domingo, 20 de outubro de 2013

O Desafio da Europeização da Justiça Administrativa



A União Europeia, assente em princípios fundamentais, e a sua ordem jurídica estão em constante evolução, mutação, trata-se dum processo de integração evolutivo e dinâmico, exigência da situação contemporânea vivida na Europa. Ambiciona-se principalmente a integração política e económica que tem sido conquistada através dum processo contínuo e gradual, que teve o seu início com a 1ª Guerra Mundial e continua deveras presente… Houve avanços, retrocessos, mas estamos em constante movimento… O alargamento da União Europeia trouxe consigo a demanda de mais coesão europeia, a integração teve que ser aprofundada de forma equilibrada entre os Estados, buscando uma uniformização saudável, que respeitasse, no entanto, determinados princípios como por exemplo o princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados membros; o princípio do respeito pela diversidade cultural dos povos europeus; o princípio da solidariedade… princípios que podem ser tidos como a essência do espírito europeu. Deparamos nos com uma realidade complexa que também se encontra exposta à globalização… O desafio será assim uma breve análise do Direito do Contencioso Administrativo à luz da europeização. O cidadão da União com a europeização viu os seus direitos e garantias nacionais a ser expandidos (art.2 do Tratado da União Europeia), tendo este facto presente, iremos nos debruçar essencialmente sobre o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o principio da equivalência e os direitos fundamentais, cuja defesa é alcançada principalmente através de meios comuns do contencioso administrativo que são as acções e as providências cautelares… O cidadão europeu tem assim garantias contenciosas ao seu dispor, para que se possa defender face a actos de administração nacional ou europeia que são fonte de dano. O direito do contencioso administrativo realiza assim o princípio e o direito à tutela jurisdicional efectiva, cabe analisar como o faz à luz da europeização.

Tendo em conta a divisão que o Professor Vaz Pereira da Silva faz para distinguir as três fases principais na evolução do contencioso administrativo, devemos nos localizar, na terceira fase, a fase do crisma ou da confirmação, para nos referimos à europeização. A referida terceira fase, pode ser subdividida em 2 períodos: o da constitucionalização e no período que iremos destacar e que tem realmente relevância para a nossa abordagem do trabalho, a europeização. Com o surgimento dum Direito Europeu do Contencioso Administrativo houve uma estreita aproximação da justiça administrativa dos estados membros da União Europeia e um consequente aperfeiçoamento dos meios processuais. Há assim uma crescente convergência do Direito Contencioso Administrativo dos diferentes estados membros e são assim lançados os dados dum novo processo administrativo europeu. O Professor Vaz Pereira da Silva ilustra que a europeização dá início à uma nova fase, há assim um corte, uma superação dos traumas da infância do acto administrativo que o Professor refere na sua obra. Ou seja, as divergências históricas que marcaram o passado de forma acentuada e traumática são finalmente superadas. A europeização tem vindo a ser reforçada pelo surgimento de novas fontes europeias relevantes respeitantes ao Contencioso Administrativo, chega-se mesmo a falar já num processo administrativo europeu. Como sabemos, a União Europeia constitui uma ordem jurídica própria, que é acolhida por todos os estados membros e nomeadamente por Portugal nos termos do art.8 da nossa Constituição. Podemos assim afirmar que no fundo as administrações dos respectivos Estados membros, são transformadas em administrações de matriz europeia, pois é através desse processo transformativo que os Estados membros garantem a realização das tarefas administrativas. O Professor refere adicionalmente a existente integração das administrações nacionais com a administração comunitária. Para possibilitar esse processo integrativo, é necessário que sejam respeitados três princípios fulcrais: a integração normativa, a proibição de discriminação e o princípio da cooperação. O juiz nacional parece portanto ser de certa forma um juiz comunitário quando aplica o Sireito Comunitário. Cabe referir que a execução administrativa do Direito Comunitário tem duas vias alternativas: a execução pode ser levada a acabo pelo aparelho administrativo comunitário (execução directa) ou pode ser levada a cabo pelas variadas estruturas que integram a Administração Pública dos Estados membros (execução indirecta). São assim traçados novos desafios, pois a progressiva comunitarização dos modelos administrativos nacionais, demanda um repensar do direito administrativo, pois tal como o Professor Jürgen Schwarz chama a atenção, é impensável os administrativistas ignorarem os fenómenos europeus, pois são eles que envolvem e moldam o direito administrativo. O Professor Otto Bachof refere que o Direito da União Europeia é essencialmente Direito Administrativo, aprece-nos oportuno dizer que se trata dum direito administrativo concretizado. Estabelece-se assim uma correlação entre o direito administrativo europeu e o direito administrativo nacional, que por sinal é o motor de realização do direito europeu. São assim principalmente os Estados membros a executar as decisões europeias, estamos assim, como diz o Professor Parejo Alfonso, perante um “federalismo de execução”. O Professor Paulo Otero e o Professor Fausto Quadros, ao referirem-se à comunidade europeia, fazem questão de enfatizar, que se trata duma “ Comunidade de Direito Administrativo”. O Professor Vaz Perreira da Silva, observando o Direito Administrativo, constata que este está cada vez mais europeizado, trata-se dum verdadeiro fenómeno. Esse facto explica-se, tendo em conta o pluralismo normativo existente no quadro das ordens jurídicas nacionais e tendo presente que os direitos administrativos nacionais estão cada vez mais numa relação de aproximação significativa. Há pois uma visível interacção entre o tribunal das comunidades e os direitos administrativos constitucionalmente consagrados a nível nacional. Cabe assim salientar, que os direitos administrativos dos estados membros da União Europeia já não são meramente determinados a nível nacional, pois com a europeização paira sobre eles uma marcante influencia europeia. Os tribunais administrativos estão assim condicionados a também aplicar Direito Europeu, tendo portanto conquistado um papel principal na refundação do direito administrativo, intervindo na sua criação de forma activa e eficiente. Em Portugal e nos outros Estados membros tem-se assim assistido a uma verdadeira reelaboração do direito administrativo e testemunhou-se uma aproximação das ordens jurídicas de matriz românica a common law, há uma aproximação e porventura uma convergência. Tem-se vindo a formar progressivamente a criação dum ius commune e a tem-se principalmente abolido fronteiras históricas entre os Estados Membros.

