A europeização do Contencioso
Admininistrativo
Introdução, o surgimento de um
novo paradigma:
Para se entender o atual direito
do contencioso administrativo importa olhar à sua evolução ao longo dos tempos.
Nos últimos anos tem-se assistido a mudanças no âmbito do direito
administrativo e do contencioso administrativo. Mudanças no sentido de uma
europeização. São causa desta mudança de paradigma, uma direção comum no
sentido das legislações nacionais dos Estados Membros e o aparecimento de novas
fontes europeias com importância para o contencioso administrativo.
Ocorreram mudanças a vários
níveis. A nível estadual, pode-se referir que tem vindo a desaparecer a ideia de
ligação entre o direito administrativo e o Estado. A nível externo, vários
fenómenos ocorreram. Em primeiro lugar, no que toca às organizações internacionais,
houve um aumento das situações jurídico-administrativas. Em segundo, nasceu uma
ordem jurídica própria, a da União Europeia. Esta Ordem jurídica, por um lado,
imiscui-se na dos Estados membros, por outro, absorve características
administrativas dessas mesmas ordens estaduais.
Pode-se assim então afirmar que
há uma nova ordem jurídica, a da União Europeia e que, prosseguir políticas
públicas europeias, através da conjugação de fontes comunitárias[1]
e nacionais, é o seu principal objetivo.
A função administrativa
europeia
Importa assim, no seguimento do
que foi dito, falar do papel administrativo europeu. Esse papel é elemento
basilar da constituição material europeia. É importante aqui sublinhar que para
os Professores Vasco Pereira da Silva, Fausto Quadros e Francisco Lucas Pires
existe uma verdadeira “Constituição Material Europeia” (sem que no entanto se possa
falar de um Estado Europeu). Esta existência prende-se, nomeadamente, com a
existência de regras e princípios fundamentais que versam sobre a repartição de
poderes.
É esta função administrativa da
União Europeia que estabelece o relacionamento entre as fontes e as
instituições de direito administrativo, tanto europeias como dos Estados
Membros.
Devido a todas estas situações, é
importante que hoje se olhe para o Direito Administrativo de forma diferente, e,
também que se adote um novo olhar quanto à soberania estadual, passando de
exclusiva a dividida. Como se estivesse em formação uma nova soberania comum
pertencente à ordem jurídica europeia.
Problema:
Em função do que foi dito
anteriormente, as questões da Europa tornaram-se em algo comum e ordinário para
o direito administrativo, e isto por duas ordens de razão: Primeiramente,
porque existem políticas públicas europeias que se traduzem na realização de
tarefas administrativas a nível europeu e nacional; depois, porque, se pode
falar numa “integração administrativa”[2]
que está em desenvolvimento. A ordem jurídica europeia vem formular direções e
caminhos comuns para os Estados, objetivos conjuntos.
Por tudo isto, os
administrativistas não podem escolher ignorar as questões e os fenómenos europeus,
havendo problemas quando, como muito acontece, se ignora esta nova dimensão. Os
operadores jurídicos do direito administrativo têm de estar despertos para esta
situação, tem de haver uma consciência jurídica europeia. É, então, necessário
proceder a uma apreensão da realidade e a uma conciliação entre as vertentes
interna e europeia.
Consequências da europeização:
O Direito europeu está dependente
da administração e o Direito administrativo está dependente da Europa. Estamos
assim perante uma relação de reciprocidade, de sinalagmaticidade até, entre
estes dois ramos do direito.
Para uma maior concretização e
amplitude da europeização do direito administrativo, pode-se referir caminhos:
a criação de um Direito Administrativo de nível europeu e a contínua convergência
dos sistemas de direito administrativo nos Estados Membros.
Olhando de um prisma
jurisprudencial: existe uma interação entre o tribunal das comunidades e os
tribunais estaduais. Isto, devido à grande importância, e não menor atividade,
da jurisprudência europeia, quanto à conformação do direito administrativo.
Quanto a um prisma legislativo: O
facto de o direito europeu “refazer” os nacionais tem levado a uma movimentação
de ideias, princípios e dos institutos entre diversas ordens jurídicas.
Há assim, um direito
administrativo europeu, criado pela via legislativa e pela via jurisprudencial.
Sendo que ambas contribuem para a repercussão do mesmo nos diferentes Estados.
Em relação ao direito
processual europeu:
No âmbito do processo
administrativo a europeização tem sido muito evidente, havendo até quem refira
um “direito europeu concretizado”[3]
nestas matérias. Tem sido bastante relevante o caminho traçado pela Europa
nestas matérias, sendo visível a grande preocupação com os direitos a conferir
aos cidadãos.
