domingo, 20 de outubro de 2013

O Ministério Público no divã da Justiça Administrativa


O Ministério Público no divã da Justiça Administrativa
            O Contencioso Administrativo de hoje é, cada vez mais, um Contencioso de partes que, ao verem desrespeitado um direito ou interesse pessoal legalmente protegido, poderão servir-se dos meios jurisdicionais adequados para garantir a respectiva efectivação – à luz da chamada tutela jurisdicional efectiva, prevista especificamente no artigo 268.º/4 e 5 da Constituição e no artigo 2.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) – segundo a ideia de que a cada direito corresponde uma acção em face de uma acção ou omissão (indevidas) da Administração Pública.
                Esta realidade, introduzida em 2004 com a entrada em vigor do CPTA e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), corresponde, assim, a um modelo eminentemente subjectivista, apesar de existirem também aspectos objectivistas relativos à legitimidade processual activa – quanto à impugnação de actos administrativos – e aos poderes do Ministério Público (MP) que, como órgão responsável pela defesa da legalidade democrática e do interesse público continua, ainda, a relevar, no âmbito da justiça administrativa[1]. 
             E tanto assim é que, quer antes, quer depois da Reforma, os poderes do MP se baseiam numa intervenção a dois níveis: a título principal – quando actua com base numa legitimidade própria para a defesa de valores que deve tutelar ou quando representa alguma das partes[2]; e a título de parte acessória – quando defende a independência e a legalidade no âmbito da função jurisdicional.
                Com efeito, antes de 2004, o poder do MP residia numa intervenção ligada à representação do Estado e à defesa da legalidade através do recurso contencioso de anulação, podendo, inclusivamente, arguir nulidades e requerer diligências instrutórias, assim como, emitir um parecer sobre a decisão final. O MP acedia, assim, por duas vezes, aos autos do contencioso administrativo para que pudesse cumprir o dever de ofício de se pronunciar sobre todas as questões de legalidade (material ou processual) que o processo poderia chamar à colação, segundo os artigos 42.º e 53.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA).
                Ora, estas funções não podiam ser ignoradas pela Reforma, atendendo ao disposto no artigo 219.º da Constituição e aos artigos 1.º a 6.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) devendo, antes, continuar a reconhecer a este órgão um importante papel na fiscalização da legalidade – artigo 51.º do ETAF – apesar de a sua intervenção ter sido limitada na fase instrutória e a vista final e a participação na sessão de julgamento suprimidas, segundo o disposto nos artigos 58.º/2, a); 62.º; 73.º; 77.º; 85.º; 104.º/2; 146.º; 152.º e 155.º do CPTA, apenas se consagrando “um genérico poder de intervenção”[3]. Intervenção que será realizada se e quando o MP a considerar necessária e justificada, atendendo aos interesses em presença, ainda que limitada segundo dois aspectos:

1)        O facto de o artigo 85.º/2 do CPTA não se referir, de forma genérica, à emissão de um parecer sobre a decisão final, impede o MP de sugerir a emissão de uma decisão que não se pronuncie sobre o mérito da causa, deixando, portanto, este órgão, de intervir em defesa da legalidade processual, por exemplo: suscitando a regularização da petição inicial ou de outras circunstâncias que impeçam o prosseguimento do processo (o que era anteriormente permitido no artigo 27.º, a) da LPTA). Mais se refere que a identificação das situações referidas cabe unicamente ao juiz, depois de ouvidas as partes e sem que o MP se tenha pronunciado sobre elas.

2)        A circunstância de, e ao contrário do que previam os artigos 42.º e 53.º da LPTA quanto à obrigatoriedade das vistas inicial e final, a intervenção do MP não ter de ocorrer em todos os processos, mas apenas nos que respeitem a algum dos valores referidos no artigo 9.º/2 do CPTA, ou seja, quando “assentar no reconhecimento de que se impõe intervir em defesa de valores que uma decisão em sentido contrário comprometeria ou poria em causa. Há-de tratar-se, por isso, de uma intervenção que não ocorre por dever de ofício, mas que apenas tem lugar nos processos que, pela natureza das questões que colocam, justificam a actuação do Ministério Público”[4]. Ou seja, a intervenção do MP terá de se basear, sobretudo no “dano efectivo que uma dada actuação administrativa provoca relativamente a qualquer dos bens ou valores que podem ser qualificados como interesses difusos”[5].


