domingo, 20 de outubro de 2013

Os contra-interessados em Contencioso Administrativo


Os contra-interessados surgem referidos em três disposições do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA), são elas o art. 10º/1, art.57º e 68º/2. Cabe analisar a relevância que esta figura tem na tramitação processual administrativa, nomeadamente o seu fundamento e modo de determinação.

O tradicional Direito Administrativo tendia a configurar as relações administrativas como bilaterais, entre a Administração e o destinatário directo e determinado. No entanto, a evolução deste ramo de direito, conduz o moderno Direito Administrativo a ampliar o âmbito do terceiro, advogando, para a justiça administrativa, o que SÉRVULO CORREIA define como “esquema ternário imperfeito”. Efectivamente, o Direito Administrativo é cada vez mais vocacionado para as chamadas relações jurídicas multipolares, principalmente nos sectores do ambiente, património, economia e urbanístico. As relações administrativas multipolares, como advoga MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, envolvem “ um mais ou menos alargado de pessoas cujos interesses são afectados pela conduta da administração”.

Estas, são relações que se estabelecem entre a Administração e os destinatários directos da sua actuação, mas cuja actividade administrativa concede direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos a sujeitos, que não os destinatários imediatos. Ora, tendo estes um direito ou interesse que deve ser tutelado, é função do Contencioso Administrativo fornecer o seu modo de actuação nos processos que possam ser intentados pelo particular contra a Administração.

Assim, o art.10º/1 CPTA dispõe que têm legitimidade passiva “todas as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Trata-se de uma referência directa aos contra-interessados. É o que sucede quando, por exemplo, um particular quer intentar uma acção de anulação de um acto administrativo. Dado o carácter multipolar da relação jurídica estabelecida entre esse particular e a Administração, em termos de direito substantivo, existem sujeitos que retiram benefícios do acto que pretende ser anulado. São, como refere VASCO PEREIRA DA SILVA “directamente prejudicados” pela procedência do pedido. Assim, o CPTA manda no seu art 10º/1 que a acção seja proposta contra a Administração e os contra-interessados. Esta solução legislativa está consagrada constitucionalmente, estando directamente relacionada com a tutela jurisdicional efectiva, fulcral num Estado de Direito.

No que respeita ao fundamento da intervenção processual dos contra-interessados existe um duplo fundamento: subjectivista e objectivista. A função subjectivista tem por base a defesa dos interesses próprios dos contra-interessados. Só pelo facto de serem chamados ao processo, se assegura a tutela dos interesses que podem ser negados com a proferição de uma sentença. Assim, a função descrita está relacionada com o art.20º e 268º/4 CRP: Princípio da tutela jurisdicional efectiva. Tendo os contra-interessados um direito subjectivo, estes têm direito de acesso à justiça, mas mais que isso, têm de existir meios processuais adequados à garantia do seu direito. Além deste, são igualmente relevantes os princípios do contraditório e logo o princípio de igualdade das partes. Tal facto, é facilmente compreensível: se a acção intentada pelo autor visa anular um acto administrativo ou condenar a administração à pratica de um acto que, se verificado, lesa direitos ou interesses de sujeitos, estes, têm que ser chamados ao processo. Caso contrário, a tutela do seu direito, consagrada constitucionalmente, não seria efectivizada.  Em conclusão, refira-se que o chamamento dos contra-interessados ao processo, na sua função subjetiva, é uma decorrência dos princípios constitucionais do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efectiva do direito e que consagra o princípio processual da igualdade das partes, através do principio do contraditório.

Concluída a analise da função subjectiva, cabe agora uma síntese da função objectiva da intervenção dos contra-interessados no processo. Este âmbito prende-se com o facto de que, se preferida uma decisão judicial, num processo ao qual os contra-interessados não foram chamados, a decisão não terá efeitos sobre  estes. Sem o chamamento ao processo, estes sujeitos, não estão abrangidos pela esfera de eficácia subjectiva do caso julgado, pelo que a sentença não lhes será oponível. O entendimento do Supremo Tribunal Administrativo, seguido pela Doutrina, entende que, mesmo que a sentença tenha eficácia erga omnes, não terá efeito sobre os contra-interessados, uma vez que os direitos desrespeitados no processo são direitos fundamentais de acesso à justiça e da tutela jurisdicional efectiva, que devem impreterivelmente ser atendidos. A eficácia subjectiva do caso julgado está assim relacionada com o número de contra-interessados que foram chamados ao processo, pois só quanto a estes será eficaz. Assim, considera PAULO OTERO, na esteira de DANIELE CORLETTO que “ a possibilidade de intervenção processual dos contra-interessados funciona como instrumento de extensão da eficácia do caso julgado”.  Esta concepção justifica a imposição legislativa de litisconsórcio necessário passivo.

