PRO ACTIONE
A vitória do mérito sobre a forma
O princípio do favorecimento do processo (ou princípio pro actione) é
um princípio processual geral, fruto direto da dimensão hermenêutica da ciência
jurídica na qual o interprete-aplicador, em face das soluções presentes nas
normas legais, constrói o objeto do próprio Direito.
O pro actione tem as suas raízes na Lei Fundamental, nomeadamente no
artigo 20.º onde se prevê o acesso efetivo ao direito e aos tribunais. Este
direito fundamental, concretizado na legislação administrativa no artigo 2.º
CPTA, assegura assim que a interpretação e a aplicação das normas processuais
será feita com a dupla finalidade de (i) favorecer o acesso aos tribunais para a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e (ii) evitar situações
de denegação de justiça por excesso de formalismo (artigos 20.º e 268.º/4 e 5
CRP).
Sendo o princípio da tutela jurisdicional efetiva uma bússola norteadora
da justiça administrativa veio o legislador, no artigo 7º do CPTA ("promoção
do acesso à justiça"), acolher o pro actione impondo, deste modo, um
verdadeiro princípio interpretativo preconizador da interpretação das normas
processuais no sentido da promoção da emissão de “pronúncias sobre o mérito das
pretensões formuladas”.
Ora, nesta busca pela verdade material foram essenciais as reformas de
1984/85 (que iniciou o processo) e 2002/04 (que o concluiu), das quais resultou
a elevação do mérito acima da forma, alterando-se assim de modo irremediável (para
melhor) o paradigma do Contencioso Administrativo existente até àquelas datas. A
este propósito são bastante ilustrativas as atuais normas instrutórias sobre a
possibilidade de suprimento ou correção de deficiências e irregularidades
formais (artigos 4.º/3 e 4, 12.º/3 e 4, 14.º, 88.º, 89.º/2 e 3, 114.º/4 CPTA)
ou as referentes ao recurso jurisdicional contra decisões, também elas, formais
(artigo 142.º/3-d CPTA).
O julgador tem assim uma larga faixa de manobra no suprimento oficioso
de faltas de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, num claro piscar
de olhos ao princípio do aproveitamento do ato administrativo (continuidade do
processo) em detrimento da sua mera anulação (absolvição da instância) o que,
ao administrado, vem garantir (i) a tutela da sua posição substantiva em face
de incumprimentos procedimentais sanáveis e (ii) o acesso efetivo a uma
sentença com força de caso julgado que aprecie a totalidade das pretensões por
si formuladas (artigos 268.º/4 e 5 CRP, 2.º e 7º CPTA). À Administração,
impede-se a subversão da posição jurídica material dos administrados, impondo-se-lhe
que não se quede ante questões meramente formais, o que nos leva, obrigatoriamente,
ao encontro dos princípios vitais do próprio Direito Administrativo,
nomeadamente aos da prossecução do interesse público, da legalidade, da
justiça, da imparcialidade (266.º CRP) e da colaboração com os particulares (7º
CPA). Em todos eles o pro actione realiza uma maximização.
Mas não se retire, do que foi dito até aqui, que a forma é o carrasco
do contencioso e o pro actione a derradeira luz ao fundo do túnel. A
formalidade é criada pela lei precisamente para garantir que o pedido terá uma
tramitação sem quaisquer percalços, tutelando-se assim o acesso à defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados. Assim sendo, o
mais importante e fulcral âmbito de aplicação do pro actione é precisamente
onde o formalismo extravasa a mera garantia de uma correta tramitação do
pedido, constituindo um entrave ao acesso à justiça administrativa,
denegando-a.
Testando agora o pro actione no encontro com os demais princípios e
regras norteadores do processo administrativo, questionamos se, em face do
exposto, não terá aquele legitimidade para se sobrepor a estes, quiçá até
violando-os. Tendo especialmente como referência os outros princípios que se dispõem
tutelar o favorecimento do acesso efetivo à justiça, chegamos à conclusão de
que a admissão, sem mais, da sobreposição do pro actione teria, como direta
consequência, a própria denegação do princípio do favorecimento do processo. Para
concretizar esta ideia, pense-se no princípio da economia e da celeridade
processual, basilar na “aplicação concreta das normas processuais e na obtenção
de uma decisão em tempo razoável”, vertido no artigo 6.º/1 CESDH. A ingerência
do pro actione levaria à completa descaracterização de determinados e muito específicos
meios processuais como os atinentes às providências cautelares, por exemplo. Por
isso mesmo, o artigo 7.º CPTA reserva a sua intervenção apenas nas situações em
que existam fundadas dúvidas sobre a interpretação ou integração das normas de
processo. Ante tais bifurcações (in dúbio...), deve apelar-se ao favorecimento
do processo através do conhecimento do mérito (...pro actione). Tal entendimento
é sufragado pelo Acórdão do STA de 30-04-2008 (“no âmbito da ponderação dos
pressupostos processuais, os princípios antiformalista, "pro actione"
e "in dubio pro favoritate instanciae" impõem uma interpretação que
se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional
efectiva. Assim, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas nesta área,
deve optar-se por aquela que favoreça a acção e assim se apresente como a mais
capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pelo autor”).
Fazendo o contraponto, na presença de soluções expressas na lei o princípio pro
actione vê reduzido o seu âmbito de aplicação. Veja-se o caso de certos
documentos serem absolutamente necessários à apreciação do pedido e da sua
falta, depois de conhecida oficiosamente e notificada ao particular, não ser
suprida. Neste caso, a Administração não está obrigada a dar seguimento ao
processo, cessando o seu dever legal de decidir (88.º/4 e 89.º/4 CPTA).
Importa, nesta questão, frisar ainda que tal favorecimento é feito por
relação ao processo – não ao pedido. Tal diferenciação pretende fazer
significar que não se favorece o Autor (âmbito subjetivo), mas sim o processo
tido como um todo orgânico (âmbito objetivo), preferindo-se a continuidade à
mera absolvição da instância numa clara concretização da garantia à tutela jurisdicional
efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos invocados na ação, leia-se,
das posições subjetivas dos particulares.
CÁTIA BREHM, N.º 20604
Monografia:
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina,
2013
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA, “A Justiça Administrativa (Lições)",
12ª Edição, Almedina, 2012
CORREIA, JOSÉ MANUEL SÉRVULO, " Cadernos de Justiça Administrativa”,
N.º 44, Março/Abril 2004
CORREIA, JOSÉ MANUEL SÉRVULO, "Cadernos de Justiça Administrativa”,
N.º 48, Novembro/Dezembro 2004
OLIVEIRA, MÁRIO ESTEVES e OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES, "Código de Processo
nos Tribunais Administrativos", Vol. I, Almedina, 2006
Analítico:
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30-04-2008
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-01-2009
Legislação:
Constituição da República Portuguesa, 2009, AAFDL
Código do Procedimento Administrativo, Almedina, 2013
Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2003
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