Os
contra-interessados surgem referidos em três disposições do Código de Processo
nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA), são elas o art. 10º/1, art.57º
e 68º/2. Cabe analisar a relevância que esta figura tem na tramitação
processual administrativa, nomeadamente o seu fundamento e modo de
determinação.
O tradicional Direito
Administrativo tendia a configurar as relações administrativas como bilaterais,
entre a Administração e o destinatário directo e determinado. No entanto, a
evolução deste ramo de direito, conduz o moderno Direito Administrativo a
ampliar o âmbito do terceiro, advogando, para a justiça administrativa, o que
SÉRVULO CORREIA define como “esquema ternário imperfeito”. Efectivamente, o Direito
Administrativo é cada vez mais vocacionado para as chamadas relações jurídicas
multipolares, principalmente nos sectores do ambiente, património, economia e
urbanístico. As relações administrativas multipolares, como advoga MÁRIO AROSO
DE ALMEIDA, envolvem “ um mais ou menos alargado de pessoas cujos interesses
são afectados pela conduta da administração”.
Estas, são
relações que se estabelecem entre a Administração e os destinatários directos
da sua actuação, mas cuja actividade administrativa concede direitos
subjectivos ou interesses legalmente protegidos a sujeitos, que não os
destinatários imediatos. Ora, tendo estes um direito ou interesse que deve ser
tutelado, é função do Contencioso Administrativo fornecer o seu modo de
actuação nos processos que possam ser intentados pelo particular contra a Administração.
Assim, o
art.10º/1 CPTA dispõe que têm legitimidade passiva “todas as pessoas ou
entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Trata-se de uma
referência directa aos contra-interessados. É o que sucede quando, por exemplo,
um particular quer intentar uma acção de anulação de um acto administrativo.
Dado o carácter multipolar da relação jurídica estabelecida entre esse
particular e a Administração, em termos de direito substantivo, existem
sujeitos que retiram benefícios do acto que pretende ser anulado. São, como
refere VASCO PEREIRA DA SILVA “directamente prejudicados” pela procedência do
pedido. Assim, o CPTA manda no seu art 10º/1 que a acção seja proposta contra a
Administração e os contra-interessados. Esta solução legislativa está
consagrada constitucionalmente, estando directamente relacionada com a tutela
jurisdicional efectiva, fulcral num Estado de Direito.
No que
respeita ao fundamento da intervenção processual dos contra-interessados existe
um duplo fundamento: subjectivista e objectivista. A função subjectivista tem
por base a defesa dos interesses próprios dos contra-interessados. Só pelo
facto de serem chamados ao processo, se assegura a tutela dos interesses que
podem ser negados com a proferição de uma sentença. Assim, a função descrita
está relacionada com o art.20º e 268º/4 CRP: Princípio da tutela jurisdicional
efectiva. Tendo os contra-interessados um direito subjectivo, estes têm direito
de acesso à justiça, mas mais que isso, têm de existir meios processuais
adequados à garantia do seu direito. Além deste, são igualmente relevantes os
princípios do contraditório e logo o princípio de igualdade das partes. Tal
facto, é facilmente compreensível: se a acção intentada pelo autor visa anular
um acto administrativo ou condenar a administração à pratica de um acto que, se
verificado, lesa direitos ou interesses de sujeitos, estes, têm que ser
chamados ao processo. Caso contrário, a tutela do seu direito, consagrada
constitucionalmente, não seria efectivizada. Em conclusão, refira-se que o chamamento dos
contra-interessados ao processo, na sua função subjetiva, é uma decorrência dos
princípios constitucionais do acesso à justiça e da tutela jurisdicional
efectiva do direito e que consagra o princípio processual da igualdade das
partes, através do principio do contraditório.
