A Plena Jurisdição dos tribunais
administrativos como reforço ao Princípio da Tutela Jurisdicional efectiva.
No modelo tradicional de
contencioso administrativo, os tribunais administrativos tinham poderes
limitados de pronúncia que se circunscreviam a proferir sentenças de nulidade
ou anulação de actos administrativos e condenar a Administração Pública
(doravante AP) “nos domínios específicos da responsabilidade por danos ou de
relações constituídas por contrato administrativo”, consequentemente, nem todas
as pretensões poderiam ser deduzidas perante estes tribunais, situação que
colocava em causa a tutela jurisdicional efectiva, com previsão nos artigos
20.º e 268.º números 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante
CRP), e artigo 2.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(doravante CPTA).
Actualmente, o contencioso
administrativo configura se num modelo subjectivista, tal evolução teve, nas
palavras do Professor Sérvulo Correia[i],
“como pólo dinamizador a garantia da tutela jurisdicional efectiva”, tal como
está assente no artigo 268.º números 4 e 5 da CRP, os direitos e interesses
legalmente protegidos em relação jurídica com a AP constituem objecto de uma
garantia de tutela jurisdicional efectiva que se deverá estender a todos os
litígios que envolvam os “administrados”, o que se traduz na possibilidade de
serem deduzidas todas as pretensões fundadas no Direito contra a Administração
perante os tribunais administrativos, consequentemente é necessário que à
jurisdição administrativa seja reconhecido o poder de emitir todo o tipo de
pronúncias contra a AP, julgando o cumprimento das normas e princípios que a
vinculam. Este poder só encontra obstáculo nos domínios da conveniência e da
oportunidade da actuação administrativa, como define o artigo 3.º número 1 do CPTA.
Encontramos aqui a base da plena jurisdição administrativa.
No que se traduz a plena jurisdição administrativa?
Como resposta à evolução do
contencioso administrativo, foi necessário reforçar os poderes dos tribunais administrativos.
·
Num primeiro plano, reforçaram-se os poderes
de pronúncia, que aos tribunais são conferidos na tutela
declarativa (no plano da tutela declarativa, o contencioso administrativo
coloca à disposição formas processuais adequadas para fazer valer as pretensões
de quem a ele se dirige e para obter uma decisão com força de caso julgado num
prazo razoável).
a) Poderes de pronúncia nos processos
principais, em que são proferidas as decisões de mérito das causa:
- Declaração de ilegalidade com
força obrigatória geral, estabelecida no artigo 76.º do CPTA, que se inspira
nas declarações de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força
obrigatória geral que são proferidas pelo Tribunal Constitucional.
- Declaração de ilegalidade com
efeitos circunscritos ao caso do interessado, artigo 73.º número 2 CPTA,
utilizada nos casos em que os efeitos de uma norma não dependem de qualquer
acto de aplicação, o lesado pode obter a desaplicação da norma através desta
declaração. Neste caso temos uma declaração de ilegalidade, não a título
incidental por que não há acto administrativo de aplicação, mas sim a título
principal, o lesado pode reagir directamente contra a norma, possibilidade também
constitucionalmente prevista, artigo 268.º número 5 CRP.
- Declaração de ilegalidade por
omissão de normas necessárias, consagrada no artigo 77.º CPTA, trata-se de dar
“exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação”, ou segundo os
Professores Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral[ii],
“dar cumprimento a determinações contidas em actos legislativos". O tribunal
pode além de declarar esta ilegalidade, fixar o prazo dentro de qual a omissão
deverá ser suprida, artigo 77.º número 2 CPTA.
b) Poderes de pronúncia no âmbito de processos
cautelares, em que são decretadas providências dirigidas a proteger a
utilidade das decisões a proferir nos processos principais.
Anteriormente a tutela cautelar
no contencioso administrativo limitava se à suspensão da eficácia de actos administrativos,
mas actualmente, temos estabelecido no artigo 112.º número 1 CPTA, que “quem
possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos,
pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares,
antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a
utilidade da sentença a proferir nesse processo.”, os tribunais administrativos
podem agora adoptar quaisquer providências cautelares que “sejam configuradas
em função das características específicas das relações
jurídico-administrativas”, segundo as palavras dos Professores Mário Aroso de
Almeida e Diogo Freitas do Amaral. Neste âmbito afiguram-se dois domínios
principais:
- Situações em que o administrado pretenda que
a AP se abstenha de tomar certas medidas para prevenir situações prejudiciais
geradas pela prática de operações administrativas de conteúdo material. Pressupõe que ainda não tenha sido emitido o acto administrativo.
- Situações em que o administrado
pretende a obtenção de um efeito favorável através da prática ou não de um acto
administrativo.
Apesar da larga margem para adopção
de providências cautelares, o artigo 120.º CPTA dita importantes critérios de
decisão nomeadamente, ponderando, através de interesses públicos e privados, os
danos que resultarão da concessão da medida cautelar e os efeitos da sua
recusa.
·
No plano dos poderes de condenação, são de salientar três poderes
conferidos aos tribunais administrativos:
i) Poder
de condenar a AP à prática de actos administrativos ilegalmente omitidos ou
recusados, artigos 66.º e seguintes do CPTA.
