domingo, 20 de outubro de 2013

A Plena Jurisdição dos tribunais administrativos como reforço ao Princípio da Tutela Jurisdicional efectiva.

No modelo tradicional de contencioso administrativo, os tribunais administrativos tinham poderes limitados de pronúncia que se circunscreviam a proferir sentenças de nulidade ou anulação de actos administrativos e condenar a Administração Pública (doravante AP) “nos domínios específicos da responsabilidade por danos ou de relações constituídas por contrato administrativo”, consequentemente, nem todas as pretensões poderiam ser deduzidas perante estes tribunais, situação que colocava em causa a tutela jurisdicional efectiva, com previsão nos artigos 20.º e 268.º números 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), e artigo 2.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA).
Actualmente, o contencioso administrativo configura se num modelo subjectivista, tal evolução teve, nas palavras do Professor Sérvulo Correia[i], “como pólo dinamizador a garantia da tutela jurisdicional efectiva”, tal como está assente no artigo 268.º números 4 e 5 da CRP, os direitos e interesses legalmente protegidos em relação jurídica com a AP constituem objecto de uma garantia de tutela jurisdicional efectiva que se deverá estender a todos os litígios que envolvam os “administrados”, o que se traduz na possibilidade de serem deduzidas todas as pretensões fundadas no Direito contra a Administração perante os tribunais administrativos, consequentemente é necessário que à jurisdição administrativa seja reconhecido o poder de emitir todo o tipo de pronúncias contra a AP, julgando o cumprimento das normas e princípios que a vinculam. Este poder só encontra obstáculo nos domínios da conveniência e da oportunidade da actuação administrativa, como define o artigo 3.º número 1 do CPTA. Encontramos aqui a base da plena jurisdição administrativa.

No que se traduz a plena jurisdição administrativa?
Como resposta à evolução do contencioso administrativo, foi necessário reforçar os poderes dos tribunais administrativos.
·         Num primeiro plano, reforçaram-se os poderes de pronúncia, que aos tribunais são conferidos na tutela declarativa (no plano da tutela declarativa, o contencioso administrativo coloca à disposição formas processuais adequadas para fazer valer as pretensões de quem a ele se dirige e para obter uma decisão com força de caso julgado num prazo razoável).
                a) Poderes de pronúncia nos processos principais, em que são proferidas as decisões de mérito das causa:
- Declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, estabelecida no artigo 76.º do CPTA, que se inspira nas declarações de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral que são proferidas pelo Tribunal Constitucional.
- Declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso do interessado, artigo 73.º número 2 CPTA, utilizada nos casos em que os efeitos de uma norma não dependem de qualquer acto de aplicação, o lesado pode obter a desaplicação da norma através desta declaração. Neste caso temos uma declaração de ilegalidade, não a título incidental por que não há acto administrativo de aplicação, mas sim a título principal, o lesado pode reagir directamente contra a norma, possibilidade também constitucionalmente prevista, artigo 268.º número 5 CRP.
- Declaração de ilegalidade por omissão de normas necessárias, consagrada no artigo 77.º CPTA, trata-se de dar “exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação”, ou segundo os Professores Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral[ii], “dar cumprimento a determinações contidas em actos legislativos". O tribunal pode além de declarar esta ilegalidade, fixar o prazo dentro de qual a omissão deverá ser suprida, artigo 77.º número 2 CPTA.
               
                b) Poderes de pronúncia no âmbito de processos cautelares, em que são decretadas providências dirigidas a proteger a utilidade das decisões a proferir nos processos principais.
Anteriormente a tutela cautelar no contencioso administrativo limitava se à suspensão da eficácia de actos administrativos, mas actualmente, temos estabelecido no artigo 112.º número 1 CPTA, que “quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos, pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.”, os tribunais administrativos podem agora adoptar quaisquer providências cautelares que “sejam configuradas em função das características específicas das relações jurídico-administrativas”, segundo as palavras dos Professores Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral. Neste âmbito afiguram-se dois domínios principais:
 - Situações em que o administrado pretenda que a AP se abstenha de tomar certas medidas para prevenir situações prejudiciais geradas pela prática de operações administrativas de conteúdo material. Pressupõe que ainda não tenha sido emitido o acto administrativo.
- Situações em que o administrado pretende a obtenção de um efeito favorável através da prática ou não de um acto administrativo.
Apesar da larga margem para adopção de providências cautelares, o artigo 120.º CPTA dita importantes critérios de decisão nomeadamente, ponderando, através de interesses públicos e privados, os danos que resultarão da concessão da medida cautelar e os efeitos da sua recusa.