Concluída a
analise da função subjectiva, cabe agora uma síntese da função objectiva da
intervenção dos contra-interessados no processo. Este âmbito prende-se com o
facto de que, se preferida uma decisão judicial, num processo ao qual os
contra-interessados não foram chamados, a decisão não terá efeitos sobre estes. Sem o chamamento ao processo, estes
sujeitos, não estão abrangidos pela esfera de eficácia subjectiva do caso
julgado, pelo que a sentença não lhes será oponível. O entendimento do Supremo
Tribunal Administrativo, seguido pela Doutrina, entende que, mesmo que a
sentença tenha eficácia erga omnes,
não terá efeito sobre os contra-interessados, uma vez que os direitos
desrespeitados no processo são direitos fundamentais de acesso à justiça e da
tutela jurisdicional efectiva, que devem impreterivelmente ser atendidos. A
eficácia subjectiva do caso julgado está assim relacionada com o número de
contra-interessados que foram chamados ao processo, pois só quanto a estes será
eficaz. Assim, considera PAULO OTERO, na esteira de DANIELE CORLETTO que “ a
possibilidade de intervenção processual dos contra-interessados funciona como
instrumento de extensão da eficácia do caso julgado”. Esta concepção justifica a imposição
legislativa de litisconsórcio necessário passivo.
Em processo
administrativo, o exemplo paradigmático de litisconsórcio necessário passivo
diz respeito aos contra-interessados. O art.57º CPTA estatui que “ para além da entidade autora do acto
impugnado, são obrigatoriamente demandados os contra-interessados”. Este
artigo regula o processo de impugnação do acto administrativo. Existe também
uma norma equivalente para o processo de condenação à prática de acto
administrativo devido, que manda que os titulares de interesses contrários aos
do autor sejam demandados, o art. 68º/2 CPTA. Ambos, impõem um ónus processual
ao autor: a demanda dos contra-interessados, devendo constar da petição inicial
a identificação e residência dos mesmos,
em conformidade com o art. 78º/2 f). A falta ou erro no incumprimento deste
ónus constitui uma ilegitimidade passiva que obsta ao prosseguimento do
processo, segundo o art. 89º/1 f). FRANCISCO PAES MARQUES discute a
possibilidade de a identificação de todos os contra-interessados constituir uma
oneração excessiva do autor, acabando por concluir que a tutela jurisdicional
efectiva do autor não é afectada, uma vez que o CPTA prevê mecanismos para
corrigir eventuais faltas dos elementos necessários, constantes nos art. 88º e
89º do mesmo. Este problema, é também
suscitado por DANIELE CORLETTO, que considera que uma norma neste sentido é
inconstitucional, por constituir um sacrifício que poderia ter sido evitado. Esta
questão, é essencialmente um problema de direito comparado, discutindo-se a
possibilidade de existência, no contencioso português e italiano, de uma
intervenção oficiosa do juiz para correção do ónus do autor, tal como sucede no
ordenamento jurídico alemão. Efectivamente, a tendência actual para a expansão
dos sujeitos que se afiguram contra-interessados num processo fará com que a
oneração do autor tenha cada vez mais relevância, o que irá enfraquecer a
tutela do seu direito.
Caso o
litisconsórcio não fosse imposto por lei, a Doutrina defende que ele teria
sempre a natureza de um litisconsórcio natural, uma vez que a unicidade do
sistema e o exercício eficaz da função jurisdicional, com o intuito de evitar
decisões contraditórias e de garantir o
efeito útil da sentença, impunham que se chamassem ao processo todos os
sujeitos sem os quais não se poderia obter uma sentença definitiva sobre o
objecto do litígio. Assim, a utilidade plena da sentença depende da máxima
efectivação subjectiva das decisões. Este facto, prende-se ainda com a função
objectiva da intervenção dos contra-interessados.
No
entendimento de PAULO OTERO, a existência de litisconsórcio necessário passivo
e a consequente ilegalidade decorrente do incumprimento do ónus processual por
parte do autor, traduzem o predomínio da função objectiva. Argumenta para o
efeito que o que se pretende assegurar primeiramente é o efeito útil da
decisão, com vista a uma resolução definitiva do litígio, uma vez que, como
referido anteriormente, ao contra-interessado não demandado, a sentença não é
oponível.
