domingo, 20 de outubro de 2013

O Ministério Público no Contencioso Administrativo: os pedidos de condenação em especial



É no âmbito da jurisdição administrativa que a conduta do Ministério Público tem vindo a alcançar maior importância. Enquanto órgão encarregado de zelar pela legalidade democrática, o Ministério Público contém, hoje, importantes poderes de iniciativa e de intervenção processual na defesa da legalidade e do interesse público no que respeita ao contencioso administrativo.

Cabe, primeiramente, fazer um breve enquadramento do órgão Ministério Público, das suas características, os seus poderes e a sua intervenção na jurisdição administrativa. O Ministério Público possui Estatuto próprio, a Lei n.º 47/86 de 15 de Outubro - Lei Orgânica do Ministério Público, doravante LOMP. Conjugando os arts 219º/4 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e 76º/1 da LOMP resulta que forma um grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados com autonomia relativamente ao Governo (art 2º) e à magistratura judicial (art 75º/1), cuja gestão e disciplina cabe à Procuradoria-Geral da República, que é presidida pelo Procurador-Geral (arts 219º/2, 4 e 5, e 220º CRP). Não é um órgão de soberania nem um órgão do poder judicial, porquanto não possui competência para a prática de actos materialmente jurisdicionais, segundo Vieira de Andrade. A sua intervenção na jurisdição administrativa pauta-se pelo art. 219º.
Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, as funções do Ministério Público seriam em larga escala a de “representar o Estado, nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte, funcionando como uma espécie de Advogado do Estado; exercer a acção penal; defender a legalidade democrática, intervindo, entre outras coisas, no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade”. Da conjugação dos arts 219º1/ CRP, art. 3º/1 LOMP e ainda do art. 51º ETAF destaca-se, em especial, a legitimidade para intentar acções administrativas especiais contra actos e normas regulamentares.
A intervenção do Ministério Público no âmbito do contencioso administrativo toma formas diferenciadas, senão veja-se o art. 5º e 6º da LOMP:
a) Quando representa o Estado;
b) Quando representa as regiões autónomas e as autarquias locais;
c) Quando representa incapazes, incertos ou ausentes em parte incerta;
d) Quando exerce o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na
defesa dos seus direitos de carácter social;
e) Nos inventários obrigatórios;
f) Nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa
qualidade.
Pode intervir, igualmente, nos processos acessoriamente: quando, não se verificando nenhum dos casos anteriormente descritos, sejam interessados na causa as regiões autónomas, as autarquias locais, outras pessoas colectivas públicas, pessoas colectivas de utilidade pública, incapazes ou ausentes e, ainda, nos demais casos previstos na lei.

A defesa da legalidade democrática e do respectivo interesse público exercida por este órgão, incide essencialmente na resolução de conflitos suscitados por entre órgãos/agentes do Estado ou órgãos/agentes da Administração Pública e os particulares. Os objectivos de tutela, garantia e harmonização do interesse público e de direitos e interesses individuais confluem na maioria dos processos. Compreende-se, assim, que o Ministério Público tenha uma ampla intervenção na jurisdição administrativa.

