O Ministério Público no divã da Justiça
Administrativa
O
Contencioso Administrativo de hoje é, cada vez mais, um Contencioso de partes
que, ao verem desrespeitado um direito ou interesse pessoal legalmente
protegido, poderão servir-se dos meios jurisdicionais adequados para garantir a
respectiva efectivação – à luz da chamada tutela jurisdicional efectiva,
prevista especificamente no artigo 268.º/4 e 5 da Constituição e no artigo 2.º
do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) – segundo a ideia de
que a cada direito corresponde uma acção em face de uma acção ou omissão
(indevidas) da Administração Pública.
Esta
realidade, introduzida em 2004 com a entrada em vigor do CPTA e do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), corresponde, assim, a um modelo
eminentemente subjectivista, apesar de existirem também aspectos objectivistas
relativos à legitimidade processual activa – quanto à impugnação de actos
administrativos – e aos poderes do Ministério Público (MP) que, como órgão
responsável pela defesa da legalidade democrática e do interesse público
continua, ainda, a relevar, no âmbito da justiça administrativa[1].
E tanto assim é que, quer antes, quer depois
da Reforma, os poderes do MP se baseiam numa intervenção a dois níveis: a
título principal – quando actua com base numa legitimidade própria para a
defesa de valores que deve tutelar ou quando representa alguma das partes[2];
e a título de parte acessória – quando defende a independência e a legalidade
no âmbito da função jurisdicional.
Com
efeito, antes de 2004, o poder do MP residia numa intervenção ligada à
representação do Estado e à defesa da legalidade através do recurso contencioso
de anulação, podendo, inclusivamente, arguir nulidades e requerer diligências
instrutórias, assim como, emitir um parecer sobre a decisão final. O MP acedia,
assim, por duas vezes, aos autos do contencioso administrativo para que pudesse
cumprir o dever de ofício de se pronunciar sobre todas as questões de
legalidade (material ou processual) que o processo poderia chamar à colação,
segundo os artigos 42.º e 53.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(LPTA).
Ora,
estas funções não podiam ser ignoradas pela Reforma, atendendo ao disposto no
artigo 219.º da Constituição e aos artigos 1.º a 6.º do Estatuto dos
Magistrados Judiciais (EMJ) devendo, antes, continuar a reconhecer a este órgão
um importante papel na fiscalização da legalidade – artigo 51.º do ETAF –
apesar de a sua intervenção ter sido limitada na fase instrutória e a vista
final e a participação na sessão de julgamento suprimidas, segundo o disposto
nos artigos 58.º/2, a); 62.º; 73.º; 77.º; 85.º; 104.º/2; 146.º; 152.º e 155.º
do CPTA, apenas se consagrando “um genérico poder de intervenção”[3].
Intervenção que será realizada se e quando o MP a considerar necessária e
justificada, atendendo aos interesses em presença, ainda que limitada segundo
dois aspectos:
1)
O facto de o
artigo 85.º/2 do CPTA não se referir, de forma genérica, à emissão de um
parecer sobre a decisão final, impede o MP de sugerir a emissão de uma decisão
que não se pronuncie sobre o mérito da causa, deixando, portanto, este órgão,
de intervir em defesa da legalidade processual, por exemplo: suscitando a
regularização da petição inicial ou de outras circunstâncias que impeçam o
prosseguimento do processo (o que era anteriormente permitido no artigo 27.º,
a) da LPTA). Mais se refere que a identificação das situações referidas cabe
unicamente ao juiz, depois de ouvidas as partes e sem que o MP se tenha
pronunciado sobre elas.
2)
A
circunstância de, e ao contrário do que previam os artigos 42.º e 53.º da LPTA
quanto à obrigatoriedade das vistas inicial e final, a intervenção do MP não
ter de ocorrer em todos os processos, mas apenas nos que respeitem a algum dos
valores referidos no artigo 9.º/2 do CPTA, ou seja, quando “assentar no
reconhecimento de que se impõe intervir em defesa de valores que uma decisão em
sentido contrário comprometeria ou poria em causa. Há-de tratar-se, por isso,
de uma intervenção que não ocorre por dever de ofício, mas que apenas tem lugar
nos processos que, pela natureza das questões que colocam, justificam a
actuação do Ministério Público”[4].
Ou seja, a intervenção
do MP terá de se basear, sobretudo no “dano efectivo que uma dada actuação
administrativa provoca relativamente a qualquer dos bens ou valores que podem
ser qualificados como interesses difusos”[5].
Tudo isto na base da ideia de que o MP não
deve funcionar no Contencioso Administrativo “como uma espécie de bengala do
juiz”[6].
Ora,
toda esta evolução se compreende se considerarmos a necessidade de assegurar uma
harmonia entre, por um lado, os poderes de iniciativa e de intervenção do
Ministério Público no processo, tal como são defendidos na Constituição e no
ETAF e, por outro, entre uma justiça administrativa assente nas partes e na
defesa dos seus direitos e interesses, ao que este órgão não pode ser alheio,
atendendo ao referido artigo 268.º da Constituição.