De notar que o
facto de parte da Doutrina advogar que existe uma preocupação especial de
natureza objectiva, não põe em causa a natureza mista da intervenção referida,
e a nosso ver, tal não poderia acontecer uma vez que, também a natureza
subjectiva da intervenção é consagrada constitucionalmente.
Discutido na
Doutrina é o facto de os contra-interessados constituírem uma parte processual
ou, pelo contrário se enquadrarem no conceito de terceiro. Tal divergência
doutrinária deve-se ao facto do CPTA não determinar qual o regime aplicável aos
contra-interessados. No entendimento de MARIO AROSO DE ALMEIDA, os contra-interessados
constituem uma verdadeira parte processual. Para tal invoca os art.10º/1, 57º e
68º/2 CPTA, defendendo, também que formam um litisconsórcio necessário passivo
e unitário com a entidade pública. Esta tese é também advogada por VIEIRA DE
ANDRADE, afirmando que o facto do CPTA
exigir a formação de um litisconsórcio pressupõe uma equiparação da
posição dos contra-interessados à posição da Administração, constituindo assim
uma parte processual. Tal facto, pelo princípio da igualdade das partes, coloca
os contra-interessados numa posição de paridade com o autor da acção. Sendo
partes, são abrangidos pelos poderes dispositivos que a lei lhes concede.
VASCO PEREIRA
DA SILVA considera que o CPTA possibilita o tratamento desta figura como sendo
parte processual, devido ao chamamento obrigatório dos contra-interessados, mas
por outro lado o próprio CPTA cria a dúvida pela adopção da denominação de “contra-interessados”
dado que este termo é característico de
uma lógica bilateralista clássica.
PAULO OTERO a
propósito da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo DL nº267/85,
de 16 de Julho, advoga que esta figura ocupava uma posição de terceiros no
âmbito do processo administrativo. Fundava-se, para o efeito, nos art. 36º/1 b)
e 40º/1 b) da referida lei.
O CPTA
estabelece um conjunto de actos processuais que podem ser praticados pelos
contra-interessados, por exemplo, os arts. 83º/5, 83º; 87º/1 b) e 91º/2 e 4.
Ora todos estes exemplos expressam actos
que extravasam o domínio de meros terceiros no processo administrativo, pelo
que, a nosso ver, a doutrina caminhará para um entendimento dos
contra-interessados como sujeitos processuais. São-lhes conferidos por lei
poderes que se aproximam dos actos processuais das partes, como espelha a
possibilidade de contestação do art.83º CPTA.
Outra questão
que cabe analisar é o modo de determinação dos contra-interessados. Dado que o
autor tem o ónus de indicar e demandar os sujeitos que tenham interesses contrapostos
aos seus, para uma efectivação desse ónus é indispensável que se identifiquem
quais os sujeitos sobre os quais recai essa obrigatoriedade. Esta necessidade
de determinação surge por existirem sujeitos que são afectados com o
proferimento da sentença, e pelo facto de esse prejuízo decorrer directamente
da sentença.
Existem três
critérios tradicionais de determinação dos contra-interessados: o critério do
acto impugnado, o critério da posição substantiva do terceiro e o critério dos
efeitos da sentença. O primeiro e segundo critérios mencionados, prendem-se com
a natureza subjectiva ou objectiva do Contencioso Administrativo, o último
relaciona-se com um juízo de prognose que se torna necessário para aferir as
consequências da sentença que será proferida. Assim, o critério do acto
impugnado é de cariz obejctivista, vigorando em ordenamentos jurídicos com este
pendor, como é o caso do italiano. Consequentemente, é dada a primazia ao acto
administrativo, considerando contra-interessados, todos os sujeitos que têm
interesse na conservação do mesmo. Ora, uma crítica a este critério é que não
atende à posição dos contra-interessados quando o processo não tem por base a
impugnação de um acto administrativo, mas a condenação da Administração à
pratica de um acto administrativo devido.
