O
‘porquê’ de um Processo Administrativo
À imagem do Processo
Civil, o Processo Administrativo visa garantir a tutela jurisdicional efetiva
das partes. Contudo, em relação a este último, o que o destrinça do primeiro é
que uma dessas partes é a Administração Pública (ou um ente com funções
públicas) e a base do litígio, que o conduz ‘à barra dos Tribunais
Administrativos’, está legalmente prevista no artigo 4º, do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, plasmado na Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro,
consubstanciado pelo artigo 1º, n.º 1, do mesmo diploma – condição essencial
para estarmos, então, perante um Processo Administrativo.
Na análise
psicanalítica realizada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, a respeito do
Contencioso Administrativo, percebemos os ‘traumas de infância’ deste ramo do
Direito e percebemos os contornos que deram azo ao seu estado atual. O que fica
por explicar não é a razão do seu aparecimento, nem a razão da sua existência,
mas sim a da sua manutenção. Ou, por outras palavras, invocando os princípios
que regem o nosso sistema jurídico-constitucional, nomeadamente o Princípio da
Separação de Poderes, podemos perguntar por que razão é que, no atual estado de
desenvolvimento da ciência jurídica, se justifica este ‘processo’? Procurarei
dar uma resposta, centrado no ambiente metafórico proposto pelo citado
professor, ainda que possa extravasar o caráter jurídico que se pretende neste
tipo de comentário.
A evolução do Direito
não é mais do que o reflexo legal da evolução da sociedade que o institui como
elemento regulador. Assim, o aparecimento do Direito Administrativo, nos finais
do século XVIII é, tão-só, o reflexo das grandes transições sociais da sua
época, cujos ideais ficariam vertidos na regulação normativa proposta pelos
estadistas, então emergentes. A Revolução Francesa, de 1789, é o marco mais
significativo dessa evolução, que se traduziu, no plano político, numa
transição de um sistema de Poder Absoluto, para um de cariz Liberal e, no plano
legislativo, no surgimento de normas que limitavam (ou deveriam procurar
limitar) o poder do Estado perante o indivíduo – este que era, agora, detentor
de direitos inalienáveis, como o de propriedade, entre outros. Porém, toda a
sua estrutura física do Estado tinha-se mantido inalterada. Como explica o
Professor Vasco Pereira da Silva, esta manutenção decorria de diversos fatores,
dos quais destaca: “a conceção do Estado e a separação de poderes, a reação
contra a atuação dos tribunais do Antigo Regime, a influência do modelo do Conselho
do Rei, a continuidade no funcionamento das instituições antes e depois da
revolução”. De todas estas justificações históricas, que aquele douto professor
expõe no ‘Divã da Psicanálise’, o sumo que se pode retirar para enquadrar este
comentário é que, mais do que instituir um Estado assente nos ideais do
Liberalismo, em prole da liberdade do indivíduo, os revolucionários depressa
sentiram a tentação do ‘poder’ e trataram logo de abonar o controlo da sua
hegemonia, garantindo que o poder judicial não perturbava a ‘haute mission’, que cabia, agora, à
Administração Pública.
Apesar de toda a
evolução do Direito em torno do Contencioso Administrativo, o ‘Pecado
Original’, que tanto traumatizou o desenvolvimento ‘saudável’ deste ramo do
ordenamento, ainda persiste. Se não, vejamos…
Neste ensaio, desprezo
toda a evolução histórica portuguesa do Contencioso Administrativo, até à
promulgação da Constituição vigente, contando que, no que respeita a garantia
da tutela jurisdicional efetiva dos administrados (seguindo a orientação
clássica, caraterizada pelo Professor Vasco Pereira da Silva), “o particular
não era titular de nenhuma situação jurídica subjetiva relativamente à
Administração e que o Processo Administrativo era uma forma de autocontrolo
administrativo, no qual o particular estava ao serviço do processo,
desempenhando uma função similar à de um Ministério Público.”
A partir de 1976, o
panorama legal altera-se substancialmente. Assim, antes da revisão
constitucional de 1997, o legislador constitucional já tinha consagrado os
instrumentos constitucionais necessários que relevavam para aquela tutela,
ainda que o legislador ordinário pudesse fazer uma interpretação menos idónea,
atendendo ao espírito do sistema constitucional vigente. Neste sentido, o artigo
20º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), já consagrava o acesso ao
Direito e à tutela jurisdicional efetiva e, quando conjugado com o artigo 268º,
n.º 3, da CRP, impunha essa tutela perante a Administração Pública.
A dita revisão
constitucional, que veio adicionar ao artigo 268º, da CRP, os n.os 4
e 5, trouxe consigo duas conclusões. Por um lado, seguindo as considerações da
Professora Suzana Tavares da Silva, autonomizou “as garantias dos administrados
relativamente à garantia da tutela jurisdicional efetiva em geral, [uma vez
que] não basta apenas a garantia do acesso ao direito e aos tribunais (…), é
ainda necessário que a lei assegure os seus direitos e interesses legalmente
protegidos, podendo, em última instância, em caso de «falha do legislador»,
essa garantia ser dada pelo tribunal, em decorrência da aplicação direta dos
preceitos constitucionais” – o que, do ponto de vista da proficiência da tutela
jurisdicional, se mostrou necessário e eficaz. Por outro lado, leva-nos a
concluir que, a ser necessário efetuar estas precisões constitucionais, o
‘trauma’ poderá ainda não estar completamente sanado e a Administração Pública
ainda continua a ‘pecar’… Quanto mais não seja, sobrevalorizando a sua ‘haute mission’, em detrimento do
Princípio insindicável da Separação de Poderes. Um exemplo significativo desse
tipo de ‘pecado’, que releva para consubstanciar o que se acabou de afirmar, é
o Acórdão n.º 18/2011, do Tribunal Constitucional (Tribunal este, cujos juízes
[10, dos 13 que o compõem] são indicados pela Assembleia da República), cuja
deliberação não julgou inconstitucional a Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro,
que duplicava as taxas de tributação de despesas de representação e as despesas
com viaturas ligeiras de passageiros e mistas, aplicando-as retroativamente à
data de 1 de janeiro de 2008. Perante manifesta inconstitucionalidade, o
Supremo Tribunal Administrativo teve um entendimento contrário, o que levou a
que o Tribunal Constitucional viesse, num segundo momento, a deliberar em
sentido contrário (ou seja, no mesmo sentido do Supremo Tribunal
Administrativo), através do Acórdão n.º 310/2012.
Posto isto, a nossa
análise psicanalítica leva-nos a concluir que, sanado o ‘trauma’, o nosso
‘paciente’ tem encontrado mecanismos que o mantêm na ‘Graça de Deus’,
procurando evitar a ‘tentação’ dos ‘pecados’ perpetrados por este ‘demónio’ a
quem chamamos Administração Pública e o Processo Administrativo é essencial.
Paulo Neves
22216
Bibliografia:
- Silva, Suzana Tavares da,
«Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos administrados», in Revista de Direito Público e Regulação,
Edições CEDIPRE, Coimbra, 2010.
- Silva, Vasco Pereira da,
O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, 2ª Edição, Edições Almedina, Coimbra, 2009.
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