Em processo administrativo, o exemplo paradigmático de litisconsórcio necessário passivo diz respeito aos contra-interessados. O art.57º CPTA estatui que “ para além da entidade autora do acto impugnado, são obrigatoriamente demandados os contra-interessados”. Este artigo regula o processo de impugnação do acto administrativo. Existe também uma norma equivalente para o processo de condenação à prática de acto administrativo devido, que manda que os titulares de interesses contrários aos do autor sejam demandados, o art. 68º/2 CPTA. Ambos, impõem um ónus processual ao autor: a demanda dos contra-interessados, devendo constar da petição inicial  a identificação e residência dos mesmos, em conformidade com o art. 78º/2 f). A falta ou erro no incumprimento deste ónus constitui uma ilegitimidade passiva que obsta ao prosseguimento do processo, segundo o art. 89º/1 f). FRANCISCO PAES MARQUES discute a possibilidade de a identificação de todos os contra-interessados constituir uma oneração excessiva do autor, acabando por concluir que a tutela jurisdicional efectiva do autor não é afectada, uma vez que o CPTA prevê mecanismos para corrigir eventuais faltas dos elementos necessários, constantes nos art. 88º e 89º do mesmo.  Este problema, é também suscitado por DANIELE CORLETTO, que considera que uma norma neste sentido é inconstitucional, por constituir um sacrifício que poderia ter sido evitado. Esta questão, é essencialmente um problema de direito comparado, discutindo-se a possibilidade de existência, no contencioso português e italiano, de uma intervenção oficiosa do juiz para correção do ónus do autor, tal como sucede no ordenamento jurídico alemão. Efectivamente, a tendência actual para a expansão dos sujeitos que se afiguram contra-interessados num processo fará com que a oneração do autor tenha cada vez mais relevância, o que irá enfraquecer a tutela do seu  direito.

Caso o litisconsórcio não fosse imposto por lei, a Doutrina defende que ele teria sempre a natureza de um litisconsórcio natural, uma vez que a unicidade do sistema e o exercício eficaz da função jurisdicional, com o intuito de evitar decisões contraditórias e  de garantir o efeito útil da sentença, impunham que se chamassem ao processo todos os sujeitos sem os quais não se poderia obter uma sentença definitiva sobre o objecto do litígio. Assim, a utilidade plena da sentença depende da máxima efectivação subjectiva das decisões. Este facto, prende-se ainda com a função objectiva da intervenção dos contra-interessados.

No entendimento de PAULO OTERO, a existência de litisconsórcio necessário passivo e a consequente ilegalidade decorrente do incumprimento do ónus processual por parte do autor, traduzem o predomínio da função objectiva. Argumenta para o efeito que o que se pretende assegurar primeiramente é o efeito útil da decisão, com vista a uma resolução definitiva do litígio, uma vez que, como referido anteriormente, ao contra-interessado não demandado, a sentença não é oponível.

De notar que o facto de parte da Doutrina advogar que existe uma preocupação especial de natureza objectiva, não põe em causa a natureza mista da intervenção referida, e a nosso ver, tal não poderia acontecer uma vez que, também a natureza subjectiva da intervenção é consagrada constitucionalmente.

Discutido na Doutrina é o facto de os contra-interessados constituírem uma parte processual ou, pelo contrário se enquadrarem no conceito de terceiro. Tal divergência doutrinária deve-se ao facto do CPTA não determinar qual o regime aplicável aos contra-interessados. No entendimento de MARIO AROSO DE ALMEIDA, os contra-interessados constituem uma verdadeira parte processual. Para tal invoca os art.10º/1, 57º e 68º/2 CPTA, defendendo, também que formam um litisconsórcio necessário passivo e unitário com a entidade pública. Esta tese é também advogada por VIEIRA DE ANDRADE, afirmando que o facto do CPTA  exigir a formação de um litisconsórcio pressupõe uma equiparação da posição dos contra-interessados à posição da Administração, constituindo assim uma parte processual. Tal facto, pelo princípio da igualdade das partes, coloca os contra-interessados numa posição de paridade com o autor da acção. Sendo partes, são abrangidos pelos poderes dispositivos que a lei lhes concede.

VASCO PEREIRA DA SILVA considera que o CPTA possibilita o tratamento desta figura como sendo parte processual, devido ao chamamento obrigatório dos contra-interessados, mas por outro lado o próprio CPTA cria a dúvida pela adopção da denominação de “contra-interessados” dado que  este termo é característico de uma lógica bilateralista clássica.

PAULO OTERO a propósito da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo DL nº267/85, de 16 de Julho, advoga que esta figura ocupava uma posição de terceiros no âmbito do processo administrativo. Fundava-se, para o efeito, nos art. 36º/1 b) e 40º/1 b) da referida lei.

O CPTA estabelece um conjunto de actos processuais que podem ser praticados pelos contra-interessados, por exemplo, os arts. 83º/5, 83º; 87º/1 b) e 91º/2 e 4. Ora  todos estes exemplos expressam actos que extravasam o domínio de meros terceiros no processo administrativo, pelo que, a nosso ver, a doutrina caminhará para um entendimento dos contra-interessados como sujeitos processuais. São-lhes conferidos por lei poderes que se aproximam dos actos processuais das partes, como espelha a possibilidade de contestação do art.83º CPTA.