Sendo assim, segue uma enumeração
de algumas regras, princípios e direções que integram o direito processual
administrativo europeu. Pontos que o Professor Vasco Pereira da Silva refere no
seu manual:
- A importante garantia da tutela
jurisdicional efetiva é afirmada, em termos europeus, pelo tribunal de justiça.[4]
- Podem ser decretadas medidas cautelares
por tribunais estaduais para proteção de direitos subjetivos (baseados no
Direito Europeu).
- Para possibilitar aos tribunais
a criação de novos meios processuais, quando estes sejam insuficientes para a
prossecução dos direitos conferidos aos cidadãos, deu-se a consagração do
princípio da “plenitude de competência do juiz nacional na sua qualidade de
juiz comunitário”[5]. Esta
situação está explanada nos seguintes acórdãos: Ac TJ de 19 de Junho de 1190;
Ac TJ de 10 de Julho de 1990; Ac TJ de 21 de Fevereiro de 1991; Ac de 1 de
Dezembro de 1993.
-O regime da responsabilidade
civil extracontratual dos Estados e demais entidades públicas (a nível legislativo,
administrativo e judicial). Importa, aqui, referir os seguintes acórdãos: Ac TJ
de 19 de Novembro de 1991; Ac TJ de 5 de Março de 1996; Ac TJ de 23 de Maio de
1996; Ac TJ de 31 de Dezembro de 1993. Surgem neste âmbito, críticas no sentido
em que a aplicação deste regime tem sido pouca em Portugal.
-Em matéria de contratos
públicos, o regime jurídico da tutela cautelar europeia (de fonte legislativa).
-Por último, é de referir o alargamento
da impugnabilidade. Isto, através da admissibilidade de impugnação de atos de
procedimento, e da maior amplitude dada à noção de ato administrativo (abrangendo
as atuações de entidades privadas que exercem atividades administrativas). A
situação descrita levou a um contencioso administrativo mais virado para a
relação jurídica e não para o ato administrativo, o que se revela de grande importância
na tutela dos cidadãos e na nivelação da relação entre estes e a administração.
A tutela (para efeitos
materiais e processuais)
Em relação aos Estados Membros, houve
uma convergência e uma tendência no sentido da unificação, quanto à
uniformização europeia das regras de tutela.
A existência de uma consciência
jurídica europeia levou à consagração de maior proteção no âmbito: do direito
de acesso ao juiz, das características do juiz, dos meios processuais, dos
poderes do juiz, e das formas de execução da sentença.
Existem situações em que o juiz interno
tem de garantir o direito, mesmo contra o legislador. Ora, esta tutela a nível
europeu auxilia o juiz nacional nesse papel, podendo-se este também fazer valer
do direito europeu e não só do interno para garantir direitos. De tal modo, que
há doutrina que defende que o juiz tem até acesso direto à CEDH.
A garantia da tutela
jurisdicional efetiva é dada pelos artigos 6º[6]
e 13º[7]
da CEDH. E tanto o TJUE, como o TEDH já
se pronunciaram uma quantidade de vezes acerca destas questões.
Exemplo disso, é o
Acórdão 27/6/2013 (proc:C-93/12) - competência europeia e tutela.
Em causa, está o Princípio da
autonomia processual dos Estados Membros, segundo o qual: as regras de
competência e processo são definidas pelo Estado Membro. E também as limitações
a este principio (Princípio da Equivalência e da efetividade). Este acórdão
gira também à volta do 47ºCDFUE[8].
Em primeiro lugar cumpre referir o
Princípio da equivalência. A União Europeia confere direitos aos seus cidadãos
e existem regras de competência e processuais para os fazer valer. Os Estados conferem
também direitos aos seus cidadãos, havendo também regras de competência e
processo para os fazer valer. Se os estados conferirem uma tutela inferior à da
União, se as suas regras de proteção dos direitos forem inferiores, então há
uma violação do Princípio da equivalência e tem de haver um ajustamento e uma
melhoria.
Em segundo, cabe escrever sobre o
Princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Este Princípio reflete-se, na
medida em que, se a União “achar” (através do órgão de reenvio) que as normas
de processo e competência de um Estado dificultam o exercício do direito conferido,
em termos, designadamente de duração do processo, então, a questão deixa de ser
meramente interna, na medida em que o Estado em causa terá de proceder a alterações
na sua ordem jurídica.
Neste caso, o tribunal declarou
não haver uma violação dos princípios da equivalência e da efetividade.
Cabe também aqui referir o Ac de
19 de Junho de 1990 (proc: C-213/89), pois corrobora as ideias anteriormente
explanadas, na medida em que a proteção dos direitos dos cidadãos está acima do
direito estadual. Citando: “O direito comunitário deve ser interpretado no
sentido de que, quando o órgão jurisdicional ao qual foi submetido um litígio
que se prende com o direito comunitário considere que o único obstáculo que se
opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional,
deve afastar a aplicação dessa norma”.
Há um controlo tão grande e tao
amiúde das ações que decorrem nos Estados Membros, que se fala hoje em erosão
do P. autonomia processual. Tudo isto, em nome da efetivação, e da garantia da
tutela jurisdicional dos direitos dos particulares.