Tudo isto na base da ideia de que o MP não deve funcionar no Contencioso Administrativo “como uma espécie de bengala do juiz”[6].
                Ora, toda esta evolução se compreende se considerarmos a necessidade de assegurar uma harmonia entre, por um lado, os poderes de iniciativa e de intervenção do Ministério Público no processo, tal como são defendidos na Constituição e no ETAF e, por outro, entre uma justiça administrativa assente nas partes e na defesa dos seus direitos e interesses, ao que este órgão não pode ser alheio, atendendo ao referido artigo 268.º da Constituição.
                Uma das bases de toda esta evolução encontra-se no Acórdão Lobo Machado contra Portugal, de 20 de Fevereiro de 1996, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), bem como no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 157/01, em que se julgou inconstitucional a norma do artigo 15.º da LPTA que permitia a intervenção do MP nas sessões de julgamento do STA, devido à violação do processo equitativo, previsto no artigo 20.º/4 da Constituição e no artigo 6.º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Segundo a argumentação seguida, o direito a um processo contraditório, integrado naquele processo equitativo, tem subjacente a possibilidade de as partes tomarem conhecimento e discutirem todos os elementos apresentados ao juiz, inclusivamente os que o tenham sido apresentados pelo MP – o que não aconteceria se o interessado não pudesse responder ao parecer final do MP.
                Contudo, estas decisões foram objecto de críticas, quer através de votos de vencido, quer através da doutrina, sendo de realçar o entendimento do Professor SÉRVULO CORREIA para quem o Tribunal Constitucional se precipitou ao aderir à argumentação do TEDH, chegando mesmo a afirmar que “nesse seguidismo de «bons alunos», beatos, imitativos e acríticos, arriscamo-nos a ser caso quase único e a deixarmos tradições e linhas culturais específicas do nosso ordenamento jurídico à total mercê dos infundados complexos de superioridade de gente formada em ordenamentos nacionais menos garantes do que o nosso das posições subjectivas dos cidadãos em face da Administração. Os acórdãos do TEDH não constituem precedente vinculativo para os tribunais portugueses”[7].
            Contra as referidas decisões, argumenta-se ainda que a participação do MP na audiência que precede a decisão não viola o princípio do contraditório, pois o MP desempenha uma função marcada pela objectividade e imparcialidade, no sentido de defender a legalidade, o que poderá implicar, agir contra as pretensões da Administração.
            Como um outro poder do MP, no divã da justiça administrativa, cabe referir a titularidade da chamada “acção pública” e, portanto, a iniciativa processual deste órgão para intentar tal acção, sendo esta função considerada como a mais importante por alguma doutrina.
                Esta acção poderá ser definida como “o poder de agir em juízo administrativo, titulado por um órgão do Estado ou de outra pessoa colectiva inserida na Administração, dirigido à obtenção de uma pronúncia jurisdicional de mérito sobre uma pretensão de repressão da violação da legalidade democrática numa situação determinada e concreta ou devida à actividade normativa da Administração”[8].
            Apesar de não constar expressamente no elenco do artigo 219.º/1 da Constituição, a titularidade do MP em relação a esta acção decorre da necessidade de defender a legalidade democrática prevista neste preceito, até porque, se o MP tem de assegurar esta defesa, não faria sentido privá-lo do acesso aos tribunais por iniciativa própria, ficando dependente do prévio exercício do direito de acção pelos particulares.
                Por outro lado, há que destacar o facto de tal acção pública contribuir sobremaneira para o desenvolvimento do princípio da legalidade democrática administrativa. É assim, desde logo, pela sua função garantística dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares frente à Administração; depois, porque a Administração deverá estar sempre ao serviço do ordenamento jurídico e do interesse público, o que exige o estabelecimento de mecanismos de controlo suficientemente eficazes, sob pena deste princípio da legalidade perder efectividade.
                Como manifestações da titularidade pelo MP desta acção pública há que referir, no âmbito do CPTA:
·      A legitimidade activa para impugnar actos administrativos na acção administrativa especial (55.º/1, b) e normas (73.º/3), e para pedir a condenação à prática de actos devidos (68.º/1, c)), de providências cautelares (112.º/1, 124.º/1 e 130.º); para pedir a execução de sentenças e demais poderes próprios do autor da acção;

·      A legitimidade activa para pedidos relativos à validade e à execução de contratos, no âmbito da acção administrativa comum (40.º/1, b) e 40.º/2, c));

·      A legitimidade activa para defender valores comunitários numa “acção popular pública” (9.º);

·      A legitimidade própria para recorrer de decisões jurisdicionais, em nome da defesa da legalidade (141.º), para requerer a revisão de sentenças (155.º);

·      Nos processos de impugnação de actos iniciados por particulares, o poder de assumir a posição de autor para garantir a prossecução do processo, aquando de desistência (62.º).