·         No plano dos poderes de condenação, são de salientar três poderes conferidos aos tribunais administrativos:
i) Poder de condenar a AP à prática de actos administrativos ilegalmente omitidos ou recusados, artigos 66.º e seguintes do CPTA.
Este poder tem previsão constitucional no artigo 268.º número 4 CRP “determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos”. O CPTA instituiu o processo da condenação à prática de acto devido, no âmbito da acção administrativa especial, independentemente do conteúdo do acto omitido ou recusado ser ou não vinculado. No exercício do referido poder, o tribunal poderá proferir pronúncias de simples condenação ao cumprimento do dever de decidir, de condenação ao dever de substituir o acto ilegalmente praticado por outro que não contenha as mesmas ilegalidades, ou de condenação à prática de acto devido de conteúdo vinculado.
ii) Poder de fixar o prazo dentro do qual a AP deve cumprir os seus deveres, previsto no artigo 3.º número 2 do CPTA.
Os tribunais administrativos “podem fixar oficiosamente um prazo para o cumprimento dos deveres que imponham à Administração aplicar”.
iii) Poder  de aplicar sanções pecuniárias compulsórias, artigo 3.º número 2 CPTA.
Estas sanções destinam-se a assegurar o cumprimento dos deveres impostos pelos tribunais administrativos à AP, e seguem as regras do artigo 169.º CPTA. Visam coagir a Administração a cumprir a suas obrigações de carácter infungível.

·         Por fim no plano dos poderes de execução, os tribunais administrativos passam a dispor do poder de adoptarem providências de execução das suas decisões, neste sentido temos o artigo 3.º número 3 CPTA formula a possibilidade “de emissão de sentença que produza os efeitos do acto administrativo devido, quando a prática e o conteúdo deste acto sejam estritamente vinculados”. Exemplo de sentença substitutiva de acto administrativo é a entrega judicial de coisa devida, artigo 167.º número 5 CPTA. Em situações mais complexas, os tribunais administrativos podem requerer a colaboração das autoridades e agentes da entidade administrativa obrigada para executarem as suas sentenças, e todas as entidades públicas estão obrigadas a colaborar sempre que for requerida a sua colaboração.

Para os Professores Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral[iii], este poder de emissão de sentença substitutiva de acto administrativo não prejudica o princípio da separação de poderes porque como os artigos 3.º/3 e 167.º/6 CPTA consagram, este poder circunscreve-se a casos de actos de conteúdo vinculado, isto é, em que hajam apenas duas possibilidades de decisão.
Como o Professor Vasco Pereira da Silva afirma[iv], “o objecto do processo não é nunca o acto administrativo, mas sim o direito do particular a uma determinada conduta da AP”.


Salvaguarda do princípio da separação de poderes
Com o aumento dos poderes dos tribunais administrativos houve uma crescente preocupação com o princípio da separação de poderes, até que ponto a acção jurisdicional não se estaria a imiscuir nos domínios da Administração Pública? Como o Professor Mário Aroso de Almeida refere, “existe a consciência de que a intervenção do poder judicial não deve ultrapassar os limites que decorrem da vontade expressa pelos órgãos democraticamente legitimados para o efeito”, é neste sentido que surge o artigo 3.º número 1 CPTA a firmar que as competências dos tribunais administrativos se cingem ao julgamento do cumprimento de normas e princípios jurídicos aos quais a AP está vinculada. Não se pretende que os tribunais “administrem” sobrepondo os seus juízos aos daqueles que foram democraticamente eleitos para administrar, pretende-se sim que julguem a conformidade da actuação dos poderes públicos com os princípios de Direito a que eles estão vinculados, que façam prevalecer o Direito sobre eventuais condutas ilegítimas dos poderes públicos.

Concluindo, numa primeira fase, no contencioso administrativo português, os tribunais administrativos tinham uma limitada esfera de actuação, o que limitava, consequentemente, o tipo de pretensões que lhe poderiam ser dirigidas, desta forma o princípio da tutela jurisdicional efectiva não era devidamente acautelado. Com a evolução do contencioso administrativo, que passou de um modelo objectivista, onde a principal actividade da jurisdição administrativa era a verificação da legalidade do acto administrativo, para um modelo subjectivista, em que a tutela dos interesses e direitos legalmente protegidos dos particulares assumem uma posição central, surgiu a necessidade de reforçar a jurisdição administrativa para acautelar convenientemente as pretensões dos “administrados”, se a jurisdição administrativa se mantivesse limitada, os particulares as suas pretensões frustradas. O princípio da plena jurisdição dos tribunais administrativos assume se assim como um “garante” do princípio da tutela da jurisdição efectiva.

 Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas e ALMEIDA, Mário Aroso. “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Adminstrativo”. Almedina. 2012.
SILVA, Vasco Pereira da. “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. (ensaio sobre as acções no novo processo administrativo)”, 2ª edição, Almedina.
CORREIA, José Manuel Sérvulo. “Direito do Contencioso Administrativo”. Lisboa. 2005
ALMEIDA, Mário Aroso. “ Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”. Almedina. Lisboa. 2004.
ALMEIDA, Mário Aroso. “Manual de Processo Administrativo”. Almedina. 2010


[i] CORREIA, José Manuel Sérvulo. “Direito do Contencioso Administrativo”. Lisboa. 2005

[iii] AMARAL, Diogo Freitas e ALMEIDA, Mário Aroso. “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Adminstrativo”. Almedina. 2012.

[iv] SILVA, Vasco Pereira da. “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. (ensaio sobre as ações no novo processo administrativo)”, 2ª edição, Almedina



Ana Catarina Martins Marques
21 403

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