A evolução da europeização do
direito português, a reforma
Em Portugal, até 2004, havia uma
fraca europeização e, consequentemente, um problema de constitucionalidade no
âmbito do 8º CRP.
A influência europeia era muito
pouca. As poucas situações em que havia ingerência externa na nossa ordem
jurídica prendiam-se, quase sempre, com a abertura de processos contra o estado
português em instâncias europeias (no âmbito do 6º CEDH, por exemplo). O que,
por si só, era já revelador desta falta de europeização e da necessidade de uma
reforma da justiça administrativa.
Em 2004, ocorreu a reforma
legislativa. Foi então que se iniciou um novo processo administrativo. Este concretiza
de forma mais adequada a proteção plena e efetiva dos direitos dos
particulares, através de uma nova justiça administrativa jurisdicionalizada.
Este caminha continuamente no sentido da europeização, revelando-se mudanças
estruturais de 2004 até hoje. Mas a jornada continua e é necessário, como já
foi dito, que os operadores jurídicos estejam sempre atentos ao que se passa na
Europa.
Conclusão:
No âmbito da europeização, várias
são as consequências que se podem retirar quanto ao contencioso administrativo
de hoje em dia, nomeadamente:
- Através do sistema
jurisdicional da União e do regime da CEDH, surgiu um direito do processo
administrativo europeu, de fonte legislativa ou jurisprudencial, cuja
importância e âmbito material são cada vez maiores.
- Houve uma convergência
crescente dos sistemas de contencioso administrativo dos Estados Membros. Isto foi
também potenciado pelos próprios Estados, na medida da grande abertura das suas
fontes de direito (tanto em relação à influência europeia como em relação ao
direito comparado). Refletem essa mesma situação as reformas do contencioso
administrativo, que ocorreram na europa nos fins do Séc XX e inícios do XXI. Estas
reformas foram de tal ordem, que foram superadas diferenças históricas entre modelos
antagónicos (como por exemplo, o francês e o britânico) dentro, claro está, da
individualidade própria de cada sistema nacional. O professor Vasco Pereira da
Silva fala num “espaço schengen da
justiça administrativa”[9]
Tudo isto, devido a um procedimento
de integração jurídica estável e em permanente transformação.
A europeização é assim algo
presente no direito contencioso administrativo português, não há como negar. A
meu ver, é também preciso ter sempre em conta que o objetivo último desta
Europa será garantir que os direitos dos cidadãos são respeitados e que há uma
evolução e adaptação destes direitos e dos meios para os consagrar consoante os
tempos e as necessidades.
Bibliografia (consultada e referida):
Monografias:
-Andrade, Vieira de
2012: A Justiça administrativa (Lições),
Coimbra, Almedina
-Pereira da Silva, Vasco
2009: O Contencioso Administrativo no
Divã da Psicanálise, Coimbra: Almedina
-Quadros, Fausto
1999: A nova dimensão do direito administrativo- o direito
administrativo português na perspectiva comunitária, Coimbra: Almedina
Legislação:
- 2009: Constituição da República
Portuguesa e legislação complementar, Lisboa: AAFDL
-Canotilho, Gomes e Moreira, Vital
2010: Constituição d República
Portuguesa Anotada, Coimbra: Wolters Kluwer Portugal, Coimbra Editora
Ana do
Carmo Santos Pinto
N.º
20629, Subturma 1
[1] Estas fontes comunitárias são recebidas pelos
ordenamentos jurídicos internos, importando referir, no caso de Portugal
importa referir o 8º (nº 4, em especial) CRP.
[2] Vasco Pereira da Silva, o contencioso administrativo no
divã da psicanálise, 2009, p112.
[3] Vasco Pereira da Silva, “ CA no divã da psicanálise”,
2009, p114.
[4] Este assunto é explorado infra
[5] “A nova dimensão do direito administrativo- o direito
administrativo português na perspectiva comunitária, Almedina, Coimbra,1999,
p43 in Vasco Pereira da Silva, 2009,
p 119
[6] Artigo 6.º(Direito a um
processo equitativo):
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada,
equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e
imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação
dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de
qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser
público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente
enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.
3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de
forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra eleformulada;
b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem;
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.
b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem;
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.
[7] Artigo 13.º(Direito a um
recurso efectivo): Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos
na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma
instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que
actuem no exercício das suas funções oficiais.
[8] Artigo 47.º (Direito à acção e a um tribunal imparcial):Toda a pessoa cujos
direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem
direito a uma acção perante um tribunal nos termos previstos no presente
artigo.Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma
equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e
imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade
de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.É concedida assistência
judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa
assistência seja necessária para garantir a efectividade do acesso à justiça.
[9] Vasco Pereira da Silva, “O CA no divã da psicanálise”,
p150.
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