O direito ao respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos da União Europeia encontra-se previsto no art.6.º,n.º2 TUE. É ainda de acrescentar que como cidadão europeu, temos também direito a uma boa administração, como refere o art.41.º/1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Sobressai assim a importância do conceito de Cidadão Europeu e as suas respectivas implicações na Expansão dos Direitos e garantias dos nacionais dos Estados Membros. Há por exemplo a possibilidade, o direito, de se queixar ao Provador de Justiça Europeu. Qualquer cidadão da União, bem como qualquer pessoa singular ou colectiva com residência ou sede estatutária num Estado Membro, podem dirigir-se ao Provedor de Justiça Europeu para manifestar as suas queixas no que diz respeito a casos de má administração na actuação das instituições ou organismos comunitários. A União Europeia é uma comunidade de direito em que os Estados membros são expostos a um controle, pois os seus actos tem de estar conformes com os Tratados.

 

Olhando agora para a Terra Lusitana, recorde-se, que em Portugal até 2004 havia um verdadeiro défice de constitucionalização e de europeização. Verificava-se a falta de concretização do modelo constitucional de justiça administrativa, mas tal falha teve termo com a reforma de 2004, que trouxe consigo a concretização do modelo europeu e constitucional duma justiça administrativa que se caracteriza pela jurisdionalização plena, tendo como objectivo a efectiva protecção dos direitos dos particulares. Há na nossa Constituição uma garantia à tutela jurisdicional efectiva em matéria administrativa. Os administrados tem direito de acesso ao direito e aos tribunais, mas a tutela jurisdicional não se resume meramente a esse direito. A decisão judicial, tem de ser, à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva, obtida através dum processo equitativo, num prazo razoável e as sentenças proferidas tem der ser efectivas (art.268.º, n.º4 e ss que concretiza o art.20 CRP). No CPTA (art.2.º,n.º 2) o princípio constitucional referido é reforçado e confirmado, trata-se duma espécie de concretização. O Professor Mário Aroso de Almeida dá uma panorâmica da relação da Constituição com o CPTA e refere que “o propósito primacial do CPTA é o de concretizar, no plano da legislação ordinária, o imperativo constitucional de assegurar que os tribunais administrativos proporcionem uma tutela jurisdicional efectiva a quem a eles se dirigir em busca de protecção”. A tutela jurisdicional efectiva tem assim de ser assegurada quanto à disponibilidade de acções ou meios principais adequados, quanto ao plano executivo e cautelar e quanto às providências indispensáveis para garantir a utilidade da sentença, tal como a sua efectividade. Com a europeização há, porém, também a manifestação duma dimensão europeia e não meramente nacional, do direito à tutela jurisdicional efectiva. O Tribunal da Justiça põe em causa o efeito preclusivo do direito de acção contra as autoridades públicas, constante de legislação nacional, quando se verifica uma incompatibilidade entre o Direito Europeu e o Direito Estadual. Além do mais, tem-se conferido aos tribunais nacionais poderes de conhecimento oficioso dos casos: Emmott, Denkavit Internacional, Van Schindel e Peterbroek. Os Tribunais comunitários por sua vez, encontram-se limitados pelo princípio da competência de atribuições, daí pode se retirar que os tribunais dos Estados membros são, por sua vez, a instância comum de aplicação do Direito Comunitário. Temos como base legal o art.40 parágrafo terceira da CECA “Quaisquer outros litígios entre a Comunidade e terceiros, a que não sejam aplicáveis as disposições do presente Tratado ou os regulamentos de execução, serão submetidos aos tribunais nacionais” e o artigo 240.CE “Sem prejuízo da competência atribuída ao Tribunal de Justiça pelo presente Tratado, os litígios em que a Comunidade seja parte, não ficam por este motivo, subtraídos à competência dos órgãos jurisdicionais nacionais”. Há até doutrina que vai mais