A força do Direito Europeu na conformação
do Contencioso Administrativo dos Estados-membros – O Acórdão Factortame como caso paradigmático nesta
matéria
A
complexificação e aprofundamento cada vez maiores daquele a que já se pode, com
plena propriedade, apelidar de “ordenamento jurídico europeu”, reflete-se
intensissimamente nos ordenamentos internos de cada um dos estados-membros. O
ramo do Contencioso Administrativo não é exceção, sendo um dos muitos assuntos “apanhados”
nesta maré de “europeização” (expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva,
presente no capítulo em que trata deste assunto – pp. 106 e ss – do seu manual O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009) em que nos encontramos há já algum
tempo e que influenciou decisivamente as mais recentes reformas do processo
administrativo.
Dada a imensidão
de matérias de Contencioso Administrativo que sofreram a dita influência do Direito
Europeu, importa delimitar o âmbito que se pretende aqui tratar. O que me
proponho fazer é uma análise da consagração de um princípio de “plenitude da
competência do juiz nacional na sua qualidade de juiz comunitário” (Fausto de
Quadros, A Nova Dimensão do Direito
Administrativo – O Direito Administrativo Português na Perspectiva Comunitária,
Almedina, Coimbra, 1999, p. 43), na conexão que este apresenta com os
princípios do primado e da efetividade da tutela jurisdicional.
Num brevíssimo
enquadramento da matéria, pode dizer-se que esta etapa histórica da
“europeização” do Contencioso Administrativo se insere numa outra mais ampla a
que o Prof. Vasco Pereira da Silva chama metaforicamente de “fase do crisma ou
da confirmação” (Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009,
p.85), atento o facto de já se encontrarem ultrapassadas as “experiências
traumáticas” do “pecado original” do Estado Liberal, e se virem “confirmar” as
conquistas iniciadas no “baptismo”, do Estado Social, agora no Estado
pós-social. Na verdade, chegados ao Estado pós-social e após a
“constitucionalização” – “passagem a escrito dos propósitos de mudança
comportamental” (no interessante paralelismo que Vasco Pereira da Silva
estabelece com o assumir da patologia pelo paciente no campo da psicanálise no
seu O Contencioso Administrativo no Divã
da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, p.87) – os
Estados-membros estavam agora preparados para o imbricamento entre o seu
direito e o da União.
Como explica o
Prof. Vasco Pereira da Silva (em O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009,
p.113), “a europeização do Direito administrativo [contou com uma] (…) dupla
vertente de criação de um Direito Administrativo ao nível europeu e de
convergência dos sistemas de Direito administrativo dos Estados-membros” que se
refletiu numa dupla dependência de ambos os ordenamentos, um em face do outro:
“dependência administrativa do Direito Europeu. Pois o Direito Europeu só se
realiza através do Direito Administrativo (…) [e] dependência europeia do
Direito Administrativo [pois é da] (…) aproximação crescente dos direitos
administrativos dos Estados-membros” que surge o verdadeiro Contencioso
Administrativo Europeu e é neles que este se apoia. Um bom exemplo dessa
dependência recíproca - e aquele que se vai tomar aqui como paradigmático - é o
do Acórdão Factortame (Ac. TJ 19 de
Junho de 1990).
Descrevendo,
muito sucintamente, a natureza do conflito, pode dizer-se que no fundo, o que
aconteceu foi que um Estado-membro (Reino Unido) através de uma lei interna,
limitava uma das liberdades fundamentais das comunidades – o direito de livre
circulação, por parte de cidadãos estrangeiros (europeus), neste caso para
exercer a atividade pesqueira. Para agravar a situação, existia uma “velha regra da common law segundo a qual não pode ser ordenada nenhuma providência
cautelar contra a Coroa, ou seja, contra o governo” (Ac. TJ 19 de Junho
de 1990). Esta regra importa a
escandalosa consequência de o particular ficar sem qualquer tutela provisória,
apenas por o seu “adversário processual” ser a Administração Pública. Notam-se
bem aqui os “traumas” a que se costuma referir o Prof. Vasco Pereira da Silva.
