quinta-feira, 17 de outubro de 2013


A força do Direito Europeu na conformação do Contencioso Administrativo dos Estados-membros – O Acórdão Factortame como caso paradigmático nesta matéria

A complexificação e aprofundamento cada vez maiores daquele a que já se pode, com plena propriedade, apelidar de “ordenamento jurídico europeu”, reflete-se intensissimamente nos ordenamentos internos de cada um dos estados-membros. O ramo do Contencioso Administrativo não é exceção, sendo um dos muitos assuntos “apanhados” nesta maré de “europeização” (expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva, presente no capítulo em que trata deste assunto – pp. 106 e ss – do seu manual O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009) em que nos encontramos há já algum tempo e que influenciou decisivamente as mais recentes reformas do processo administrativo.

Dada a imensidão de matérias de Contencioso Administrativo que sofreram a dita influência do Direito Europeu, importa delimitar o âmbito que se pretende aqui tratar. O que me proponho fazer é uma análise da consagração de um princípio de “plenitude da competência do juiz nacional na sua qualidade de juiz comunitário” (Fausto de Quadros, A Nova Dimensão do Direito Administrativo – O Direito Administrativo Português na Perspectiva Comunitária, Almedina, Coimbra, 1999, p. 43), na conexão que este apresenta com os princípios do primado e da efetividade da tutela jurisdicional.

Num brevíssimo enquadramento da matéria, pode dizer-se que esta etapa histórica da “europeização” do Contencioso Administrativo se insere numa outra mais ampla a que o Prof. Vasco Pereira da Silva chama metaforicamente de “fase do crisma ou da confirmação” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, p.85), atento o facto de já se encontrarem ultrapassadas as “experiências traumáticas” do “pecado original” do Estado Liberal, e se virem “confirmar” as conquistas iniciadas no “baptismo”, do Estado Social, agora no Estado pós-social. Na verdade, chegados ao Estado pós-social e após a “constitucionalização” – “passagem a escrito dos propósitos de mudança comportamental” (no interessante paralelismo que Vasco Pereira da Silva estabelece com o assumir da patologia pelo paciente no campo da psicanálise no seu O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, p.87) – os Estados-membros estavam agora preparados para o imbricamento entre o seu direito e o da União. 

Como explica o Prof. Vasco Pereira da Silva (em O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, p.113), “a europeização do Direito administrativo [contou com uma] (…) dupla vertente de criação de um Direito Administrativo ao nível europeu e de convergência dos sistemas de Direito administrativo dos Estados-membros” que se refletiu numa dupla dependência de ambos os ordenamentos, um em face do outro: “dependência administrativa do Direito Europeu. Pois o Direito Europeu só se realiza através do Direito Administrativo (…) [e] dependência europeia do Direito Administrativo [pois é da] (…) aproximação crescente dos direitos administrativos dos Estados-membros” que surge o verdadeiro Contencioso Administrativo Europeu e é neles que este se apoia. Um bom exemplo dessa dependência recíproca - e aquele que se vai tomar aqui como paradigmático - é o do Acórdão Factortame (Ac. TJ 19 de Junho de 1990).

Descrevendo, muito sucintamente, a natureza do conflito, pode dizer-se que no fundo, o que aconteceu foi que um Estado-membro (Reino Unido) através de uma lei interna, limitava uma das liberdades fundamentais das comunidades – o direito de livre circulação, por parte de cidadãos estrangeiros (europeus), neste caso para exercer a atividade pesqueira. Para agravar a situação, existia uma “velha regra da common law segundo a qual não pode ser ordenada nenhuma providência cautelar contra a Coroa, ou seja, contra o governo” (Ac. TJ 19 de Junho de 1990). Esta regra importa a escandalosa consequência de o particular ficar sem qualquer tutela provisória, apenas por o seu “adversário processual” ser a Administração Pública. Notam-se bem aqui os “traumas” a que se costuma referir o Prof. Vasco Pereira da Silva.