Uma
das bases de toda esta evolução encontra-se no Acórdão Lobo Machado contra
Portugal, de 20 de Fevereiro de 1996, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
(TEDH), bem como no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 157/01, em que se
julgou inconstitucional a norma do artigo 15.º da LPTA que permitia a
intervenção do MP nas sessões de julgamento do STA, devido à violação do
processo equitativo, previsto no artigo 20.º/4 da Constituição e no artigo
6.º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Segundo a argumentação
seguida, o direito a um processo contraditório, integrado naquele processo
equitativo, tem subjacente a possibilidade de as partes tomarem conhecimento e
discutirem todos os elementos apresentados ao juiz, inclusivamente os que o
tenham sido apresentados pelo MP – o que não aconteceria se o interessado não
pudesse responder ao parecer final do MP.
Contudo, estas decisões foram
objecto de críticas, quer através de votos de vencido, quer através da
doutrina, sendo de realçar o entendimento do Professor SÉRVULO CORREIA para
quem o Tribunal Constitucional se precipitou ao aderir à argumentação do TEDH,
chegando mesmo a afirmar que “nesse seguidismo de «bons alunos», beatos,
imitativos e acríticos, arriscamo-nos a ser caso quase único e a deixarmos
tradições e linhas culturais específicas do nosso ordenamento jurídico à total
mercê dos infundados complexos de superioridade de gente formada em
ordenamentos nacionais menos garantes do que o nosso das posições subjectivas
dos cidadãos em face da Administração. Os acórdãos do TEDH não constituem
precedente vinculativo para os tribunais portugueses”[7].
Contra as referidas decisões, argumenta-se ainda que a
participação do MP na audiência que precede a decisão não viola o princípio do
contraditório, pois o MP desempenha uma função marcada pela objectividade e
imparcialidade, no sentido de defender a legalidade, o que poderá implicar,
agir contra as pretensões da Administração.
Como um outro poder do MP,
no divã da justiça administrativa, cabe referir a titularidade da chamada
“acção pública” e, portanto, a iniciativa processual deste órgão para intentar
tal acção, sendo esta função considerada como a mais importante por alguma
doutrina.
Esta acção poderá ser definida como “o poder de agir
em juízo administrativo, titulado por um órgão do Estado ou de outra pessoa
colectiva inserida na Administração, dirigido à obtenção de uma pronúncia
jurisdicional de mérito sobre uma pretensão de repressão da violação da
legalidade democrática numa situação determinada e concreta ou devida à
actividade normativa da Administração”[8].
Apesar de não constar
expressamente no elenco do artigo 219.º/1 da Constituição, a titularidade do MP
em relação a esta acção decorre da necessidade de defender a legalidade
democrática prevista neste preceito, até porque, se o MP tem de assegurar esta
defesa, não faria sentido privá-lo do acesso aos tribunais por iniciativa
própria, ficando dependente do prévio exercício do direito de acção pelos
particulares.
Por outro lado, há que destacar o facto de tal acção
pública contribuir sobremaneira para o desenvolvimento do princípio da
legalidade democrática administrativa. É assim, desde logo, pela sua função
garantística dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares
frente à Administração; depois, porque a Administração deverá estar sempre ao
serviço do ordenamento jurídico e do interesse público, o que exige o
estabelecimento de mecanismos de controlo suficientemente eficazes, sob pena
deste princípio da legalidade perder efectividade.
Como manifestações da titularidade pelo MP desta
acção pública há que referir, no âmbito do CPTA:
· A legitimidade activa para
impugnar actos administrativos na acção administrativa especial (55.º/1, b) e
normas (73.º/3), e para pedir a condenação à prática de actos devidos (68.º/1,
c)), de providências cautelares (112.º/1, 124.º/1 e 130.º); para pedir a
execução de sentenças e demais poderes próprios do autor da acção;
· A legitimidade activa para
pedidos relativos à validade e à execução de contratos, no âmbito da acção
administrativa comum (40.º/1, b) e 40.º/2, c));
· A legitimidade activa para
defender valores comunitários numa “acção popular pública” (9.º);
· A legitimidade própria para
recorrer de decisões jurisdicionais, em nome da defesa da legalidade (141.º),
para requerer a revisão de sentenças (155.º);
· Nos processos de impugnação
de actos iniciados por particulares, o poder de assumir a posição de autor para
garantir a prossecução do processo, aquando de desistência (62.º).
Uma vez analisados os
poderes da MP no âmbito da justiça administrativa, cabe referir que tal
diversidade de funções pode levar a que este órgão tenha de desempenhá-las no
mesmo processo, apesar de serem, em concreto, incompatíveis entre si. Tal
sucederá, nomeadamente quando surge ao lado do Estado, contra os particulares,
ou quando está do lado da Administração, ao lado do administrado, ou em vez
dele.