longe e defende que do ponto de vista funcional, há uma conversão dos tribunais nacionais em tribunais comunitários, quando os tribunais nacionais são chamados a dirimir litígios que envolvam a aplicação do direito comunitário. O Professor Paulo Otero ilustra de forma exemplar as consequências da europeização para a administração pública nacional. Refere que houve uma ampliação material das tarefas da administração pública que determinou uma alteração do próprio papel da Administração nacional, esta apesar de pertencer, a nível estrutural, ao Estado, a nível funcional assume uma natureza comunitária. O Professor refere que há quem leve esta vertente de raciocínio mais longe e fale numa “Administração interna servente da Administração comunitária”. Mas penso que é ir longe demais, visto que os Estados mantem claramente uma autonomia processual, são eles que definem as regras de competência e as regras processuais (ETAF art.8, 11 Anexo 325/2010). Temos no entanto de ter presente que não se trata duma autonomia processual plena, há limitações. Cabe assim referir os dois limites essenciais: o princípio da equivalência e o princípio da efectividade da tutela jurisdicional. Podemos atender ao acórdão 27 de Junho de 2013 ( processo C-93/12 (tratado na aula prática)) que dá uma panorâmica dos referidos princípios (art.47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e do princípio da equivalência. Encontramos nos no ambito de ajudas da Política Agrícula Comum. Visa-se evitar que as acções destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos dos particulares, que a União Europeia lhes conferiu, não sejam exercidos em condições menos favoráveis do que as previstas para as acções destinadas a proteger os direitos resultantes de possíveis regimes de ajudas a favor dos agricultores previstos, por sua vez, pelo direito interno. Não se admite que sejam causados aos particulares entraves ou inconvenientes processuais. As regras da União Europeia não podem ser assim mais desfavoráveis que as regras nacionais, tal seria ir contra a ratio do sistema. Para ilustarar melhor o princípio da tutela jurisdicional efectiva, cabe reafirmar que são também os tribunais nacionais que de certa forma salvaguardam a ordem jurídica europeia. O acórdão Peterbroeck de 14.12.1995 demonstra a articulação das normas processuais nacionais com as normas europeias. No referido caso o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se, no ambito de reenvio prejudical, a propósito da interpretação do direito da União Europeia, relativamente ao poder do juiz nacional de apreciar de forma oficiosa a compatibilidade duma norma de direito nacional com o Direito da União Europeia. No referido acórdão e a nível jurisprudencial (acórdãos Rewe e Comet), o Tribunal de Justiça delimita a autonomia processual dos Estados Membros e impõe-lhe limites. Assim sendo, as modalidades processuais nacionais que garantem a nível interno a protecção dos direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico europeu, “não podem ser menos favoráveis do que as respeitantes a acções judiciais similares de natureza interna (princípio da equivalência), nem tronar impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade)”. Verificamos assim no acórdão Peterbroeck a necessidade de analisar a norma europeia num contexto nacional e vice versa. Apesar da autonomia da ordem jurídica europeia, a sua efectividade encontra-se dependente da intervenção do juiz da administração. É correcto referir, tal como faz o Professor Marcílio Filho, que o juiz nacional se encontra sobre liberdade vigiada, pois tem de conciliar obrigatoriamente as normas processuais nacionais com as exigências do Direito da União Europeia, tais exigências decorrer igualmente dos princípios acima referidos. Podemos assim dizer que cabe ao juiz nacional zelar pela eficácia do Direito da União Europeia, estando, para cumprir esse papel, autorizado a moldar, transformar ou até possivelmente afastar normas nacionais que podem dificultar a plena eficácia da ordem jurídica europeia.