Este poder tem previsão constitucional no artigo 268.º
número 4 CRP “determinação da prática de actos administrativos legalmente
devidos”. O CPTA instituiu o processo da condenação à prática de acto devido,
no âmbito da acção administrativa especial, independentemente do conteúdo do
acto omitido ou recusado ser ou não vinculado. No exercício do referido poder,
o tribunal poderá proferir pronúncias de simples condenação ao cumprimento do dever
de decidir, de condenação ao dever de substituir o acto ilegalmente praticado
por outro que não contenha as mesmas ilegalidades, ou de condenação à prática
de acto devido de conteúdo vinculado.
ii) Poder
de fixar o prazo dentro do qual a AP deve cumprir os seus deveres, previsto
no artigo 3.º número 2 do CPTA.
Os tribunais administrativos “podem fixar oficiosamente
um prazo para o cumprimento dos deveres que imponham à Administração aplicar”.
iii) Poder de aplicar sanções pecuniárias compulsórias,
artigo 3.º número 2 CPTA.
Estas sanções destinam-se a assegurar o cumprimento dos
deveres impostos pelos tribunais administrativos à AP, e seguem as regras do
artigo 169.º CPTA. Visam coagir a Administração a cumprir a suas obrigações de
carácter infungível.
·
Por
fim no plano dos poderes de execução, os tribunais administrativos passam a
dispor do poder de adoptarem providências
de execução das suas decisões, neste sentido temos o artigo 3.º número 3
CPTA formula a possibilidade “de emissão de sentença que produza os efeitos do
acto administrativo devido, quando a prática e o conteúdo deste acto sejam
estritamente vinculados”. Exemplo de sentença substitutiva de acto
administrativo é a entrega judicial de coisa devida, artigo 167.º número 5
CPTA. Em situações mais complexas, os tribunais administrativos podem requerer
a colaboração das autoridades e agentes da entidade administrativa obrigada
para executarem as suas sentenças, e todas as entidades públicas estão
obrigadas a colaborar sempre que for requerida a sua colaboração.
Para os Professores
Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral[iii],
este poder de emissão de sentença substitutiva de acto administrativo não
prejudica o princípio da separação de poderes porque como os artigos 3.º/3 e
167.º/6 CPTA consagram, este poder circunscreve-se a casos de actos de conteúdo
vinculado, isto é, em que hajam apenas duas possibilidades de decisão.
Como o Professor Vasco
Pereira da Silva afirma[iv],
“o objecto do processo não é nunca o acto administrativo, mas sim o direito do
particular a uma determinada conduta da AP”.
Salvaguarda do princípio da
separação de poderes
Com o aumento dos poderes dos tribunais administrativos
houve uma crescente preocupação com o princípio da separação de poderes, até
que ponto a acção jurisdicional não se estaria a imiscuir nos domínios da
Administração Pública? Como o Professor Mário Aroso de Almeida refere, “existe
a consciência de que a intervenção do poder judicial não deve ultrapassar os
limites que decorrem da vontade expressa pelos órgãos democraticamente
legitimados para o efeito”, é neste sentido que surge o artigo 3.º número 1
CPTA a firmar que as competências dos tribunais administrativos se cingem ao
julgamento do cumprimento de normas e princípios jurídicos aos quais a AP está
vinculada. Não se pretende que os tribunais “administrem” sobrepondo os seus
juízos aos daqueles que foram democraticamente eleitos para administrar,
pretende-se sim que julguem a conformidade da actuação dos poderes públicos com
os princípios de Direito a que eles estão vinculados, que façam prevalecer o
Direito sobre eventuais condutas ilegítimas dos poderes públicos.
Concluindo, numa primeira fase, no contencioso administrativo
português, os tribunais administrativos tinham uma limitada esfera de actuação,
o que limitava, consequentemente, o tipo de pretensões que lhe poderiam ser
dirigidas, desta forma o princípio da tutela jurisdicional efectiva não era
devidamente acautelado. Com a evolução do contencioso administrativo, que
passou de um modelo objectivista, onde a principal actividade da jurisdição
administrativa era a verificação da legalidade do acto administrativo, para um
modelo subjectivista, em que a tutela dos interesses e direitos legalmente
protegidos dos particulares assumem uma posição central, surgiu a necessidade
de reforçar a jurisdição administrativa para acautelar convenientemente as
pretensões dos “administrados”, se a jurisdição administrativa se mantivesse
limitada, os particulares as suas pretensões frustradas. O princípio da plena
jurisdição dos tribunais administrativos assume se assim como um “garante” do
princípio da tutela da jurisdição efectiva.
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas e ALMEIDA,
Mário Aroso. “Grandes Linhas da Reforma
do Contencioso Adminstrativo”. Almedina. 2012.
SILVA, Vasco Pereira da. “O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. (ensaio sobre as acções no novo processo administrativo)”, 2ª edição,
Almedina.
CORREIA, José Manuel
Sérvulo. “Direito do Contencioso
Administrativo”. Lisboa. 2005
ALMEIDA, Mário Aroso. “ Novo Regime do Processo nos Tribunais
Administrativos”. Almedina. Lisboa. 2004.
ALMEIDA, Mário Aroso. “Manual de Processo Administrativo”. Almedina. 2010
[i] CORREIA,
José Manuel Sérvulo. “Direito do
Contencioso Administrativo”. Lisboa. 2005
[iii]
AMARAL, Diogo Freitas e ALMEIDA, Mário Aroso. “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Adminstrativo”. Almedina.
2012.
[iv] SILVA,
Vasco Pereira da. “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. (ensaio sobre as ações no novo processo administrativo)”, 2ª edição,
Almedina.
Ana Catarina Martins Marques
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