O papel do Tribunal Constitucional
na erosão das garantias dos administrados
A
relação entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo é comumente
ilustrada pela doutrina como uma relação entre irmãos, Bouboutt chama-lhes
“irmãos siameses”[1].
A mesma ideia de dependência reciproca resulta da tese clássica de Fritz Werner
de que “o Direito Administrativo é Direito Constitucional concretizado”.
A
história da evolução do sistema de contencioso administrativo em Portugal
demonstra-nos que no nosso ordenamento essa relação fraternal era dominada pelo
distanciamento e pela indiferença, parecendo ter subjacente o lema, retirado do
título de música de Rino Gaetano,
“Mio
fratello è figlio único” (o meu irmão é filho único). O auge dessa desconexão
entre a normatividade constitucional e a normatividade administrativa ocorreu
no período compreendido entre a revisão Constitucional de 1989 e a Reforma de
2004, da qual resultou o “Grande salto em frente” dado pela Constituição em
matéria de garantias dos administrados. Este período pode ser
perfeitamente caracterizado recorrendo ao lema de Deng Xiaoping “Um País dois Sistemas” (de
contencioso administrativo), por um lado o que se encontrava estabelecido na
CRP, e que alguma Doutrina entendia como “uma
espécie de super-ego constitucional (necessitado)
de alguma terapia hermenêutica [2]”, resultante de um “golpe palaciano,
(que procurou) subjugar o Direito Administrativo e a sua Justiça”[3] , e por outro o resultante da legislação
ordinária e que em muitos casos se opunha ao constitucionalmente consagrado.
De uma análise meramente positivista, ou seja tendo apenas em
conta o panorama dado pela normatividade estática, fica-se com a
sensação de que no ordenamento Português se está perante um situação de polícia
bom, polícia mau, sendo que o primeiro papel caberia ao legislador
constitucional e o segundo ao legislador ordinário, no entanto se atendermos a
uma análise dinâmica da normatividade constitucional, ou seja, de um ponto de
vista de Law in action, acaba-se por
concluir aquilo que qualquer fã de séries policiais sabe, o polícia bom encara
apenas uma persona, o que significa que por
vezes chega a ser tão mau como o outro, e que alguma da sua bondade é meramente
formal. Assim sendo é de extrema importância ter em conta o papel dos juízes “no processo construtivo da
juridicidade vigente”[4].
A erosão judicial é um fenómeno que resulta da aplicação e
interpretação das regras criadas pelo legislador de forma a esvaziar e a
subverter o seu conteúdo. Este tipo de activismo judicial Contra constitutionem leva a que se estabeleçam discrepâncias entre
a dimensão material e a dimensão formal da constituição[5].
O exemplo paradigmático de uma erosão judicial é o caso da
interpretação ab-rogante levada a cabo pela jurisprudência do princípio
constitucional de transição para o socialismo.[6]
Ao nível do Direito Constitucional do Contencioso Administrativo,
um dos casos mais notório de erosão esteve relacionado com o problema da suspensão da
eficácia dos actos administrativos, uma vez que o Tribunal Constitucional ao invés
de garantir uma maior protecção do particular justificando-a directamente em princípios
constitucionais, optou por afirmar que se tratava de “uma garantia sem assento constitucional,
apenas concedida pela lei, que não decorre do direito de acesso aos tribunais,
nem da garantia de recurso contencioso”[7],
desprotegendo deste modo as situações nas quais ocorreria inutilidade da lide
após a execução do acto. Actualmente esse problema já se encontra ultrapassado
com a consagração de meios de tutela cautelar eficazes no processo
administrativo, no entanto não deixa de ser um exemplo ilustrativo do
comportamento do Tribunal Constitucional.
Hodiernamente o exemplo mais flagrante do fenómeno da erosão
judicial relaciona-se com a manutenção do recurso hierárquico necessário.
Com a 2ª revisão Constitucional o pressuposto para a impugnação
dos actos administrativos passou a ser o da lesividade do acto, tendo sido
abandonado pelo texto constitucional os pressupostos da executoriedade e da
definitividade, o que gerou a inconstitucionalidade das normas que estabeleciam
o recurso hierárquico necessário como pressuposto processual.
No entanto o
legislador ordinário com o beneplácito do Tribunal Constitucional não retirou
todas as consequências do direito fundamental de impugnação contenciosa de
actos administrativos. São várias as sentenças em que o Tribunal Constitucional
se pronuncia pela constitucionalidade da figura do recurso hierárquico
necessário, nomeadamente nos acórdãos 9/96; 603/95; 499/96; 115/96; 425/99; 333/00; 99/01; 185/01; 283/01;
438/02;106/08 e 564/08.
José Miguel Toste nº20876
[1] Pereira
da Silva, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise; 2ª
Edição, Almedina, Pág. 169
[2] Colaço
Antunes, Luís Filipe; O Direito Administrativo e a sua Justiça no início do
século XXI, Almedina pág. 99
[3] Colaço
Antunes, Luís Filipe; O Direito Administrativo e a sua Justiça no início do
século XXI, Almedina pág. 126
[4] Fernando
José Bronze Apud Otero, Paulo; Legalidade e Administração
Pública; Almedina pág. 380
[5] Pereira
da Silva, Vasco; Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo; Almedina pág.
66
[6] Otero,
Paulo; Legalidade e Administração Pública; Almedina pág. 535
[7] Acórdão do
Tribunal Constitucional 173/91
[8] Pereira
da Silva, Vasco; Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo; Almedina pág.96
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