Olhando pra a Carta, que tem no nosso ordenamento jurídico uma importância que se destaca. Há no entanto que relembrar que a Carta não integra formalmente o nosso ordenamento, visto que não tem a forma de convenção internacional, nem reveste natureza de direito comunitário derivado. Acrescente-se que o rol de direitos fundamentais que a Constituição faculta é mais denso e completo que a Carta. Observando nessa linha de pensamento, a nossa Constituição, percebemos, que há fortes limitações no que diz respeito à restrição dos direitos, liberdades e garantias, pois há uma imensa preocupação em salvaguardar o núcleo dos direitos. Devemos igualmente ter em conta o art.53.º da Carta que estabelece a prevalência de disposições constitucionais ou internacionais, desde que sejam mais proteccionistas dos cidadãos. Sendo assim e nos termos do artigo referido, na possibilidade de haver uma incompatibilidade entre o âmbito de protecção constitucional, que é mais favorável, e o âmbito de protecção menos favorável previsto na Carta, os tribunais nacionais têm a obrigação de garantir a aplicação da norma mais favorável, ou seja da norma constitucional. Concluímos assim, que no domínio dos direitos fundamentais, direitos de defesa e não só, há uma clara imposição de interpretar as disposições comunitárias à luz da nossa Constituição, pois ambiciona-se garantir o nível de protecção mais elevado. Torna-se visível que há uma repartição de competências entre os tribunais nacionais e os tribunais comunitários. Se olharmos para os Tratados, nota-se que estes definiram a relação entre o Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais, recorrendo a uma relação de estreita cooperação (art.234CE ilustra tal realidade de forma mais expressa), lealdade e fidelidade. A intervenção do Tribunal de Justiça não implica de todo a exclusão dos mecanismos internos próprios da justiça administrativa e da justiça constitucional. Tal como refere o Professor Paulo Otero, verifica-se pelo contrário, “um reforço duplicativo e concorrencial de mecanismos internos e comunitários de controlo da actividade de execução do Direito Comunitário pelas Administrações Públicas dos Estados-membros”.

Em suma, podemos dizer que a União Europeia nos lançou diversos desafios. A europeização da justiça administrativa tem trazido várias exigências. São os Estados Membros que ao assumirem o compromisso duma cooperação leal se vem obrigados a concretizar de forma efectiva o direito da União Europeia… Vivemos ainda num processo europeu integrativo, cujo papel principal é desempenhado pelo juiz nacional e pela administração, são eles que participam na construção do novo Direito Administrativo que não visa mais do que garantir a plena eficácia da ordem jurídica europeia, harmonizando-a com a ordem jurídica nacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia

Silva, Vasco Pereira da, “ Em busca do Acto Administrativo Perdido” Coimbra

Acordãos Peterbroeck, Rewe e Comet & Acordão 27 de Junho 2013 (C-93/12)

Amaral, Diogo Freitas/Almeida, Mário Aroso, “Grandes Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo”, 3ª edição, Coimbra, 2004

Almeida, Mário Aroso “ O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos” 4ª edição, Coimbra 2005

Campos, João Mota de “ Manuel de direito Comunitário” 3ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian 2002

Quadros, Fausto de “ Direito da União Europeia: Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia” Coimbra,Livraria Almeidina, 2004

Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço Vol I Almedina 2005

 

 

Verena Schneeberger nº19895

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