A House of Lords interrogou-se [então] (…) sobre a questão de saber se, não obstante a referida regra de direito nacional, os órgãos jurisdicionais britânicos tinham o poder de ordenar medidas provisórias contra a Coroa baseando-se no direito comunitário. (…) Considerando, portanto, que o litígio colocava um problema de interpretação do direito comunitário, a House of Lords decidiu (…) suspender a instância até que o Tribunal” de Justiça (Ac. TJ 19 de Junho de 1990) se pronunciasse sobre as questões prejudiciais envolvidas. É na decisão do TJ que se refletem, com plena propriedade, os princípios do primado do direito comunitário sobre o direito estadual, da plenitude da competência do juiz nacional na sua qualidade de juiz comunitário e da efetividade da tutela jurisdicional europeia (como limite ao princípio da autonomia processual dos Estados-membros), já que o tribunal “reconheceu ao juiz nacional o direito de, a título cautelar, suspender a aplicação de um acto estadual susceptível de ser considerado contrário ao Direito Comunitário mesmo se o respectivo Direito interno não lhe conferir competência para o efeito.” (Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2004, p. 402). É com base neste tipo de situações que o Prof. Fausto de Quadros refere que “dentro do dever que os Estados têm de aplicar o Direito Comunitário, (…) cabe a obrigação de eles eliminarem da respectiva Ordem Jurídica todos os actos que contrariem o Direito Comunitário” (Fausto de Quadros, A Europeização do Contencioso Administrativo in Separata de estudos de homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, no centenário do seu nascimento, Coimbra Editora, Lisboa, 2006, p. 397) e que Cláudia Fernandes Martins explica o efeito ab-rogatório do primado – “dever do juiz nacional considerar inaplicável (…) qualquer acto nacional contrário a um acto comunitário, [tendo] o direito de suspender a aplicação de um acto estadual susceptível de ser considerado contrário ao Direito comunitário” - que é aquele que aqui nos interessa (Cláudia Fernandes Martins, A Fiscalização da Constitucionalidade e o Primado do Direito Comunitário sobre o Direito Nacional, Relatório de Mestrado para a cadeira de Direito Institucional da União Europeia,  2007).

 

Em conclusão e em jeito de balanço final, foi de casos como este que surgiu a “necessidade de repensar o Direito Administrativo em função desta nova pluralidade de ‘referências’, (…) [daí não existir, neste momento] ordenamento jurídico onde relevantes funções estaduais não tenham sido devolvidas a favor de entes locais e regionais, ou a favor da Comunidade Europeia ((…) fenómenos de co-administração)” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, p. 111). “Está-se agora perante uma União Europeia, que constitui uma ordem jurídica própria, conjugando fontes comunitárias – cujas regulações, sendo ‘recebidas’ pelos ordenamentos jurídicos internos, gozam de efeito directo e de primazia sobre as dos países membros (vide o art. 8.º da Constituição portuguesa) – com fontes nacionais, e que, entre os seus objectivos fundamentais, visa a prossecução de políticas públicas ao nível europeu, através das administrações dos Estados-membros, que assim são ‘transformadas’ em administrações europeias (ao lado das – relativamente reduzidas – administrações comunitárias, propriamente ditas) para a realização dessas tarefas administrativas” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 108 e 109). “O problema, contudo, é que essa nova dimensão europeia se mantém, ainda hoje, muitas vezes somente ao nível do ‘inconsciente’ da dogmática administrativa, originando, com frequência, fenómenos patológicos de apreensão da realidade, que tornam imperioso ‘fazer sentar’ o Direito e o Processo Administrativo no ‘divã da Europa’, de modo a facilitar a ‘saudável’ conciliação entre as respectivas ‘facetas’ interna e europeia” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, p. 113).

 

Bibliografia:

·        Martins, Cláudia Fernandes

2007: A Fiscalização da Constitucionalidade e o Primado do Direito Comunitário sobre o Direito Nacional, Relatório de Mestrado para a cadeira de Direito Institucional da União Europeia;

·        Quadros, Fausto de

1999: A Nova Dimensão do Direito Administrativo – O Direito Administrativo Português na Perspectiva Comunitária, Almedina, Coimbra;

·        Quadros, Fausto de

2004: Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra;

·        Quadros, Fausto de

2006: A Europeização do Contencioso Administrativo in Separata de estudos de homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, no centenário do seu nascimento, Coimbra Editora, Lisboa;

·        Silva, Vasco Pereira da

2009: O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, Coimbra.
 
Inês Ribeiro, n.º 20648 

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