“A House of Lords interrogou-se [então] (…) sobre a questão
de saber se, não obstante a referida regra de direito nacional, os órgãos
jurisdicionais britânicos tinham o poder de ordenar medidas provisórias contra
a Coroa baseando-se no direito comunitário. (…) Considerando, portanto, que o litígio colocava um problema
de interpretação do direito comunitário, a House of Lords decidiu (…) suspender
a instância até que o Tribunal” de Justiça (Ac. TJ 19 de Junho de 1990) se pronunciasse sobre as
questões prejudiciais envolvidas. É na decisão do TJ que se refletem, com plena
propriedade, os princípios do primado do direito comunitário sobre o direito
estadual, da plenitude da competência do juiz nacional na sua qualidade de juiz
comunitário e da efetividade da tutela jurisdicional europeia (como limite ao
princípio da autonomia processual dos Estados-membros), já que o tribunal
“reconheceu ao juiz nacional o direito de, a título cautelar, suspender a
aplicação de um acto estadual susceptível de ser considerado contrário ao
Direito Comunitário mesmo se o respectivo Direito interno não lhe conferir
competência para o efeito.” (Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2004, p. 402). É com
base neste tipo de situações que o Prof. Fausto de Quadros refere que “dentro
do dever que os Estados têm de aplicar o Direito Comunitário, (…) cabe a
obrigação de eles eliminarem da respectiva Ordem Jurídica todos os actos que contrariem
o Direito Comunitário” (Fausto de Quadros, A
Europeização do Contencioso Administrativo in Separata de estudos de homenagem
ao Professor Doutor Marcello Caetano, no centenário do seu nascimento,
Coimbra Editora, Lisboa, 2006, p. 397) e que Cláudia Fernandes Martins explica
o efeito ab-rogatório do primado – “dever do juiz nacional considerar
inaplicável (…) qualquer acto nacional contrário a um acto comunitário, [tendo]
o direito de suspender a aplicação de um acto estadual susceptível de ser
considerado contrário ao Direito comunitário” - que é aquele que aqui nos
interessa (Cláudia Fernandes Martins, A
Fiscalização da Constitucionalidade e o Primado do Direito Comunitário sobre o
Direito Nacional, Relatório de Mestrado para a cadeira de Direito
Institucional da União Europeia, 2007).
Em conclusão e em jeito de
balanço final, foi de casos como este que surgiu a “necessidade de repensar o
Direito Administrativo em função desta nova pluralidade de ‘referências’, (…)
[daí não existir, neste momento] ordenamento jurídico onde relevantes funções
estaduais não tenham sido devolvidas a favor de entes locais e regionais, ou a
favor da Comunidade Europeia ((…) fenómenos de co-administração)” (Vasco
Pereira da Silva, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, p. 111). “Está-se agora perante uma União Europeia, que
constitui uma ordem jurídica própria, conjugando fontes comunitárias – cujas
regulações, sendo ‘recebidas’ pelos ordenamentos jurídicos internos, gozam de
efeito directo e de primazia sobre as dos países membros (vide o art. 8.º da
Constituição portuguesa) – com fontes nacionais, e que, entre os seus
objectivos fundamentais, visa a prossecução de políticas públicas ao nível
europeu, através das administrações dos Estados-membros, que assim são
‘transformadas’ em administrações europeias (ao lado das – relativamente
reduzidas – administrações comunitárias, propriamente ditas) para a realização
dessas tarefas administrativas” (Vasco
Pereira da Silva, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 108 e
109). “O problema, contudo, é que essa nova dimensão europeia se mantém, ainda
hoje, muitas vezes somente ao nível do ‘inconsciente’ da dogmática
administrativa, originando, com frequência, fenómenos patológicos de apreensão
da realidade, que tornam imperioso ‘fazer sentar’ o Direito e o Processo
Administrativo no ‘divã da Europa’, de modo a facilitar a ‘saudável’ conciliação
entre as respectivas ‘facetas’ interna e europeia” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina,
Coimbra, 2009, p. 113).
Bibliografia:
·
Martins, Cláudia Fernandes
2007: A Fiscalização da Constitucionalidade
e o Primado do Direito Comunitário sobre o Direito Nacional, Relatório de Mestrado para a
cadeira de Direito Institucional da União Europeia;
·
Quadros, Fausto de
1999: A Nova
Dimensão do Direito Administrativo – O Direito Administrativo Português na
Perspectiva Comunitária, Almedina, Coimbra;
·
Quadros, Fausto de
2004: Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra;
·
Quadros, Fausto de
2006: A Europeização do Contencioso
Administrativo in Separata de estudos de homenagem ao Professor Doutor Marcello
Caetano, no centenário do seu nascimento, Coimbra Editora, Lisboa;
·
Silva, Vasco Pereira da
2009: O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina,
Coimbra.
Inês Ribeiro, n.º 20648
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