Este papel defensivo vem, deste modo, justificar um alargamento da legitimidade da sua intervenção, nomeadamente na apresentação de pedidos de condenação. Estes pedidos vêm na sequência da utilização da acção administrativa especial que visam a condenação, dentro de um certo prazo, de uma entidade competente á prática de um acto administrativo que foi por esta, ilegalmente, omitido ou recusado[1]. Curiosamente vem a introduzir-se um elemento objectivista a este propósito, paralelamente á componente subjectivista do contencioso administrativo que existe para a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses dos administrados. A par desta objectividade criaram-se limites à legitimidade de apresentação dos pedidos, nomeadamente a alínea c) do art. 68º/1. Assim, estipula-se que o Ministério Público apenas pode formular pedidos de condenação quando o dever de praticar o ato resulte directamente da lei e esteja em causa a ofensa a direitos fundamentais, de um interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos bens referidos no nº2 do art. 9º [2]. O próprio art. 9/2º estabeleceu um critério de legitimidade activa objectivista, possivelmente por não por ter ficado preso ao passado do contencioso administrativo - que primava pela singela tutela da legalidade - mas sim por ter como finalidade a tutela efectivamente interesses públicos difusos e comuns. Neste ponto, o Sr. Professor Vasco Pereira da Silva vem, por um lado, criticar esta limitação considerando-a como ‘infeliz’ pois, apesar de ser ainda aceitável a intervenção do Ministério Público como substituto quando estão em causa direitos fundamentais (direitos subjectivos e valores fundamentais do ordenamento jurídico) e a comparação das situações de interesse público particularmente relevante às dos direitos subjectivos, a recondução para as situações tuteláveis através da acção popular sem qua hajam restrições relativas à importância dos interesses em causa, afigura-se já como manifestamente inadequada. Corre-se o risco de pôr em causa a intenção inicial de estabelecer limites ao próprio alargamento da legitimidade do Ministério Público na apresentação de pedidos de condenação. A solução encontrada centra-se na interpretação correctiva da disposição do artigo de modo a que se retire daí, em razão do espírito do sistema, o seguinte: o alargamento da legitimidade só fará sentido quando estão em causa verdadeiros interesses públicos particularmente relevantes ao ponto de permitir ao Ministério Público fazer uso de mecanismos destinados á protecção de direitos subjectivos na prossecução da defesa da legalidade e do interesse público.
Um novo problema surge: como compatibilizar o pressuposto processual da legitimidade do Ministério Público com os pressupostos relativos ao comportamento da Administração? Há pois uma contradição legislativa entre o objecto e a função do processo e, igualmente, entre legitimidade que se evidência nas omissões administrativas na medida em que tanto as normas de processo como as de procedimento fazem depender a relevância jurídica do sistema da Administração de um pedido de um particular. Vasco Pereira da Silva defende que a melhor forma de compatibilizar os pressupostos processuais da legitimidade com os do comportamento da Administração é a de tomar como admissível a intervenção do Ministério Público unicamente quando tenha sido emitido um acto administrativo de conteúdo negativo; ficam de fora as situações de omissão administrativa.
Um outro lado da doutrina[3], admite as duas situações afirmando que o Ministério Público usufruiria de legitimidade nas mesmas dando apenas relevância aos requisitos da omissão juridicamente relevante. De outra forma, há doutrina[4] que remete o problema para a necessidade de respeito, ou não, do princípio da provocação (quando a Administração tenha sido interpelada para a emissão de um acto administrativo mesmo quando se trate de um acto cuja pratica seja imposta directamente pela lei). Mais uma vez, Vasco Pereira da Silva remete para o ponto essencial: é a legitimidade que deve ser interpretada segundo a função e o objecto do processo, não o contrário!

Deve, assim, considerar-se que a intervenção do actor público e do actor popular nos pedidos de condenação apenas ocorre nas situações que versem sobre um acto de conteúdo negativo e não de uma mera omissão administrativa, na medida em que, do ponto de vista objectivo de defesa da legalidade e do interesse público, afigura-se mais grave a emissão de um acto ilegal do que a ocorrência de uma omissão de comportamento ilegal


Bibliografia:

  • SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo”; 2ª edição, Almedina, 2009


  • CORREIA, José Manuel Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Lisboa. 2005
  •   
  •   CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, In: Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, 2001 - vol. 1 p. 295-330

  • Procuradoria-Geral da República: www.pgr.pt

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Cátia Isabel Correia Rosa Miguel de Matos
Nº 19553, subturma 1


[1] Artigo 66º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
[2] Artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos: independentemente de ter interesse pessoal na demanda (…) o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
[3] Mario Aroso de Almeida
[4] Viera de Andrade

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