domingo, 20 de outubro de 2013

O Princípio da Separação de Poderes, discricionariedade administrativa e os poderes do juiz administrativo


O ‘porquê’ de um Processo Administrativo

 

À imagem do Processo Civil, o Processo Administrativo visa garantir a tutela jurisdicional efetiva das partes. Contudo, em relação a este último, o que o destrinça do primeiro é que uma dessas partes é a Administração Pública (ou um ente com funções públicas) e a base do litígio, que o conduz ‘à barra dos Tribunais Administrativos’, está legalmente prevista no artigo 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, plasmado na Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, consubstanciado pelo artigo 1º, n.º 1, do mesmo diploma – condição essencial para estarmos, então, perante um Processo Administrativo.

Na análise psicanalítica realizada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, a respeito do Contencioso Administrativo, percebemos os ‘traumas de infância’ deste ramo do Direito e percebemos os contornos que deram azo ao seu estado atual. O que fica por explicar não é a razão do seu aparecimento, nem a razão da sua existência, mas sim a da sua manutenção. Ou, por outras palavras, invocando os princípios que regem o nosso sistema jurídico-constitucional, nomeadamente o Princípio da Separação de Poderes, podemos perguntar por que razão é que, no atual estado de desenvolvimento da ciência jurídica, se justifica este ‘processo’? Procurarei dar uma resposta, centrado no ambiente metafórico proposto pelo citado professor, ainda que possa extravasar o caráter jurídico que se pretende neste tipo de comentário.

A evolução do Direito não é mais do que o reflexo legal da evolução da sociedade que o institui como elemento regulador. Assim, o aparecimento do Direito Administrativo, nos finais do século XVIII é, tão-só, o reflexo das grandes transições sociais da sua época, cujos ideais ficariam vertidos na regulação normativa proposta pelos estadistas, então emergentes. A Revolução Francesa, de 1789, é o marco mais significativo dessa evolução, que se traduziu, no plano político, numa transição de um sistema de Poder Absoluto, para um de cariz Liberal e, no plano legislativo, no surgimento de normas que limitavam (ou deveriam procurar limitar) o poder do Estado perante o indivíduo – este que era, agora, detentor de direitos inalienáveis, como o de propriedade, entre outros. Porém, toda a sua estrutura física do Estado tinha-se mantido inalterada. Como explica o Professor Vasco Pereira da Silva, esta manutenção decorria de diversos fatores, dos quais destaca: “a conceção do Estado e a separação de poderes, a reação contra a atuação dos tribunais do Antigo Regime, a influência do modelo do Conselho do Rei, a continuidade no funcionamento das instituições antes e depois da revolução”. De todas estas justificações históricas, que aquele douto professor expõe no ‘Divã da Psicanálise’, o sumo que se pode retirar para enquadrar este comentário é que, mais do que instituir um Estado assente nos ideais do Liberalismo, em prole da liberdade do indivíduo, os revolucionários depressa sentiram a tentação do ‘poder’ e trataram logo de abonar o controlo da sua hegemonia, garantindo que o poder judicial não perturbava a ‘haute mission’, que cabia, agora, à Administração Pública.

Apesar de toda a evolução do Direito em torno do Contencioso Administrativo, o ‘Pecado Original’, que tanto traumatizou o desenvolvimento ‘saudável’ deste ramo do ordenamento, ainda persiste. Se não, vejamos…

Neste ensaio, desprezo toda a evolução histórica portuguesa do Contencioso Administrativo, até à promulgação da Constituição vigente, contando que, no que respeita a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos administrados (seguindo a orientação clássica, caraterizada pelo Professor Vasco Pereira da Silva), “o particular não era titular de nenhuma situação jurídica subjetiva relativamente à Administração e que o Processo Administrativo era uma forma de autocontrolo administrativo, no qual o particular estava ao serviço do processo, desempenhando uma função similar à de um Ministério Público.”

A partir de 1976, o panorama legal altera-se substancialmente. Assim, antes da revisão constitucional de 1997, o legislador constitucional já tinha consagrado os instrumentos constitucionais necessários que relevavam para aquela tutela, ainda que o legislador ordinário pudesse fazer uma interpretação menos idónea, atendendo ao espírito do sistema constitucional vigente. Neste sentido, o artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), já consagrava o acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva e, quando conjugado com o artigo 268º, n.º 3, da CRP, impunha essa tutela perante a Administração Pública.

A dita revisão constitucional, que veio adicionar ao artigo 268º, da CRP, os n.os 4 e 5, trouxe consigo duas conclusões. Por um lado, seguindo as considerações da Professora Suzana Tavares da Silva, autonomizou “as garantias dos administrados relativamente à garantia da tutela jurisdicional efetiva em geral, [uma vez que] não basta apenas a garantia do acesso ao direito e aos tribunais (…), é ainda necessário que a lei assegure os seus direitos e interesses legalmente protegidos, podendo, em última instância, em caso de «falha do legislador», essa garantia ser dada pelo tribunal, em decorrência da aplicação direta dos preceitos constitucionais” – o que, do ponto de vista da proficiência da tutela jurisdicional, se mostrou necessário e eficaz. Por outro lado, leva-nos a concluir que, a ser necessário efetuar estas precisões constitucionais, o ‘trauma’ poderá ainda não estar completamente sanado e a Administração Pública ainda continua a ‘pecar’… Quanto mais não seja, sobrevalorizando a sua ‘haute mission’, em detrimento do Princípio insindicável da Separação de Poderes. Um exemplo significativo desse tipo de ‘pecado’, que releva para consubstanciar o que se acabou de afirmar, é o Acórdão n.º 18/2011, do Tribunal Constitucional (Tribunal este, cujos juízes [10, dos 13 que o compõem] são indicados pela Assembleia da República), cuja deliberação não julgou inconstitucional a Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, que duplicava as taxas de tributação de despesas de representação e as despesas com viaturas ligeiras de passageiros e mistas, aplicando-as retroativamente à data de 1 de janeiro de 2008. Perante manifesta inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Administrativo teve um entendimento contrário, o que levou a que o Tribunal Constitucional viesse, num segundo momento, a deliberar em sentido contrário (ou seja, no mesmo sentido do Supremo Tribunal Administrativo), através do Acórdão n.º 310/2012.

Posto isto, a nossa análise psicanalítica leva-nos a concluir que, sanado o ‘trauma’, o nosso ‘paciente’ tem encontrado mecanismos que o mantêm na ‘Graça de Deus’, procurando evitar a ‘tentação’ dos ‘pecados’ perpetrados por este ‘demónio’ a quem chamamos Administração Pública e o Processo Administrativo é essencial.

 

Paulo Neves

22216



Bibliografia:

            - Silva, Suzana Tavares da, «Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos administrados», in Revista de Direito Público e Regulação, Edições CEDIPRE, Coimbra, 2010.

- Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Edições Almedina, Coimbra, 2009.

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