É
no âmbito da jurisdição administrativa que a conduta do Ministério Público tem
vindo a alcançar maior importância. Enquanto órgão encarregado de zelar pela
legalidade democrática, o Ministério Público contém, hoje, importantes poderes
de iniciativa e de intervenção processual na defesa da legalidade e do interesse
público no que respeita ao contencioso administrativo.
Cabe, primeiramente, fazer um breve
enquadramento do órgão Ministério Público, das suas características, os seus
poderes e a sua intervenção na jurisdição administrativa. O Ministério Público
possui Estatuto próprio, a Lei n.º 47/86 de 15 de Outubro - Lei Orgânica do
Ministério Público, doravante LOMP. Conjugando os arts 219º/4 da Constituição
da República Portuguesa (doravante CRP) e 76º/1 da LOMP resulta que forma um
grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados com autonomia
relativamente ao Governo (art 2º) e à magistratura judicial (art 75º/1), cuja
gestão e disciplina cabe à Procuradoria-Geral da República, que é presidida
pelo Procurador-Geral (arts 219º/2, 4 e 5, e 220º CRP). Não é um órgão de
soberania nem um órgão do poder judicial, porquanto não possui competência para
a prática de actos materialmente jurisdicionais, segundo Vieira de Andrade. A sua
intervenção na jurisdição administrativa pauta-se pelo art. 219º.
Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira,
as funções do Ministério Público seriam em larga escala a de “representar o
Estado, nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte,
funcionando como uma espécie de Advogado do Estado; exercer a acção penal; defender
a legalidade democrática, intervindo, entre outras coisas, no contencioso
administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade”. Da conjugação
dos arts 219º1/ CRP, art. 3º/1 LOMP e ainda do art. 51º ETAF destaca-se, em
especial, a legitimidade para intentar acções administrativas especiais contra
actos e normas regulamentares.
A intervenção do Ministério Público no âmbito
do contencioso administrativo toma formas diferenciadas, senão veja-se o art.
5º e 6º da LOMP:
a) Quando representa
o Estado;
b) Quando representa
as regiões autónomas e as autarquias locais;
c) Quando representa
incapazes, incertos ou ausentes em parte incerta;
d) Quando exerce o
patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na
defesa dos seus
direitos de carácter social;
e) Nos inventários
obrigatórios;
f) Nos demais casos
em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa
qualidade.
Pode
intervir, igualmente, nos processos acessoriamente: quando, não se verificando nenhum dos casos anteriormente
descritos, sejam interessados na causa as regiões autónomas, as autarquias
locais, outras pessoas colectivas públicas, pessoas colectivas de utilidade
pública, incapazes ou ausentes e, ainda, nos demais casos previstos na lei.
A
defesa da legalidade democrática e do respectivo interesse público exercida por
este órgão, incide essencialmente na resolução de conflitos suscitados por entre
órgãos/agentes do Estado ou órgãos/agentes da Administração Pública e os
particulares. Os objectivos de tutela, garantia e harmonização do interesse
público e de direitos e interesses individuais confluem na maioria dos
processos. Compreende-se, assim, que o Ministério Público tenha uma ampla
intervenção na jurisdição administrativa.
