder discricionário não pode ser considerado como um poder “à margem da lei”, não correspondendo a uma excepção do princípio da legalidade, mas a um modo de realização do Direito no caso concreto em que o conteúdo da decisão a adoptar depende de escolhas da responsabilidade da Administração que, não sendo livres, estão sujeitas ao controlo jurisdicional. Para impor o cumprimento dos deveres impostos por uma sentença indicativa, o tribunal pode fixar um prazo, findo o qual será aplicada à entidade administrativa uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso (artigos 44º, 49º e 169º CPTA), com o intuito de garantir a efectividade da tutela que a sentença indicativa tem em vista e assegurar devidamente os interesses dos particulares.
Conclui-se que as sentenças de condenação à prática do acto devido não devem limitar-se a uma análise meramente superficial da causa, devendo antes determinar o âmbito e os limites das vinculações legais, tal como consta no artigo 71º, nº 1 e 2 do CPTA. Cabe, assim, ao tribunal encontrar os elementos necessários para obter uma sentença de condenação em sentido estrito e, quando tal não se revela possível, deve esgotar todas as vertentes de fiscalização da actuação administrativa a que pode legalmente aceder, sem transgredir o domínio de competência dos entes administrativos.
Na definição de uma sentença em sentido estrito é reconhecida ao tribunal administrativo uma margem de liberdade na procura da sentença que melhor satisfaça os interesses do particular, assegurando a tutela jurisdicional efectiva. No entanto, o tribunal não pode substituir a Administração na sua esfera de competência, nomeadamente face ao exercício de poderes discricionários, até porque a interferência judicial pode prejudicar os próprios particulares, na medida em que os órgãos administrativos estão mais aptos e especializados para o tratamento de determinados assuntos, na medida em que são portadores de uma grande amplitude de informação e conhecimento técnico e pericial, tornando a Administração mais apta a desempenhar tal tarefa. Existem certas situações em que, com o intuito de evitar disparidades injustificadas, perante a carência no processo de elementos de facto insuficientes para uma sentença condenatória em sentido estrito, é admissível que o tribunal devolva à Administração o assunto para que esta se pronuncie, por ser o órgão habilitado a lidar com este tipo de situações, assegurando-se, deste modo, uma tutela mais adequada dos direitos dos particulares. Cabe ao juiz administrativo avaliar os interesses em jogo e optar por uma sentença indicativa quando não seja possível ou seja fortemente inconveniente a pronúncia de uma sentença condenatória em sentido estrito.
Na apreciação da pretensão material do particular, o tribunal deve procurar obter oficiosamente todos os factos que se considerem relevantes para a pronúncia sobre o fundo da causa, não podendo depender, em absoluto, do que a Administração tenha tramitado precedentemente.

Bibliografia
- “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume II, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010”
- Proença, André Rosa Lã Pais, “As duas faces da condenação à prática de acto devido”, 2004/2005
- Correia, José Manuel Sérvulo, “Acto administrativo e âmbito da jurisdição administrativa”, Coimbra Editora, Boletim da Faculdade de Direito
- Correia, José Manuel Sérvulo, Les limites au pouvoir d’injonction du juge administratif Portugais, in Estudos de Direito Processual Administrativo, Lisboa, 2002
- Silva, Vasco Pereira da, “O contencioso administrativo no divã da psicanálise : ensaio sobre as acções no novo processo administrativo”, 2ª edição, Coimbra Almedina, 2009
- Almeida, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, Coimbra Almedina, 2012

Ana Filipa Rodrigues, nº 21476



[1] Les limites au pouvoir d’injonction du juge administratif Portugais, in Estudos de Direito Processual Administrativo, Lisboa, 2002, ob. Cit., pág 177, 178)

[2] Les limites au pouvoir d’injonction du juge administratif Portugais, in Estudos de Direito Processual Administrativo, Lisboa, 2002, ob. Cit., pág 178

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