                      Uma vez analisados os poderes da MP no âmbito da justiça administrativa, cabe referir que tal diversidade de funções pode levar a que este órgão tenha de desempenhá-las no mesmo processo, apesar de serem, em concreto, incompatíveis entre si. Tal sucederá, nomeadamente quando surge ao lado do Estado, contra os particulares, ou quando está do lado da Administração, ao lado do administrado, ou em vez dele.

                      Assim, e para evitar entendimentos depreciativos quanto à configuração actual do MP, que poriam em causa a própria defesa dos direitos dos particulares e do interesse público – baseada num Contencioso Administrativo de partes e para as partes – o MP deverá continuar a ser visto como um defensor da legalidade, independentemente de intervir como parte principal, ou como auxiliar do juiz.

                      Como decorrência da necessidade de resolver a questão da autonomia do MP face à representação do Estado-parte, o Professor VIEIRA DE ANDRADE defende que “não há razão para, no processo administrativo actual, atribuir ao Ministério Público a representação dos interesses patrimoniais do Estado-Administração e, menos ainda, das Regiões Autónomas e de outras pessoas colectivas públicas (designadamente nas acções que lhe são movidas por particulares), quando a representação ou o patrocínio podem ser assegurados por funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou por advogados contratados, nem sequer para lhe conferir o encargo de promoção processual do interesse público, quando este possa ser prosseguido por órgãos administrativos”[9].

                      Assim, talvez se conseguisse contrariar os traumas da infância difícil do Direito Administrativo, considerando a evolução subjectivista do Contencioso Administrativo – assente mais na pretensão do interessado do que no objecto do processo do acto administrativo – encarando-o como um processo de partes, no qual o Estado deve assumir a sua posição de parte, quer seja autor ou demandado. Desta forma, também o Estado deve poder ser alvo da actuação do MP, quando se considere um tal procedimento benéfico para o interesse público, em geral, e para o direito e interesse dos particulares, em especial.

                      Em suma, poderá dizer-se que, com a Reforma de 2004, se acentuou a ideia de que a intervenção do MP no Contencioso Administrativo se reveste de uma importância resultante da natureza dos direitos e interesses em juízo, segundo o artigo 9.º/2 do CPTA, continuando, portanto e, não obstante esta limitação, a deter poderes relevantes quanto à iniciativa e intervenção processuais. E isto terá de ser assim, pois o enfraquecimento manifesto do MP poderia ser prejudicial a uma justiça administrativa baseada na protecção dos direitos e interesses dos particulares, mas também, na prossecução do interesse público.

 
Bibliografia consultada:

ALMEIDA, Mário Aroso de, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004

ALMEIDA, Mário Aroso de/ CADILHA, Carlos, «Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos», 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2010

AMARAL, Diogo Freitas do, “O debate universitário: trabalhos preparatórios”, in «Reforma do Contencioso Administrativo», vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2003

ANDRADE, Vieira de, «A Justiça Administrativa (Lições)», 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012

CADILHA, Carlos, «Dicionário de Contencioso Administrativo», Almedina, 2006

CORREIA, Sérvulo, “A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, in «Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues», 2001

SILVA, Vasco Pereira da, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
 
Mara Afonso, n.º 20684, subturma 1

 

 



[1] O MP dispõe de um Estatuto próprio (EMJ: Lei n.º 47/86 de 15 de Outubro), forma um grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados (artigo 219.º/4 da Constituição e 76.º/1 do EMJ), com autonomia relativamente ao Governo (artigo 2.º do EMJ) e à magistratura judicial (artigo 75.º/1do EMJ). É dotado de independência externa (perante o Ministro da Justiça), mas não é um órgão de soberania, e não se confunde com os órgãos do poder judicial, pois não tem competência para a prática de actos materialmente jurisdicionais.
[2] Nomeadamente o Estado nas acções administrativas em que este seja parte, em matéria contratual e de responsabilidade civil, segundo o artigo 11.º/2 do CPTA como concretização do artigo 219.º/1 da Constituição, ainda que a atribuição ao MP dessa representação não abranja as situações relativas a acções ou omissões de órgãos integrados em Ministérios, nem quando os pedidos de matéria contratual ou de responsabilidade surjam cumulados com outros; e outras pessoas colectivas públicas ou outros interessados, nos termos do artigo 3.º do EMJ.
[3] Mário Aroso de Almeida, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», p.240
[4]  Ibidem
[5] Carlos cadilha, «Dicionário de Contencioso Administrativo», p.86
[6] Diogo Freitas do Amaral, “O debate universitário”, p.91
[7]Sérvulo correia, “A reforma do Contencioso Administrativo e as funções do Ministério Público”, p.324
[8] Sérvulo Correia, Idem, p.304
[9] Vieira de Andrade, «A Justiça Administrativa», p.144

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