Outra questão que cabe analisar é o modo de determinação dos contra-interessados. Dado que o autor tem o ónus de indicar e demandar os sujeitos que tenham interesses contrapostos aos seus, para uma efectivação desse ónus é indispensável que se identifiquem quais os sujeitos sobre os quais recai essa obrigatoriedade. Esta necessidade de determinação surge por existirem sujeitos que são afectados com o proferimento da sentença, e pelo facto de esse prejuízo decorrer directamente da sentença.

Existem três critérios tradicionais de determinação dos contra-interessados: o critério do acto impugnado, o critério da posição substantiva do terceiro e o critério dos efeitos da sentença. O primeiro e segundo critérios mencionados, prendem-se com a natureza subjectiva ou objectiva do Contencioso Administrativo, o último relaciona-se com um juízo de prognose que se torna necessário para aferir as consequências da sentença que será proferida. Assim, o critério do acto impugnado é de cariz obejctivista, vigorando em ordenamentos jurídicos com este pendor, como é o caso do italiano. Consequentemente, é dada a primazia ao acto administrativo, considerando contra-interessados, todos os sujeitos que têm interesse na conservação do mesmo. Ora, uma crítica a este critério é que não atende à posição dos contra-interessados quando o processo não tem por base a impugnação de um acto administrativo, mas a condenação da Administração à pratica de um acto administrativo devido.

O critério da posição substantiva do terceiro, atende à vertente subjectiva, determinando que são contra-interessados, todos os sujeitos que são titulares de um direito subjectivo ou de um interesse  legalmente protegido de “sinal contrário” ao interesse do autor. Conclui-se assim que existe uma correspondência entre a relação jurídica material e a processual.  Este critério é perfilhado por ALEXANDRA LEITÃO.

Um último critério é o dos efeitos da sentença, na qual os contra-interessados se aferem por um juízo de prognose que tem o intuito de determinar quais os sujeitos que serão directamente prejudicados com o proferimento da sentença. Esta tese é adoptada por PAULO OTERO e FRANCISCO PAES MARQUES. O primeiro autor, refere um duplo juízo de prognose: partindo do conteúdo do acto impugnado projectar uma decisão e as consequências da sua execução para, na sua perspetiva, terceiros; e uma segunda fase, a analise deve ter por base a petição inicial e seus fundamentos para analisar se o prosseguimento do processo afectará directamente terceiros. Em primeiro lugar, o juízo é feito pelo autor, mas tal consideração é seguida por um juízo de prognose que deverá ser realizado pelo juiz e pelo Ministério Público.

Apesar das dificuldades inerentes a um juízo de prognose feita nestes termos, considero que será o critério que deve ter primazia. Reitero tal entendimento pelo facto da demanda dos contra-interessados, só é justificada pela existência de um direito subjectivo que estes possuem derivado do acto ou omissão da administração objecto de litígio, mas não existerá sentido útil em chamar ao processo as partes em causa se não se verificar um efectivo prejuízo provocado diretamente pela sentença que será proferida.

O CPTA, por sua vez, adopta um critério misto em que conjuga as diferentes teses atrás mencionadas. Esta consideração estende o âmbito dos contra interessados indo de encontro à relevância que esta figura encontra no moderno Direito Administrativo.

De concluir com o presente artigo que a evolução da figura dos  contra-interessados no âmbito do Contencioso Administrativo gera algumas zonas de penumbra que são inclusive transcritas para o CPTA. Estas dúvidas são fundamento para discussões doutrinárias que devem ser tidas em conta na análise do tema.

Os contra-interessados ganham cada vez mais relevo nas relações administrativas modernas, pelo que há necessidade de assegurar o acesso destes sujeitos à justiça e de garantir a sua tutela jurisdicional. Esta garantia é feita pela intervenção dos contra-interessados  no processo, o que constitui um ónus processual do autor da petição inicial. Este ónus justifica-se pela necessidade de unificação da ordem jurídica, devendo as decisões judiciais proferidas resolver a questão de forma definitiva. Os critérios de determinação dos contra-interessados, são fórmulas que devem ser utilizadas pelo autor para identificar os contra-interessados, condição essencial para dar provimento ao processo que iniciou, segundo o art. 89º/1 f) CPTA.  O CPTA, apresenta, no entanto, meios para correcção da falta ou erro na identificação. De referir, por fim, que o CPTA atenta para a necessidade de intervenção desta figura, quer nos processos de impugnação de acto administrativo, quer nos processos de condenação à pratica de um acto devido pela administração.

A natureza dos contra-interessados como parte ou terceiro no processo administrativo, é discutida. Para tal contribuí o facto de esta figura não possuir um regime próprio no CPTA, no entanto a tendência, é para, acompanhando o crescimento desta figura no plano do Contencioso Administrativo, defini-la como verdadeira parte processual.

 

Bibliografia:

Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2013

- O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra,  2007

Marques, Francisco Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no contencioso Administrativo, Almedina, Coimbra, 2007

Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, Almedina, Coimbra, 2009

Otero, Paulo, “ Os Contra-interessados em Contencioso Administrativos: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001

 

Ana Simões Esteves

Nº 20780

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