Este
papel defensivo vem, deste modo, justificar um alargamento da legitimidade da
sua intervenção, nomeadamente na apresentação de pedidos de condenação. Estes pedidos
vêm na sequência da utilização da acção administrativa especial que visam a
condenação, dentro de um certo prazo, de uma entidade competente á prática de
um acto administrativo que foi por esta, ilegalmente, omitido ou recusado[1]. Curiosamente
vem a introduzir-se um elemento objectivista a este propósito, paralelamente á
componente subjectivista do contencioso administrativo que existe para a tutela
jurisdicional efectiva dos direitos e interesses dos administrados. A par desta
objectividade criaram-se limites à legitimidade de apresentação dos pedidos,
nomeadamente a alínea c) do art. 68º/1. Assim, estipula-se que o Ministério Público apenas pode
formular pedidos de condenação quando o dever de praticar o ato resulte directamente
da lei e esteja em causa a ofensa a direitos fundamentais, de um interesse
público especialmente relevante ou de qualquer dos bens referidos no nº2 do
art. 9º [2]. O próprio art. 9/2º estabeleceu um critério de legitimidade
activa objectivista, possivelmente por não por ter ficado preso ao passado do
contencioso administrativo - que primava pela singela tutela da legalidade -
mas sim por ter como finalidade a tutela efectivamente interesses públicos
difusos e comuns. Neste ponto, o Sr. Professor Vasco Pereira da Silva vem, por
um lado, criticar esta limitação considerando-a como ‘infeliz’ pois, apesar de
ser ainda aceitável a intervenção do Ministério Público como substituto quando
estão em causa direitos fundamentais (direitos subjectivos e valores
fundamentais do ordenamento jurídico) e a comparação das situações de interesse
público particularmente relevante às dos direitos subjectivos, a recondução para
as situações tuteláveis através da acção popular sem qua hajam restrições relativas
à importância dos interesses em causa, afigura-se já como manifestamente
inadequada. Corre-se o risco de pôr em causa a intenção inicial de estabelecer
limites ao próprio alargamento da legitimidade do Ministério Público na
apresentação de pedidos de condenação. A solução encontrada centra-se na
interpretação correctiva da disposição do artigo de modo a que se retire daí,
em razão do espírito do sistema, o
seguinte: o alargamento da legitimidade só fará sentido quando estão em causa verdadeiros
interesses públicos particularmente
relevantes ao ponto de permitir ao Ministério Público fazer uso de
mecanismos destinados á protecção de direitos subjectivos na prossecução da
defesa da legalidade e do interesse público.
Um novo problema surge: como
compatibilizar o pressuposto processual da legitimidade do Ministério Público
com os pressupostos relativos ao comportamento da Administração? Há pois uma contradição
legislativa entre o objecto e a função do processo e, igualmente, entre
legitimidade que se evidência nas omissões administrativas na medida em que
tanto as normas de processo como as de procedimento fazem depender a relevância
jurídica do sistema da Administração de um pedido de um particular. Vasco
Pereira da Silva defende que a melhor forma de compatibilizar os pressupostos
processuais da legitimidade com os do comportamento da Administração é a de
tomar como admissível a intervenção do Ministério Público unicamente quando
tenha sido emitido um acto administrativo de conteúdo negativo; ficam de fora
as situações de omissão administrativa.
Um outro lado da doutrina[3],
admite as duas situações afirmando que o Ministério Público usufruiria de
legitimidade nas mesmas dando apenas relevância aos requisitos da omissão juridicamente
relevante. De outra forma, há doutrina[4]
que remete o problema para a necessidade de respeito, ou não, do princípio da
provocação (quando a Administração tenha
sido interpelada para a emissão de um acto administrativo mesmo quando se trate
de um acto cuja pratica seja imposta directamente pela lei). Mais uma vez,
Vasco Pereira da Silva remete para o ponto essencial: é a legitimidade que deve
ser interpretada segundo a função e o objecto do processo, não o contrário!
Deve, assim, considerar-se que a
intervenção do actor público e do actor popular nos pedidos de condenação
apenas ocorre nas situações que versem sobre um acto de conteúdo negativo e não
de uma mera omissão administrativa, na medida em que, do ponto de vista objectivo
de defesa da legalidade e do interesse público, afigura-se mais grave a emissão
de um acto ilegal do que a ocorrência de uma omissão de comportamento ilegal
Bibliografia:
- SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo”; 2ª edição, Almedina, 2009
- CORREIA, José Manuel Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Lisboa. 2005
- CORREIA,
Sérvulo, A reforma do contencioso
administrativo e as funções do Ministério Público, In: Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, 2001 - vol. 1
p. 295-330
- Procuradoria-Geral da República: www.pgr.pt
´
Cátia Isabel Correia Rosa Miguel de Matos
Nº 19553, subturma 1
[1] Artigo 66º/1
do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
[2]
Artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos: independentemente de ter interesse pessoal na demanda (…) o Ministério
Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei,
em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente
protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do
território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das
Regiões Autónomas e das autarquias locais.
[3] Mario
Aroso de Almeida
[4] Viera de
Andrade
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