O critério da
posição substantiva do terceiro, atende à vertente subjectiva, determinando que
são contra-interessados, todos os sujeitos que são titulares de um direito
subjectivo ou de um interesse legalmente
protegido de “sinal contrário” ao interesse do autor. Conclui-se assim que
existe uma correspondência entre a relação jurídica material e a
processual. Este critério é perfilhado
por ALEXANDRA LEITÃO.
Um último
critério é o dos efeitos da sentença, na qual os contra-interessados se aferem
por um juízo de prognose que tem o intuito de determinar quais os sujeitos que
serão directamente prejudicados com o proferimento da sentença. Esta tese é
adoptada por PAULO OTERO e FRANCISCO PAES MARQUES. O primeiro autor, refere um
duplo juízo de prognose: partindo do conteúdo do acto impugnado projectar uma
decisão e as consequências da sua execução para, na sua perspetiva, terceiros;
e uma segunda fase, a analise deve ter por base a petição inicial e seus
fundamentos para analisar se o prosseguimento do processo afectará directamente
terceiros. Em primeiro lugar, o juízo é feito pelo autor, mas tal consideração
é seguida por um juízo de prognose que deverá ser realizado pelo juiz e pelo
Ministério Público.
Apesar das
dificuldades inerentes a um juízo de prognose feita nestes termos, considero
que será o critério que deve ter primazia. Reitero tal entendimento pelo facto
da demanda dos contra-interessados, só é justificada pela existência de um
direito subjectivo que estes possuem derivado do acto ou omissão da
administração objecto de litígio, mas não existerá sentido útil em chamar ao
processo as partes em causa se não se verificar um efectivo prejuízo provocado
diretamente pela sentença que será proferida.
O CPTA, por
sua vez, adopta um critério misto em que conjuga as diferentes teses atrás
mencionadas. Esta consideração estende o âmbito dos contra interessados indo de
encontro à relevância que esta figura encontra no moderno Direito
Administrativo.
De concluir
com o presente artigo que a evolução da figura dos contra-interessados no âmbito do Contencioso
Administrativo gera algumas zonas de penumbra que são inclusive transcritas
para o CPTA. Estas dúvidas são fundamento para discussões doutrinárias que
devem ser tidas em conta na análise do tema.
Os
contra-interessados ganham cada vez mais relevo nas relações administrativas
modernas, pelo que há necessidade de assegurar o acesso destes sujeitos à
justiça e de garantir a sua tutela jurisdicional. Esta garantia é feita pela
intervenção dos contra-interessados no
processo, o que constitui um ónus processual do autor da petição inicial. Este
ónus justifica-se pela necessidade de unificação da ordem jurídica, devendo as
decisões judiciais proferidas resolver a questão de forma definitiva. Os
critérios de determinação dos contra-interessados, são fórmulas que devem ser
utilizadas pelo autor para identificar os contra-interessados, condição
essencial para dar provimento ao processo que iniciou, segundo o art. 89º/1 f)
CPTA. O CPTA, apresenta, no entanto,
meios para correcção da falta ou erro na identificação. De referir, por fim,
que o CPTA atenta para a necessidade de intervenção desta figura, quer nos
processos de impugnação de acto administrativo, quer nos processos de
condenação à pratica de um acto devido pela administração.
A natureza dos
contra-interessados como parte ou terceiro no processo administrativo, é
discutida. Para tal contribuí o facto de esta figura não possuir um regime
próprio no CPTA, no entanto a tendência, é para, acompanhando o crescimento
desta figura no plano do Contencioso Administrativo, defini-la como verdadeira
parte processual.
Bibliografia:
Almeida, Mário
Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2013
- O Novo
Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2007
Marques, Francisco
Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no contencioso Administrativo,
Almedina, Coimbra, 2007
Silva, Vasco
Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre
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Otero, Paulo, “
Os Contra-interessados em Contencioso Administrativos: fundamento, função e
determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento
concursal”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra
Editora, 2001
Ana Simões Esteves
Nº 20780
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