domingo, 20 de outubro de 2013


O papel do Tribunal Constitucional na erosão das garantias dos administrados

A relação entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo é comumente ilustrada pela doutrina como uma relação entre irmãos, Bouboutt chama-lhes “irmãos siameses”[1]. A mesma ideia de dependência reciproca resulta da tese clássica de Fritz Werner de que “o Direito Administrativo é Direito Constitucional concretizado”.

A história da evolução do sistema de contencioso administrativo em Portugal demonstra-nos que no nosso ordenamento essa relação fraternal era dominada pelo distanciamento e pela indiferença, parecendo ter subjacente o lema, retirado do título de música de Rino Gaetano, “Mio fratello è figlio único” (o meu irmão é filho único). O auge dessa desconexão entre a normatividade constitucional e a normatividade administrativa ocorreu no período compreendido entre a revisão Constitucional de 1989 e a Reforma de 2004, da qual resultou o  “Grande salto em frente” dado pela Constituição em matéria de garantias dos administrados. Este período pode ser perfeitamente caracterizado recorrendo ao lema de Deng Xiaoping “Um País dois Sistemas” (de contencioso administrativo), por um lado o que se encontrava estabelecido na CRP, e que alguma Doutrina entendia como “uma espécie de super-ego constitucional (necessitado) de alguma terapia hermenêutica [2]”, resultante de um “golpe palaciano, (que procurou) subjugar o Direito Administrativo e a sua Justiça”[3] , e por outro o resultante da legislação ordinária e que em muitos casos se opunha ao constitucionalmente consagrado.

De uma análise meramente positivista, ou seja tendo apenas em conta o panorama dado pela normatividade estática, fica-se com a sensação de que no ordenamento Português se está perante um situação de polícia bom, polícia mau, sendo que o primeiro papel caberia ao legislador constitucional e o segundo ao legislador ordinário, no entanto se atendermos a uma análise dinâmica da normatividade constitucional, ou seja, de um ponto de vista de Law in action, acaba-se por concluir aquilo que qualquer fã de séries policiais sabe, o polícia bom encara apenas uma persona, o que significa que por vezes chega a ser tão mau como o outro, e que alguma da sua bondade é meramente formal. Assim sendo é de extrema importância ter em conta o papel dos juízes “no processo construtivo da juridicidade vigente”[4].

A erosão judicial é um fenómeno que resulta da aplicação e interpretação das regras criadas pelo legislador de forma a esvaziar e a subverter o seu conteúdo. Este tipo de activismo judicial Contra constitutionem leva a que se estabeleçam discrepâncias entre a dimensão material e a dimensão formal da constituição[5].

O exemplo paradigmático de uma erosão judicial é o caso da interpretação ab-rogante levada a cabo pela jurisprudência do princípio constitucional de transição para o socialismo.[6]

Ao nível do Direito Constitucional do Contencioso Administrativo, um dos casos mais notório de erosão esteve relacionado com o problema da suspensão da eficácia dos actos administrativos, uma vez que o Tribunal Constitucional ao invés de garantir uma maior protecção do particular justificando-a directamente em princípios constitucionais, optou por afirmar que se tratava de “uma garantia sem assento constitucional, apenas concedida pela lei, que não decorre do direito de acesso aos tribunais, nem da garantia de recurso contencioso”[7], desprotegendo deste modo as situações nas quais ocorreria inutilidade da lide após a execução do acto. Actualmente esse problema já se encontra ultrapassado com a consagração de meios de tutela cautelar eficazes no processo administrativo, no entanto não deixa de ser um exemplo ilustrativo do comportamento do Tribunal Constitucional.

Hodiernamente o exemplo mais flagrante do fenómeno da erosão judicial relaciona-se com a manutenção do recurso hierárquico necessário.

Com a 2ª revisão Constitucional o pressuposto para a impugnação dos actos administrativos passou a ser o da lesividade do acto, tendo sido abandonado pelo texto constitucional os pressupostos da executoriedade e da definitividade, o que gerou a inconstitucionalidade das normas que estabeleciam o recurso hierárquico necessário como pressuposto processual.

No entanto o legislador ordinário com o beneplácito do Tribunal Constitucional não retirou todas as consequências do direito fundamental de impugnação contenciosa de actos administrativos. São várias as sentenças em que o Tribunal Constitucional se pronuncia pela constitucionalidade da figura do recurso hierárquico necessário, nomeadamente nos acórdãos 9/96; 603/95; 499/96; 115/96; 425/99; 333/00; 99/01; 185/01; 283/01; 438/02;106/08 e 564/08.

 A manutenção do recurso hierárquico necessário continua a ser uma das razões pelas quais mesmo neste novo milénio o direito administrativo ainda é direito constitucional por concretizar[8] e isso resulta não apenas da inércia do legislador ordinário mas também da acção erosiva das garantias do particular levada a cabo pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.

José Miguel Toste nº20876




[1] Pereira da Silva, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise; 2ª Edição, Almedina, Pág. 169
[2] Colaço Antunes, Luís Filipe; O Direito Administrativo e a sua Justiça no início do século XXI, Almedina pág. 99
[3] Colaço Antunes, Luís Filipe; O Direito Administrativo e a sua Justiça no início do século XXI, Almedina pág. 126
[4] Fernando José Bronze Apud  Otero, Paulo; Legalidade e Administração Pública; Almedina pág. 380
[5] Pereira da Silva, Vasco; Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo; Almedina pág. 66
[6] Otero, Paulo; Legalidade e Administração Pública; Almedina pág. 535
[7] Acórdão do Tribunal Constitucional 173/91
[8] Pereira da Silva, Vasco; Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo; Almedina pág.96

"perchè è convinto che anche chi non legge Freud / può vivere cent'anni" (porque ele está convencido de que mesmo aqueles que não lêem Freud / pode viver cem anos) Será que os juízes do Tribunal Constitucional e o legislador ordinário também são dessa opinião e por isso não têm a psicanálise cultural do C. Adm. em dia?

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