Assim, e para evitar
entendimentos depreciativos quanto à configuração actual do MP, que poriam em
causa a própria defesa dos direitos dos particulares e do interesse público –
baseada num Contencioso Administrativo de partes e para as partes – o MP deverá
continuar a ser visto como um defensor da legalidade, independentemente de
intervir como parte principal, ou como auxiliar do juiz.
Como decorrência da
necessidade de resolver a questão da autonomia do MP face à representação do
Estado-parte, o Professor VIEIRA DE ANDRADE defende que “não há razão para, no
processo administrativo actual, atribuir ao Ministério Público a representação
dos interesses patrimoniais do Estado-Administração e, menos ainda, das Regiões
Autónomas e de outras pessoas colectivas públicas (designadamente nas acções
que lhe são movidas por particulares), quando a representação ou o patrocínio
podem ser assegurados por funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou
por advogados contratados, nem sequer para lhe conferir o encargo de promoção
processual do interesse público, quando este possa ser prosseguido por órgãos
administrativos”[9].
Assim, talvez se
conseguisse contrariar os traumas da infância difícil do Direito
Administrativo, considerando a evolução subjectivista do Contencioso
Administrativo – assente mais na pretensão do interessado do que no objecto do
processo do acto administrativo – encarando-o como um processo de partes, no
qual o Estado deve assumir a sua posição de parte, quer seja autor ou
demandado. Desta forma, também o Estado deve poder ser alvo da actuação do MP,
quando se considere um tal procedimento benéfico para o interesse público, em
geral, e para o direito e interesse dos particulares, em especial.
Em suma, poderá dizer-se
que, com a Reforma de 2004, se acentuou a ideia de que a intervenção do MP no
Contencioso Administrativo se reveste de uma importância resultante da natureza
dos direitos e interesses em juízo, segundo o artigo 9.º/2 do CPTA,
continuando, portanto e, não obstante esta limitação, a deter poderes
relevantes quanto à iniciativa e intervenção processuais. E isto terá de ser
assim, pois o enfraquecimento manifesto do MP poderia ser prejudicial a uma
justiça administrativa baseada na protecção dos direitos e interesses dos
particulares, mas também, na prossecução do interesse público.
Bibliografia consultada:
ALMEIDA, Mário Aroso de, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos»,
3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004
ALMEIDA, Mário Aroso de/ CADILHA, Carlos,
«Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos», 3.ª edição,
Almedina, Coimbra, 2010
AMARAL, Diogo Freitas do, “O debate
universitário: trabalhos preparatórios”, in «Reforma do Contencioso
Administrativo», vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2003
ANDRADE, Vieira de, «A Justiça
Administrativa (Lições)», 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012
CADILHA, Carlos, «Dicionário de
Contencioso Administrativo», Almedina, 2006
CORREIA, Sérvulo, “A reforma do
contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, in «Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues», 2001
SILVA, Vasco Pereira da, «O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo
Administrativo», 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
Mara Afonso, n.º 20684, subturma 1
[1] O MP dispõe de
um Estatuto próprio (EMJ: Lei n.º 47/86
de 15 de Outubro), forma um grupo de magistrados responsáveis e
hierarquicamente subordinados (artigo 219.º/4 da Constituição e 76.º/1 do EMJ),
com autonomia relativamente ao Governo (artigo 2.º do EMJ) e à magistratura
judicial (artigo 75.º/1do EMJ). É dotado de independência externa
(perante o Ministro da Justiça), mas não é um órgão de soberania, e não se
confunde com os órgãos do poder judicial, pois não tem competência para a
prática de actos materialmente jurisdicionais.
[2] Nomeadamente o Estado nas acções
administrativas em que este seja parte, em matéria contratual e de
responsabilidade civil, segundo o artigo 11.º/2 do CPTA como concretização do
artigo 219.º/1 da Constituição, ainda que a atribuição ao MP dessa representação
não abranja as situações relativas a acções ou omissões de órgãos integrados em
Ministérios, nem quando os pedidos de matéria contratual ou de responsabilidade
surjam cumulados com outros; e outras pessoas colectivas públicas ou outros
interessados, nos termos do artigo 3.º do EMJ.
[3] Mário
Aroso de Almeida, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais
Administrativos», p.240
[4] Ibidem
[5] Carlos
cadilha, «Dicionário de Contencioso Administrativo», p.86
[6] Diogo
Freitas do Amaral, “O debate universitário”, p.91
[7]Sérvulo correia, “A reforma do Contencioso Administrativo e
as funções do Ministério Público”, p.324
[8] Sérvulo
Correia, Idem, p.304
[9] Vieira de Andrade, «A Justiça
Administrativa», p.144
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